17 de dezembro de 2020
Mamãe, Quero Ser Perita Forense Quando Crescer: Quatro Livros sobre Crimes, Venenos e a Morte que para Todos Vem
Nos tempos de faculdade, estagiei bastante tempo na Vara do Júri. Penal nunca foi minha matéria favorita e tive mais de um momento de estômago embrulhado quando o professor de Medicina Legal insistia em colocar slides para vermos, mas eu gostava do trabalho no Júri. Havia algo de fascinante em acompanhar aqueles processos (pulando os laudos fotográficos), ou ouvir os depoimentos, um frio na barriga em saber-se na presença de um assassino.
Desconfio que parte desse interesse nasceu da minha longa história de amor com os romances de Agatha Christie e (mais tarde) os contos de Conan Doyle.
Não é, pois, surpresa, que eu tenha interesse por livros sobre crimes reais e da ficção. Li vários em sequência nesses últimos meses e não me arrependo de nada - ainda que alguém olhando minha lista de últimas leituras possa chegar a conclusões estranhas sobre o assunto.
Enfim, prometo que não estou interessada em envenenar ninguém. Feito o disclaimer, tratemos do que interessa. Vamos às leituras da vez!
Começo pelo excelente Lady Killers: Assassinas em Série, de Tori Telfer, publicado por aqui pela Darkside. Na verdade, com exceção de um único título desta lista, todos são da mesma editora, que tem uma linha inteira dedicada a crimes reais e assuntos adjacentes.
Lady Killers traz o perfil de quatorze assassinas em série, de várias épocas e lugares do mundo, explorando não apenas seu caráter macabro, mas o contexto histórico, repercussões políticas e sociais - incluindo a fetichização de várias delas, o sexismo usado para retratá-las -, julgamentos e reflexões sobre as razões de cada uma dessas mulheres para matar.
Tori observa que existe uma espécie de “amnésia coletiva” das mulheres como assassinas - como se a natureza feminina fosse de alguma forma incompatível com o apetite pela morte de um serial killer. As figuras históricas das quais não se pode escapar recebem epítetos que ou buscam suavizá-las (a vovó sorridente) ou extirpar delas sua humanidade (Erzsebet Bathory entrando no folclore como uma vampira). É um ponto de vista sobre o qual nunca cheguei a pensar, mas faz sentido no que ela nos apresenta neste livro.
A autora tem uma prosa bastante fluida, sem abrir mão de entrar pelos detalhes, e também consegue imprimir humanidade sem dar desculpas para a clara psicopatia de várias de suas personagens. A despeito do tema pesado, a leitura é cativante - eu tive dificuldades de parar entre um capítulo e outro. A edição da Darkside, como de hábito, é um espetáculo à parte, totalmente ilustrada e repleta de informações extras.
Do primeiro momento em que vi O Dicionário Agatha Christie de Venenos nas redes sociais da Darkside, fiquei de olho grande no dito. Sou fã da autora; passei boa parte da minha adolescência devorando um volume após o outro de sua coleção. Assim, não é surpresa alguma que eu tenha imediatamente colocado-o na lista de desejados.
Gosto de livros que falam de outros livros, mas acho que ainda não tinha lido um que abordasse as coisas pelo ponto de vista das reações químicas envolvidas nos acontecimentos do enredo. Bem, Christie sabia do que estava falando quando tratava de venenos - conhecimento adquirido na época em que trabalhou como voluntária num dispensário hospitalar de medicamentos - e Kathryn Harkup, que é química por formação, também. Sendo uma divulgadora científica (e vampiróloga, segundo suas redes), Harkup entende como se comunicar com um público de forma didática sem ser pedante.
Cada capítulo do dicionário é dedicado a um veneno, e, usando um dos romances da Dama Agatha como gancho, apresenta-se a história da substância - de onde se extrai, como foi descoberta, eventuais usos medicinais e referência de outras obras -, além da forma como a droga age no corpo humano (até o nível molecular), antídotos e tratamentos se eles existirem, bem como casos da vida real que possam ter inspirado, ou se inspiraram nos romances da Rainha do Crime.
O Dicionário Agatha Christie de Venenos é uma excelente obra de referência seja para os leitores ardorosos de Poirot e Miss Marple, que têm a curiosidade de aprofundar suas investigações (e, nesse aspecto, é possível terminar um romance e depois procurá-lo nas citações e no dicionário ler isoladamente o capítulo que trata dele), seja para quem se interessa também por escrever mistérios, pronto para servir de inspiração. Há uma terceira categoria para a qual eu indicaria esse livro, mas gosto de pensar com meus botões que não há ninguém planejando envenenamentos por aqui no Coruja, então, vou me abster do fato.
Claro que, ao terminar a leitura de O Dicionário Agatha Christie de Venenos, fui atrás de saber se tinha mais alguma coisa da Harkup publicada por aí… e descobri mais dois volumes que vão na mesma linha desse: um sobre a ciência por trás de Frankenstein (Making the Monster) e outro sobre Shakespeare, que imediatamente me deixou desesperada por lê-lo.
Inspirando-me na sabedoria de Wilde, que dizia “a única maneira de libertar-se de uma tentação é entregar-se a ela”, deitei mãos em Death by Shakespeare: Snakebites, Stabbings and Broken Hearts. Imagino que mais dia menos dia eles sejam traduzidos aqui no Brasil pela Darkside também; enquanto isso não acontece, vamos lendo em inglês mesmo.
Nesse volume, cada capítulo evoca um tipo de morte e apresenta as várias peças em que tal situação ocorre. Há aqueles que morrem apunhalados, os que sofrem com a praga e outras doenças, os envenenados e até os que se vão por um coração partido. A morte é uma constante na Inglaterra Renascentista e sua presença é muito mais aceita no cotidiano das pessoas - e do público que assiste às peças (e que, possivelmente antes de ir ao teatro, passava pela praça para ver as execuções públicas de criminosos: há um capítulo do livro para personagens que perderam a cabeça também).
Death by Shakespeare é, assim, uma ampla investigação forense a partir das histórias do bardo. Harkup demonstra um senso de humor mais ferino nesse volume, mantendo a perspectiva científica, e o bom encadeamento narrativo. Ela também se preocupa em demonstrar como Shakespeare teria o conhecimento prático desses detalhes - algo que faz sentido na esteira dos conspiracionistas que acham que o ator não era o verdadeiro autor de seus dramas.
Sou uma confessa bardólatra e também uma incurável curiosa, razões pelas quais me interessei pelo título, mas recomendo-o particularmente a quem é da área médica, tendo em vista os muitos detalhes práticos que são trazidos usando peças e personagens como ganchos.
Os dois livros de Kathryn Harkup - em especial o de Shakespeare - me lembraram muito a Caitlin Doughty e, olha só, vou fechar essa lista justamente com a autora!
Curiosamente, uma semana depois que terminei de ler Will My Cat Eat My Eyeballs?, saiu o anúncio de pré-venda da tradução, que cá no Brasil saiu com o título Verdades do Além-Túmulo. Li os dois livros anteriores da autora nas edições da Darkside - os excelentes Confissões do Crematório e Além da Eternidade - e concordo com a autora sobre como nossa sociedade moderna se afastou da morte como uma realidade da nossa existência, tornando-a mais neurótica e incapaz de realmente lidar com o luto.
Esse último livro é algo mais leve (a despeito do tema) que os títulos anteriores: aqui, Doughty responde perguntas sobre a morte feitas por crianças - perguntas tanto mais diretas quanto completamente inesperadas (como a que dá título a versão em inglês). São um total de trinta e cinco questões, respondidas com base em dados científicos, mas também com bastante humor e uma linguagem de fácil compreensão.
Aqui é possível aprender o que acontece quando alguém morre no meio de um voo (se seu voo estiver lotado e seu vizinho morrer do seu lado, grandes são as chances de você passar o resto da viagem ao lado do cadáver) - e também o que poderia ocorrer a um astronauta se ele morresse no espaço -, porque cadáveres mudam de cor ao longo do tempo, porque eles fazem barulhos, e uma miríade de outras perguntas que podem parecer macabras ou bizarras, mas que fazem muito sentido no grande esquema das coisas.
Importante pontuar que, embora as perguntas tenham sido feitas por crianças e adolescentes, e as respostas tenham sido também direcionadas para o entendimento delas, não há nada de pueril na forma como os fatos são apresentados. -, Will My Cat Eat My Eyeball é uma leitura muito divertida, mas também esclarecedora e, mais uma vez, traz a morte para o centro do debate. A morte é algo natural, inescapável e, se dolorosa para aqueles que ficam, não precisa necessariamente ser um tabu ou algo traumático (pelo menos, não quando é resultado de causas naturais).
E assim, terminamos as resenhas de hoje. O tema pode parecer um tanto mórbido - entre crimes reais, ficcionais e questionamentos sobre a morte em vários níveis -, mas não deixa de ser intrigante. Saldo final da história é, entre outros, que estou inclinada a retomar meu projeto Agatha Christie, para reler e resenhar todas as obras da autora. Vamos ver o que acontece ano que vem...
A Coruja
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