29 de maio de 2019
Desafio Corujesco 2019 - Um Livro com Protagonista Anti-herói/Vilão || O Retrato de Dorian Gray
"Todo impulso que nos esforçamos para sufocar se multiplica em nossas mentes, nos envenenando. O corpo peca uma vez, e deixa o pecado para trás porque a ação é uma forma de purificação. Nada resta senão a lembrança de um prazer, ou a volúpia de um pesar. O único modo de se livrar de uma tentação consiste em se entregar a ela.
Meu primeiro contato com Wilde foram suas peças. O humor mordaz de comédias como A Importância de ser Prudente e O Marido Ideal vão bem ao meu gosto. Ainda não li seus poemas, mas tenho curiosidade de qualquer dia me sentar para completar essa lacuna. Quanto ao único romance do autor, até cheguei a começar a leitura de O Retrato de Dorian Gray quando mais nova, mas não consegui ir adiante. Não sei dizer se foi por falta de maturidade para entender as nuances do livro ou por alguma outra razão, mas fato é que eu conhecia mais Dorian Gray por sua participação em A Liga Extraordinária que pelo livro original.
Acho que a coisa teria ficado por isso mesmo, não fosse uma feira de livros acontecendo no shopping. Entrei por curiosidade, deparei-me com o Dorian numa edição em capa dura belíssima, da coleção Folha Grandes Nomes da Literatura, e botei-o debaixo do braço. Sim, também acho hilária a ideia de comprar pela capa um livro que tem por mensagem básica a ideia de que não devemos nos levar pela aparência.
A história de Dorian Gray é familiar mesmo para quem nunca viu o livro, sendo um daqueles personagens que entraram no imaginário coletivo. O belo jovem que não envelhece, enquanto seu retrato mostra as marcas não apenas da idade, mas de sua degeneração moral. Dorian é algo como Fausto, ainda que não haja um contrato explícito com o diabo. Wilde não se preocupa em dar explicações para a ligação sobrenatural entre seu protagonista e o quadro, até porque o como não importa de verdade. O que nos interessa aqui é o quê Dorian faz com essa eterna juventude.
Minha primeira questão com a história vai do julgamento de seu protagonista antes de ele se tornar um grande vilão. Basil, o pintor que faz o retrato de Dorian e coloca nele todo o seu talento e alma, considera o rapaz perfeito, não apenas por sua enorme beleza, mas também por seu caráter. Tenho minhas ressalvas quanto a isso: Dorian me parece virtuoso não por uma escolha consciente, mas por ignorância. Sem o conhecimento do pecado e da tentação, como pode ele demonstrar de fato quem é?
É nesse estado de inocência inexperiente que o rapaz conhece Lorde Henry Wotton, o seu Mefistófeles. Lorde Henry chama a atenção de Dorian para a própria beleza, lastima que isso se perca com a idade e acende no rapaz a chama da vaidade. Pouco a pouco, Dorian se deixa seduzir por frivolidades, torna-se um hedonista e, através de seu egoísmo e arrogância, vai deixando atrás de si um rastro de destruição. Mesmo quando ele tenta ser benévolo, ele o faz por interesse próprio. Cada degrau descido em seu caminho de corrupção torna o quadro mais horrendo, e o confronto de Dorian com o retrato é o confronto com sua própria consciência.
Bom lembrar também que O Retrato de Dorian Gray foi um escândalo à época de sua publicação, servindo de peça de acusação no tribunal que condenou Wilde por sodomia - especialmente pelas possíveis referências autobiográficas e a seu relacionamento com Lorde Alfred Douglas. Seus editores suprimiram várias palavras da edição que foi inicialmente publicada, mas mesmo com essa censura, não houve jeito (vale pontuar que essa edição da Folha é a versão não censurada). A linguagem vistosa e a profusão de aforismos (sério, acho que dá para tirar uma dezena dessas frases a toda página, e cada uma rende uma análise) não escondem as alusões e eufemismos, o subtexto do interesse do Lorde por Dorian, ou mesmo de Basil por seu jovem amigo. Para o leitor moderno, tais passagens talvez não pareçam nada demais; mas na era vitoriana, foram o suficiente para que Wilde fosse enviado para a prisão, de onde saiu para o exílio na França, onde morreu.
Aliás, a linguagem é um espetáculo à parte no livro. A prosa de Wilde é ornamental, de uma sensualidade langorosa. O leitor desacostumado talvez estranhe as longas descrições, mas isso faz parte da embriaguez sensorial hedonista, pela qual nos levam as aventuras de Dorian. Engraçado que, quando eu estava lendo, a associação que me veio à cabeça foi com o poema Profissão de Fé, do parnasiano Olavo Bilac: “Invejo o ourives quando escrevo: / Imito o amor / Com que ele, em ouro, o alto relevo / Faz de uma flor”. Wilde é um ourives da palavra e cada turno de frase é um engaste numa jóia, cujo brilho maior não é apenas a elegância da escrita, mas a ironia ácida que permeia a história.
Com um enredo sobre aparências, arte, vaidade, manipulação e moral, O Retrato de Dorian Gray mantém impressionante vitalidade e relevância para a sociedade atual. Um clássico que é tanto um deleite artístico quanto uma obra que merece profunda reflexão.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: O Retrato de Dorian Gray
Autor: Oscar Wilde
Tradução: Jorio Dauster
Editora: Folha
Ano: 2016
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Conte mais sobre o 2º parágrafo. arrocha, nega!
ResponderExcluirHUAHUAHUAHUA...
ExcluirNão vou negar, eu tendo a comprar livros pela capa. Só que, hoje em dia, isso acontece mais com livros que eu já conheço e tenha lido - às vezes até que já tenho na estante... Livros favoritos que comprei mais nova em edições de bolso ou naquelas versões mass market em inglês e que hoje substituo por edições com belas encadernações, ou em traduções melhores, ou que sejam ilustradas... Eu tenho já duas cópias de "Belas Maldições", uma em português (a mais antiga; aquela da capa preta relançada recentemente não me agrada muito) e outra em inglês (capa dura, nos mesmos moldes da Discworld collection) e estou agora babando na edição que foi lançada em inglês com ilustrações do Paul Kidby.
Quem nunca comprou livro pela capa, que jogue a primeira pedra ;)
Excluirvocê esta lapidando o seu diamante, ou trocando a roupinha do bebê, quando substitui as edições! :-)
ExcluirEstou atrasada em postar aqui minha resenha, mas a vida me atropelou um pouquinho, sabe como é... Mas, achei divertido o seu comentário sobre o livro Belas Maldições, porque foi justamente o que resolvi ler para esse tema, aproveitando o lançamento da série, que, por sinal, está maravilhosa!
ResponderExcluirhttps://leiturasdelaura.blogspot.com/2019/05/good-omens-belas-maldicoes.html
Opa! Belas Maldições! Vamos lá ler!
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