12 de setembro de 2011

J. R. R. Tolkien – Parte II: Os Primogênitos (A Primeira Era)

- Belo será o final – exclamou Fëanor -, embora a estrada seja longa e difícil! Digam adeus à servidão! Mas digam também adeus ao conforto! Digam adeus aos fracos! Digam adeus a seus tesouros! Faremos tesouros ainda maiores. Não carreguem peso na viagem; mas tragam suas espadas! Pois iremos muito mais longe do que Oromë, e resistiremos mais do que Tulkas.

Nunca desistiremos da perseguição. No encalço de Morgoth até os confins da Terra! Guerra terá ele, e um ódio eterno. Porém, quando tivermos vencido e reconquistado as Silmarils, nós, e somente nós, seremos os donos da Luz impoluta, senhores da felicidade e da beleza de Arda.

Nenhuma outra raça nos derrubará!

Nesse momento, Fëanor fez um juramento terrível. Seus sete filhos colocaram-se imediatamente a seu lado e fizeram juntos o mesmo voto, e vermelhas como sangue brilharam suas espadas desembainhadas à luz dos archotes. Fizeram um voto que ninguém deveria quebrar, e que ninguém deveria fazer, nem mesmo em nome de Ilúvatar, conclamando as Trevas Eternas a caírem sobre eles se não o cumprissem. E como testemunhas nomearam Manwë, Varda e a montanha abençoada de Taniquetil, jurando perseguir até o fim do Mundo com vingança e ódio qualquer Vala, demônio, elfo ou homem ainda não nascido, ou qualquer criatura, grande ou pequena, boa ou má, que o tempo fizesse surgir até o final dos tempos, quem quer que segurasse, tomasse ou guardasse uma Silmaril, impedindo que eles dela se apoderassem.


J. R. R. Tolkien - O Silmarillion
O Silmarillion é, talvez, a obra mais complicada de Tolkien. Sua linguagem é fortemente erudita, mais poética que O Hobbit e O Senhor dos Anéis; enquanto seus temas, que oscilam entre política e religião, são tratados de forma mais grandiosa e sombria, em histórias onde abundam traições, desconfiança e tragédia, mas também paixão, lealdade e coragem sem iguais.

Trata-se de uma coletânea de contos mitopoéticos, passando pelas primeiras eras de Arda, o mundo em que se encontra o continente da Terra-Média, tendo uma visão predominantemente dos Elfos, os ‘Primogênitos’. Foram publicados postumamente, editadas por Christopher Tolkien, com o auxílio de Guy Gavriel Kay, hoje um escritor de fantasia premiado (estou com um livro dele em casa e depois de descobrir seu envolvimento aqui, fiquei ainda mais ansiosa por lê-lo).

Ele começa, obviamente, pelo começo, o mito cosmogônico da Canção dos Ainur, o Ainulindalë.

Já escrevi certa vez sobre as semelhanças existentes nas gêneses que Tolkien e Lewis criaram para seus respectivos mundos. O nascimento de Eä é, sem dúvida, uma das mais fortes cenas criadas pela mitologia do autor; bela e poderosa.

Esse tema não é criação exclusiva de diálogos dos dois autores. Santo Agostinho, em suas Confissões usa como metáfora da criação do mundo a música – Deus é apresentado como um compositor, com a mesma idéia da junção de harmonia e acordes dissonantes. Tolkien era um católico praticante e um professor humanista; que ele tenha lido Agostinho é uma conclusão bastante lógica e que ele o tenha influenciado, também.

Mas o Silmarillion, como todos os outros ciclos míticos da Terra-média, é uma história que “diz respeito principalmente à Queda, à Mortalidade e à Máquina”, tema que é retomado sucessivamente em Melkor/Morgoth, os Noldor sob a direção de Feänor, Sauron, os Númenorianos e Saruman.

De todas essas histórias, a que mais se assemelha ao mito cristão é a queda de Melkor, que, como Lúcifer, era o mais sábio e poderoso entre os Ainur, os ‘anjos’ criados por Eru, também chamado Ilúvatar, o único e pai-de-todos.

Quando Eru dá aos Ainur a responsabilidade de colocar em canção determinados temas que ele lhes apresenta, Melkor cria pouco a pouco uma melodia dissonante – e como essa música é o princípio de tudo através do caos, a desarmonia que Melkor plantou na canção entrará também no mundo.

Faz-se a canção: Arda existe. E, embora ainda não caminhem pela terra, também lá estão os filhos diletos de Ilúvatar: os elfos, seus primogênitos, e os humanos, os seguidores.

Eru oferece aos Ainur a possibilidade de irem para Arda e governá-la, para o bem daqueles que virão. Aqueles que aceitam descem ao mundo e tomam corpos físicos: os maiores dentes eles serão os Valar, com atributos (embora não apetites) semelhantes àqueles dos deuses gregos (o tridente de Ulmo, senhor das águas; a águia de Manwë, senhor dos céus); e os de menor poder chamar-se-ão Maiar.

Melkor é um daqueles que descerá a Arda e com os outros Valar travará constante combate – enquanto estes constroem e embelezam o mundo, à espera de seus legítimos herdeiros, aquele está sempre destruindo e lançando sombras sobre tudo.

Cansados deste constante choque, os Valar acabam por se retirar da Terra-média para o Oeste, no continente de Aman, no qual estabelecem seu lar, Valinor. Ao brilho das primeiras estrelas, despertam os elfos, Melkor acaba por ser capturado, os Valar levam muitos dos primogênitos para o oeste e todos vivem felizes e satisfeitos...

...ao menos até soltarem Melkor, que se fez de arrependido, para então envenenar as Duas Árvores, Laurelin e Telperion (que depois dariam origem ao Sol e à Lua), roubar as Silmarils, jóias feitas com a luz das duas por Fëanor, matar Finwë, pai de Fëanor e rei dos Noldor e fugir para a Terra-média.

Irado e orgulhoso, Fëanor comanda os Noldor contra Melkor, agora chamado Morgoth. Antes disso, ele e seus filhos fazem o chamado “juramento de Fëanor”, que os perseguirá por todo o resto do caminho, arruinando todas as vitórias e todas as mostras de coragem e heroísmo que se seguem, como uma maldição não apenas ela soberba, mas também pelo fraticídio que Fëanor perpetra antes de deixar Aman.

O texto do juramento não está no Silmarillion, mas pode ser encontrado no The History of Middle-Earth, que Christopher Tolkien editou com uma série de materiais avulsos que o pai escreveu:
Seja amigo ou inimigo, seja sujo ou puro,
cria de Morgoth ou brilhante Vala,
Elda ou Maia ou Sucessor,
Homem ainda não nascido sobre a Terra-média,
nem lei, nem amor, nem liga de espadas,
terror ou perigo, nem mesmo o Destino
há de defendê-lo de Fëanor, e dos filhos de Fëanor,
aquele que ocultar, ou na mão tomar,
que consigo guardar ou longe jogar
Uma Silmaril. Assim juramos nós todos:
Morte havemos de trazer a ele antes que o Dia se finde,
Aflição até o fim do mundo! Nossa palavra escuta,
Eru Pai-de-Todos! À eterna
Escuridão nos condena se nosso feito falhar.
Na montanha sagrada ouvi em testemunho
E nosso voto lembrai, Manwë e Varda!
Tal juramento não poderia trazer se não agudas tristezas e é assim que se entrelaçam o destino de todos, valar, maiar, elfos e humanos, que recém-despertaram na Terra-média – todos envolvidos pela terrível sina das silmarils.

Não sou grande fã do Fëanor desde o princípio – há qualquer coisa de dissimulada nele, qualquer coisa que não me desce bem. Em compensação, e a despeito de tudo, gosto muito do Maedhros, seu filho mais velho e é com pesar que o vejo ser amaldiçoado pelo juramento do pai.

À chegada dos noldor à Terra-média, seguem-se batalhas sem fim, das quais os humanos também participarão e cujos feitos valorosos elevarão seus nomes à História.

Há Beren, filho de Barahir, que se apaixona por Lúthien, também chamada Tinúviel, filha do rei elfo Thingol, de Doriath. Beren é humano, e mortal, enquanto Lúthien, sendo uma elfa, é imortal – e uma princesa, enquanto ele é um exilado.

Os dois, contudo, se apaixonam no primeiro encontro, cantado no terceiro livro de The History of the Middle-Earth, o Lays of Beleriand, ainda não lançado aqui no Brasil, sob o capítulo de “Balada de Leithian” (libertação do cativeiro):
"Para onde fostes tu? O dia está vazio,
a luz do Sol escura, e fria no ar!
Tinúviel, para onde foram os teus pés?
Ó estrela errante! Ó doce donzela!
Ó flor da Terra Élfica demasiado bela
para o coração mortal! Os bosques estão vazios!
Os bosques estão vazios!" ele levantou-se e gritou.
"Antes da Primavera nascer, a Primavera morreu!"
E vagueando por caminhos e mente
ele tateou como alguém que fica subitamente cego,
que tenta agarrar a luz escondida
com mãos vacilantes em mais que a noite.

E assim em angústia Beren pagou
por esse grande destino sobre ele posto,
o imortal amor de Lúthien,
demasiado bela para o amor de Homens mortais;
e para o seu destino foi Lúthien atraída,
a imortal a sua mortalidade partilhou;
e o Destino para eles forjou uma corrente unida
por amor vivo e dor mortal.
A versão em prosa, resumida, é a que se conhece do Silmarillion, mas o poema é muito mais belo e triste – na verdade, a impressão que tenho é que todas essas histórias da Primeira Era de certa forma terminam com grande pesar ou melancolia.

Bem, Beren e Lúthien se apaixonam, mas o pai dela não gosta da idéia de sua filha se casar com um humano, de forma que pede, para permitir a união, que ele lhe traga uma das Silmarils da coroa de Morgoth – tarefa que ele sabe não apenas ser impossível, mas mortal. Desafiando todas as possibilidades, Beren, com o auxílio de Lúthien, triunfa onde exércitos inteiros falharam repetidas vezes: eles entram em Angband, a terrível fortaleza do Senhor do Escuro e resgatam uma das jóias.


Isso não significa, contudo, um final feliz, ainda que eles se casem depois disso. Lúthien abre mão de sua imortalidade para poder permanecer ao lado de Beren, resgatando-o assim à própria morte, marcando a primeira união entre mortais e elfos.

Mas o juramento de Fëanor continua válido e o resgate de uma das Silmarils terminará com a ruína de Thingol e Doriath, arrastando todos os outros grandes reinos élficos para uma guerra fratricida – uma guerra da qual participam outros dois grandes nomes da casa dos Homens: os irmãos Húrin e Huor.

O filho de Huor, Tuor, viverá a segunda das três grandes uniões entre as duas raças, cansando-se com Idril, princesa do reino de Gondolin, filha do rei elfo Turgon, com quem tem Eärendil.

Eärendil, por sua vez, se casa com Elwing, neta de Beren e Lúthien. Deles descendem Elros e Elrond, que ganham a dádiva de escolherem a que família querem ligar seus destinos: Elrond, que conhecemos em Valfenda, se decide pelos elfos imortais, enquanto Elros escolhe ser humano e se torna o primeiro rei de Númenor, da qual a Gondor de Aragorn, seu descendente, é apenas uma pálida imagem de glórias.

Em meio ao caos e devastação em que a Terra-média é jogada, Eärendil é escolhido para ir até os Valar pedir auxílio – e é graças à Silmaril que Elwing recebeu por herança que ele é capaz de encontrar o caminho. Ao chegar em Valinor, contudo, ele não pode mais voltar ao convívio dos seus, e os Valar o colocam no céu como a mais brilhante estrela – Vênus.

Aliás, o nome Eärendil, em sua origem anglo-saxã earendel é aplicado à estrela d’alva.

Se ao filho de Huor foi dada a glória de ser antepassado de Aragorn, aos filhos de Húrin, apenas tristezas couberam. O prêmio de sua lealdade ao ser capturado por Morgoth, foi permanecer vivo, aprisionado nos picos de Thangorodrim, junto à fortaleza de Angband, para assistir, impotente, à destruição de sua família: Túrin e Nienor.

A história de Túrin e Nienor é tão cheia de desgraças que acabou ganhando um livro apenas para contá-la – como Túrin mata sem querer o melhor amigo, Beleg, como acaba se casando com a própria irmã sem saber, uma vez que foi separado da mãe antes dela nascer e ela teve a memória encantada por Glaurung, esquecendo-se de tudo antes de Túrin encontrá-la.

Não posso dizer que qualquer deles tenha algum tipo de final feliz.

Mas, finalmente, após a jornada de Eärendil, os Valar vêm em auxílio dos exilados; Morgoth é aprisionado, jogado para fora do mundo, onde permanecerá suspenso até o fim dos tempos quando voltará para fazer guerra mais uma vez aos Valar, de acordo com a profecia de Mandos sobre o Dagor Dagorath, a Batalha Final:
“Assim falou a profecia de Mandos, que ele predisse em Valmar, no julgamento dos deuses, e o rumor dela foi sussurrado entre os Elfos do Oeste: quando o mundo estiver envelhecido os Poderes se cansarem, então Morgoth retornará pela Porta, para fora da Noite Eterna; e ele destruirá o Sol e a Lua, mas Eärendil virá sobre ele como uma chama branca e o derrubará dos ares. Então será travada a última batalha sobre os campos de Valinor. Neste dia, Tulkas lutará com Melkor, e a sua direita estará Fionwë e a sua esquerda Túrin Turambar, filho de Húrin, Mestre do Destino; e será a espada negra de Túrin que levará Melkor à morte final; e então os filhos de Húrin e todos os homens estarão vingados”.
Desculpem as traduções fora do padrão poético de Tolkien, mas os volumes de The History of Middle-earth material ainda não disponível em português, e eu não tenho qualquer pretensão ou formação poética, de forma que estou fazendo um trabalho mais ou menos literal...

Seja como for, a prisão de Melkor/Morgoth encerra a Primeira Era de Arda e abre espaço para um novo mito, antropocêntrico agora: Akallabêth, a Queda de Númenor.

(Continua em Os Seguidores - A Segunda Era...)


A Coruja


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Um comentário:

  1. E é mais ou menos por esses motivos todos que O Sillmarillion é um dos meus livros favoritos.

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