4 de outubro de 2010

O Único e Eterno Rei – Parte I: Receita de Herói


- Há quase três mil anos – ele disse – esse país que você governa pertenceu a uma raça gaélica que lutava com machadinhas de cobre. Há dois mil anos eles foram escorraçados para o oeste por outra raça gaélica com espadas de bronze. Há mil anos, houve uma invasão de teutões, pessoas que tinham armas de ferro, mas não atingiram todas as Ilhas de Pictos porque os romanos chegaram no meio e confundiram as coisas. Os romanos foram embora cerca de oitocentos anos atrás, e então outra invasão teutônica – de um povo chamado principalmente de saxão – expulsou a turma toda para o oeste, como é o costume. Os saxões estavam começando a se estabelecer quando seu pai, o Conquistador, chegou com seu bando de normandos, e é onde estamos hoje.

T. H. White – A Rainha do Ar e das Sombras

Onde termina a História e começa o Mito? Quais são os ingredientes que transformam um Homem em um Herói? Coragem, Honra, Paixões em Lenda?

Há muitas respostas possíveis para essas perguntas, muitos exemplos que poderíamos citar, componentes dessa receita milenar que nos presenteia com criaturas que se destacam, para o bem ou para o mal; se tornam sobre-humanas, deixam de ser indivíduos para se tornarem parte de uma consciência coletiva, de uma identidade cultural.

Spartacus, William Wallace, Robin Hood, Siegfried, Beowulf são apenas alguns exemplos – históricos, folclóricos, literários – que posso citar de memória. Eu poderia enumerar muitos outros aqui, mas provavelmente passaria o dia todo nessa ladainha, porque quase toda nação tem seu próprio herói nacional.

E, claro, cada nação tem o herói que merece... nós, por exemplo, temos Tiradentes...

Poucos entre estes que mencionei, contudo, possuem a mesma aura de poder e mistério quanto a da figura do único e eterno rei: Arthur Pendragon da Bretanha.

Especificar os ondes, quandos e porquês é tarefa complicada – especialmente se considerarmos que não sou historiadora ou arqueóloga. Tampouco esse é meu objetivo com o artigo, ainda que, ao menos nessa introdução, cheguemos a enveredar pelo assunto – afinal, temos que começar de algum lugar e que lugar melhor para começar que as origens?

Há uma série de historiadores que concordam que Arthur foi um personagem histórico, fundamentando-se principalmente nas Historia Brittonum, do monge historiador Nennius, que escreveu por volta do século IX, citando doze batalhas em que um dux bellorum, um comandante militar chamado Arthur teria liderado os ingleses contra as invasões saxônicas.

Talvez aqui seja interessante observarmos um pouco da colonização das Ilhas Britânicas, até porque o ciclo arturiano é uma grande amálgama de referências e mitos de várias civilizações. Começamos com uma série de povos gaélicos, estacionados na Era do Bronze. Então, por volta de 1.000 a.C., os celtas avançam da Europa central, derramam-se pelo território hoje correspondente à França e chegam à Bretanha, conquistando esses grupos étnicos originais (dos quais são exemplos os pictos). Pouco depois, começam as invasões teutônicas, freadas pelo avanço romano, que se impõem na região até 410 d.C. e, à sua saída, chegam os saxões que, quando já estão confortavelmente instalados, são conquistados pelos normandos, povo descendente dos vikings.

Particularmente, eu nunca entendi o que a Inglaterra tinha assim de tão interessante para ser continuamente atacada, como se seus territórios fossem a Terra Prometida. Eu acho, sem ter muita certeza, que isso se deve à posição privilegiada que eles têm – ainda que próximas ao Continente, as ilhas são separadas dele pelo Canal da Mancha, um verdadeiro fosso de castelo inexpugnável, como tão bem descobriram Napoleão e Hitler.

Em todo caso... situamos o Arthur histórico entre o final do século V e início do século VI, na época das invasões saxônicas. O título real talvez se deva a uma herança romana – após a partida dos exércitos de Roma, os bretões mantiveram intacta a organização que seus conquistadores tinham construído, incluindo hierarquia militar, onde a autoridade suprema pertencia a um Comes Britanniae, o Conde da Bretanha.

Conde, duque, comandante militar; seja qual for o título assumido por Arthur, o caso é que ele nunca foi rei de canto nenhum.

Há outros relatos históricos posteriores, mas, de forma geral, os estudiosos entendem que tais testemunhos basearam-se nas crônicas de Nennius, de forma que é difícil dizer que algum desses textos prova alguma coisa. E provas físicas – monumentos, inscrições em lugares de batalha – além de raras, foram muitas vezes determinadas falsas.

Isso para não contar o fato de que o ciclo das lendas arturianas é composto de inúmeras contribuições autorais – inglesas, francesas, alemãs, espanholas; de toda a Europa – e que pelo menos metade dos cavaleiros da Távola Redonda remetem a deuses de origem gaélica.

Peneirar dessa mistura o que é História e o que é Lenda não é nem de longe fácil.

O próprio Arthur, aliás, toma emprestado vestes divinas em alguns pontos. Para começar, temos o deus urso celta Artio ou Artos, do qual o próprio nome Arthur derivaria.

Originalmente, o triângulo amoroso envolvendo Arthur e Guinevere tinha por terceiro vértice o próprio Mordred (Lancelot entra na história bem depois), triângulo esse que ecoa o Ciclo dos Fenianos, onde o herói Finn Mac Cumhaill casa com Gráinne, que seduz e foge com o sobrinho do marido, Diarmait, culminando com uma grande batalha em que os descendentes desses personagens – Oscar, filho de Finn e Cairbré, irmão de Gráinne, acabam por se matar (embora, em outras versões da história, Finn venha a perecer nessa batalha também).

Em uma das muitas (inúmeras) versões dos quatro ramos do Mabinogion (livro de histórias do folclore celta), Gwyddion, filho de Don, um dos deuses-heróis, teve um filho com a própria irmã, Arianrhod. Gwyddion, aliás, é protagonista de várias histórias mais tarde atribuídas em baladas folclóricas a Arthur – como a conquista de Hades (que nas versões literárias transformou-se em Roma).

Desse período histórico-literário das obras arturianas, destaca-se também o conto galês Culhwch ac Olwen, que é considerada a obra mais antiga a citar Arthur, popularizada posteriormente por uma das tradutoras do Mabinogion, Lady Charlotte Guest, no século XIX.

Neste conto, Arthur é primo do rei Cilydd, pai do herói, Culhwch, que, por sua vez, é apaixonado (obcecado talvez fosse a palavra mais certa...) por Olwen, filha de Ysbaddaden Pencawr, rei dos gigantes. Cilydd manda o filho para a corte de Arthur, para ver se o rei pode ajudar o herói, porque é quase impossível para Culhwch ter alguma chance com a tal moça.

Arthur, junto com outros cavaleiros que mais tarde serão parte da fina flor de sua Távola Redonda - Cei, Bedwyr e Gwalchmei, ou, como melhor conhecemos, Sir Kay, Sir Bedivere e Sir Gawain – ajuda Culhwch a conquistar sua amada e, no processo, a matar o pai da mesma, que é charmosamente “barbeado até o osso”.

Diabos, eu posso encontrar até ecos gregos e do novo testamento aí no meio, primeiro com a história de Uther indo visitar Igraine magicamente disfarçado por Merlin como Gorlois repetindo Zeus visitando Alcmena e gerando Héracles; depois com Arthur desesperado por sonhos profetizando sua ruína nas mãos do sobrinho/filho e sua decisão de Herodes de matar todas as crianças nascidas naquele dia!

*Inspira... Expira... Inspira... Expira...*

Poderíamos fazer uma lista imensa de correlações entre personagens mitológicos e cavaleiros da Távola e o próprio Rei Arthur; o Graal e o Caldeirão do Dagda (vou falar mais sobre esse depois), Merlin e Ossian, o bardo dos deuses. Mas a questão aqui não é tanto deixar vocês tontos com um monte de nomes desconhecidos e impronunciáveis, e sim mostrar que parte da força dessas histórias que nos são hoje tão familiares são muito mais antigas e poderosas do que imaginávamos.

A meu ver, a despeito de quaisquer teorias da conspiração, alguns dos grandes cavaleiros foram antigas divindades rebaixadas de seu status; outras, como o próprio Arthur, foram humanos aos quais se juntaram atributos divinos.

Deuses ou humanos, suas histórias talvez não tivessem deixado a esfera das baladas medievais folclóricas, onde despertariam interesse restrito a uns tantos gatos pingados, não fosse a mão de diversos autores a aproveitarem o tema, começando por Geoffrey de Monmouth – que se dizia um historiador, mas, convenhamos, gostava de inventar uma história...

(Continua em Escritos e Escritores...)


A Coruja


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Um comentário:

  1. Queria aprender a fazer pesquisa que nem você, sério xD Muito boa a primeira parte do especial, acho que os contos do Rei Arthur nunca vão deixar de fascinar a humanidade e serem adaptados das mais variadas maneiras... É um caso de histórias que dormem com a consciência humana, talvez. Parabéns pelo trabalho!

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