17 de maio de 2011

Os Babacas de Shakespeare (em três atos ) - Segundo Ato


‘Trair a devoção do meu olhar com mentiras? Vire fogo em madeira o pranto dos olhos. Alguém mais bela!?... O próprio sol ainda está para ver no mundo outra mais linda!’

Romeu e Julieta – Ato I, Cena II

São com estas palavras acima que Romeu se refere à Rosalina, pouco antes de conhecer Julieta.

Quem lê o Coruja já me viu resmungar inúmeras vezes do Romeu. Até os personagens de ‘Na sua estante’ já entraram na polêmica. O fato é que, ainda que não seja o campeão da inconstância, Romeu é o mais conhecido – e talvez seja por isso que eu tenha essa cisma pessoal com ele.

Ou talvez a verdade seja mais freudiana e eu esconda uma paixão secreta pelo jovem Montecchio...

Bléergh...

O negócio é o seguinte: Julieta ainda é muito jovem para ter amadurecido completamente – ela está a duas semanas de completar 14 anos ao início da peça. Apesar disso, ela se comporta com uma invejável dignidade quando descobre Romeu escondido em seu jardim. Em vez de entrar em pânico ou ter um ataque de histeria porque ‘oh, meu deus, tem um homem no meu jardim, temei pela minha virtude!’, ela procede a inquirir Romeu de suas intenções e logo toma as rédeas da situação ao dizer que mandará a ama no dia seguinte para acertar tudo “se vossas intenções são honestas”.

Julieta não se deixa simplesmente seduzir, a despeito de sua natureza obviamente passional. Ela trata de assegurar uma união duradoura, nos conformes da sociedade da época. Ela nunca é inconstante em seu afeto e suas decisões – e quando se depara com a possibilidade de se tornar bígama, ela toma mais uma vez o destino nas mãos: ou o frei lhe apresenta uma solução ou ela dará jeito no assunto.

Claro que o suicídio é um pouco drástico demais e é exatamente por isso que Julieta peca ao final. Ou não – no mundo medieval em que se passa a história, ela estaria arruinada se seu envolvimento com Romeu tivesse sido descoberto após a morte do rapaz. Ela teria se tornado uma pária se sobrevivesse. O perdão só é possível com a morte.

Do começo ao fim, Julieta faz suas escolhas e arca, consciosamente, com as conseqüências de todas elas.

Romeu são outros quinhentos...

Nunca consegui engolir a forma como ele transfere seu afeto de Rosalina para Julieta. Num momento ele está querendo morrer de amor porque Rosalina deseja tomar o hábito; dez minutos depois ele está escalando os muros para o quarto de Julieta.

Nem a lua é tão inconstante!

Pior que Romeu não é apenas inconstante; ele é leviano. E devia sofrer de depressão a julgar a forma como o encontramos no início da peça, vagando pelo bosque de figueiras, ‘multiplicando lágrimas e orvalhos’.

Claro que Romeu tem suas qualidades – a começar pela lábia. Acredito que ele sentia passional e ardentemente, mas não consigo acreditar que esse sentir fosse amor. A intensidade do relacionamento de Romeu e Julieta é indiscutível – mas é difícil imaginá-lo além, imaginar o que teria acontecido se tivessem sobrevivido.

Improvável que os Montecchio acolhessem Julieta em seu seio – ela seria sempre considerada um erro, passível de ser esquecido após o divórcio. Afinal de contas, Romeu é homem, e único herdeiro da família, não se pode simplesmente colocá-lo de lado. Os Capuleto, por outro lado, matariam Romeu na primeira oportunidade e Julieta seria expulsa de casa como uma “rameira”.

Os dois até poderiam tentar viver juntos, ignorando as ameaças dos Capuleto e as promessas dos Montecchio para Romeu (desde que ele deixasse Julieta, claro), mas não teriam recursos para sustentar o estilo de vida com que estavam acostumados antes do casamento e chegaria o momento do remorso, das trocas de acusações e do ressentimento.

Acho que meu problema aumentou em relação ao Romeu porque dos heróis da inconstância de Shakespeare, ele é o único que não se mostra inserido no contexto da comédia – se bem que, como já vimos antes, categorizar as peças de Shakespeare em comédias e tragédias simplesmente não dá muito certo.

Mas vejam o Duque Orsino, por exemplo, de Noite de Reis. O cara é total e completamente pirado na batatinha. Na boa, se você está apaixonado por uma fulana, ‘cê vai mandar o carinha recém-chegado que até tu acha bonitão, para ir fazer a corte a ela NO TEU LUGAR? Orsino estava pedindo para ser corno, se não fosse o pequeno detalhe de que o mancebo bonitão na verdade era uma garota.

Bizarra a situação de Viola: se apaixona à primeira vista pelo Duque, que diz amar loucamente Olívia e que a manda ir declamar poemas para a outra, que, por sua vez, se apaixona por Viola, achando que ela era ele.

Num contexto desses, não é assim tão difícil desculpar Orsino por transferir de imediato seu amor para Viola, quando Sebastian, o irmão gêmeo desaparecido da moça, entra na pintura para ficar com Olívia. Orsino espera até que Viola revele seu verdadeiro gênero, mas, francamente, acho que mais cedo ou mais tarde, nessa peça, tal formalidade era apenas um opcional...

E não nos esqueçamos dos dois simpáticos (mas não menos babacas) B’s: Biron, de Trabalhos de Amor Perdidos e Benedict, em Muito Barulho por Nada.

Já contei minha teoria sobre Benedict ter aprontado com Beatrice no passado, em algum ponto antes da peça começar – porque só isso explica tanta mágoa represada, especialmente da parte de Beatrice. Desconfio que Biron fez o mesmo com Rosalinda, a dos olhos negros – o que explica porque ela, como Beatrice, se compraz em derrubar o rapaz do cavalo sempre que pode.

Adoro Benedict, mas não acho que conseguiria suportá-lo pelo resto da vida. Ele – como Biron, aliás, - é muito cheio de si. Ambos são hedonistas, narcisistas e, antes da mulher amada, amam suas próprias imagens (embora isso fique mais óbvio em Biron).

Sua inconstância, porém, é mais aos próprios ideais que às mulheres que amam mesmo. Benedict jura nunca se casar – e paga a língua antes de completar uma semana. Biron, com seus companheiros – que incluem o rei de Navarra – abjuram de todos os divertimentos, buscando o estudo e não demora muito para que larguem as ciências e se dediquem à poesia.

Proteu, um dos protagonistas de Os Dois Cavalheiros de Verona, por outro lado, é tudo, menos um cavalheiro e nessa categoria de heróis inconstantes, o absoluto vencedor. Sim, sou cismada com Romeu, mas Proteu quase podia concorrer com Bertram pelo prêmio de babaca do ano.

Proteu esquece Julia tão logo põe o pé para fora de Verona; trai e calunia o melhor amigo transformando-o num foragido para assim poder ficar com a amada de Valentino, Silvia, e chega a quase agarrar a moça à força, não fosse a chegada providencial de Julia, disfarçada de rapaz – a primeira das heroínas do bardo a se utilizar desse recurso.

Gaaah!!! Por que é que ninguém enfia um soco nas fuças de Proteu? Por quê? Por quê? POR QUÊ???

O bizarro de Proteu é que ele ama Julia, depois ama Silvia, e após ver seus planos frustrados, decide que ama Julia de novo, porque, hei, ficar com Julia ainda é melhor do que ficar com ninguém.

JÚLIA — Contempla o alvo de todas as tuas juras, com carinho guardadas no imo peito. Quanto este coração tem padecido por teus perjuros todos! Ó Proteu! Envergonha-te à vista destes trajes. Possas corar por eu ter envergado vestes tão imodestas, se, de fato, pode haver imodéstia nos disfarces de que se vale o amor. Mas erra menos a mulher no disfarce de um momento do que o homem que troca o sentimento.

PROTEU — O homem que troca o sentimento! É certo. Oh céus! Porque perfeito o homem ficasse, falta-lhe ser constante. Esse defeito o leva a cometer muitos pecados. Que pode haver em Sílvia a todo instante, que em Júlia não me mostre o amor constante?

De novo, por que, Shakespeare, por quê?

Bem, a verdade é que existe um porquê. Ou, ao menos, uma teoria do porquê.

Tendo em vista o pouco que sabemos sobre a vida de Shakespeare e, em especial, a partir da interpretação de seus sonetos, acredita-se que (1) ele foi infeliz no casamento e (2) ele teve dois grandes amores em sua vida: uma mulher, que muito provavelmente o traiu e um rapaz, cuja paixão pode ou não ter sido platônica.

Harold Bloom, em Shakespeare: a Invenção do Humano observa no samba do crioulo doido que é Sonho de uma Noite de Verão que o final desta peça é emblemática da visão que permeia toda a obra do bardo: a verdade é que não importa muito com quem você termina porque, no final, estamos todos sujeitos aos caprichos do destino...

...e do Puck – o que, é claro, explica muita coisa...

(Continua no Terceiro Ato...)



A Coruja


____________________________________

 

Um comentário:

  1. Há!! E Hamlet ainda teve a impáfia de dizer "Inconstância, teu nome é mulher!". Sempre achei Romeu meio bundão, mas sempre dei um desconto por ele tbem, ser na verdade, um adolescente (e que adolescente não muda de amor assim como muda de camisa??). Eu tbem sempre tenho a mania de ficar imaginando o que aconteceria depois do Happilly ever after.... ou no caso de Romeu e Julieta, o que teria acontecido caso eles não tivessem promovido o suicídio em massa. Com certeza, Julieta teria ficado p* da vida com a vida boêmia de Romeu, teria engravidado em poucos meses e ficado abandonada em casa enquanto ele fazia festa com os amigos. E claro, teria ficado abandonada dentro de uma casa onde ela seria rechaçada e malquista, após ter sido escurraçada de casa pela propria familia. Enfim.... Mas tenho que discordar a respeito de Benedict: acho que eu aguentava ele, facinho, facinho! ;)

    ResponderExcluir

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog