21 de maio de 2015

Para ler: O Nome da Rosa

“Preciso pensar sobre isso. Quem sabe tenha que ler outros livros.”

“Como assim? Para saber o que diz um livro deveis ler outros?”

“Às vezes pode-se proceder assim. Frequentemente os livros falam de outros livros. Frequentemente um livro inócuo é como uma semente, que florescerá num livro perigoso, ou, ao contrário, é o fruto doce de uma raiz amarga. Não poderia, lendo Alberto, saber o que poderia ter dito Tomás? Ou lendo Tomás saber o que tinha dito Averroes?”

“É verdade”, disse admirado. Até então pensara que todo livro falasse das coisas, humanas ou divinas, que estão fora dos livros. Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana, tesouro de segredos emanados de muitas mentes, e sobrevividos à morte daqueles que os produziram, ou os tinham utilizado.

“Mas então”, eu disse, “de que serve esconder os livros, se pelos livros acessíveis se pode chegar aos ocultos?”

“No decorrer dos séculos não serve para nada. No arco dos anos e dos dias serve para alguma coisa. Vê como nos encontramos de fato perdidos.”

“E então uma biblioteca não é um instrumento para divulgar a verdade, mas para retardar sua aparição?” perguntei estupefato.

“Não sempre e não necessariamente. Neste caso é”.
A primeira vez que tentei ler O Nome da Rosa, eu tinha uns doze anos e terminei largando o livro de lado, traumatizada e complexada pela quantidade de vocabulário que não conseguia compreender. Isso me gerou uma bizarra aversão a Umberto Eco, que terminei por reencontrar pouco menos de dez anos depois, na faculdade... e aí foi amor à segunda vista.

Desde que me vi às voltas com Superinterpretação e Interpretação, Eco se tornou uma das paixões da minha vida e fui lendo tudo o que ele já publicou, fosse ficção ou não-ficção. Mas ainda relutava a voltar a esse volume; a lembrança daquela primeira leitura deixava-me bastante temerosa a tentar uma releitura para então descobrir que continuava sem entender lhufas.

Depois de muito enrolar, afinal tirei o volume da estante e a primeira coisa que atentei foi para uma nota que dizia que a nova edição publicada tinha sido revisada pelo autor para tornar o romance mais compreensível. Minha primeira reação foi “ok, então eu não fui a única a ficar viajando no livro!”. Minha segunda reação foi pensar “estamos então nivelando por baixo? Sacrificaram o livro para torná-lo mais palatável ao leigo?”.

Enfim... comecei a ler. Achei que ia ler um capítulo e parar, depois ler um capítulo e parar, depois mais um e parar para assim conseguir digerir o que tinha lido. A verdade é que li mais da metade do livro num dia só, sem querer largá-lo sequer para ir almoçar e no dia seguinte amanheci já com o nariz enfiado na história, terminando a segunda metade.

Cheguei à conclusão que transformei O Nome da Rosa da minha memória num bicho-papão. E, hilariantemente, tendo reencontrado o livro pelo menos uma década mais madura, ele agora se tornou um favorito.

Eco é um professor de semiótica, um estudioso da linguagem e, como tal, sua obra está recheada de referências linguísticas e vocabulário da época em que suas histórias se passam. Considerando que o centro da ação em O Nome da Rosa é um mosteiro medieval, isso significa que há frases e por vezes até parágrafos inteiros em latim.

Creio que a edição revisada traduz essas latinizações mais extensas, porque hoje em dia quase ninguém fora do curso de letras estuda algo de latim. Vejam bem, nem tudo é traduzido, mas o que continua em latim (e outros vernáculos) é compreensível pelo contexto – e, mesmo que não seja, é algo que serve mais para estabelecer o clima da história que para entender o que está acontecendo na narrativa.

Feitas todas essas considerações, vamos falar da história propriamente dita. O Nome da Rosa é narrado pelo monge Adso de Melk, que relembra eventos que ocorreram décadas antes, quando era ainda um noviço, e acabou por se envolver numa trama que misturava sexo, assassinatos, dogmas religiosos, e uma biblioteca labiríntica que serve de cobiça para muitos.

Adso é aprendiz sob as ordens do frei Guilherme de Baskerville, que deixou o serviço junto à Santa Inquisição para procurar verdade e conhecimento, tornando-se uma espécie de lógico silogista, discípulo de Roger Bacon e William de Occam.

Guilherme e Adso chegam à Abadia que serve de cenário para a história – e que é também a maior biblioteca da cristandade, reputada por seus inúmeros raros tomos e construída como um labirinto – para participarem de um debate entre facções clericais e são imediatamente surpreendidos com a descoberta do cadáver de um monge – e desse momento em diante os corpos começarão a se empilhar, seguindo um roteiro bíblico para disposição das mortes.

Guilherme é claramente uma versão medieval de Sherlock Holmes: britânico; fiel à lógica dedutiva através da observação; seguido por um companheiro cujas tentativas por vezes desastradas de acompanhar seus saltos de raciocínio emulam o próprio leitor e, claro, um sobrenome diretamente tirado dos romances de Conan Doyle são todos pistas bastante óbvias. Seu interesse nas investigações em torno dos assassinatos é menos pelas paixões humanas e mais pelo grande prêmio que todos parecem cobiçar: um livro misterioso com potencial para modificar dogmas doutrinários de seus pares.

O Nome da Rosa é, em realidade, um livro bastante sui generis. Ele começa como um romance policial, avança para um tratado de filosofia sobre fé e razão e a própria natureza da religião, tem lances de folhetim melodramático repleto de amores ilícitos e é, em sua totalidade, um estudo magnífico da cultura medieval.

Como entretenimento, funciona MUITO bem e somos pegos pelos mistérios que se concentram em torno da labiríntica biblioteca; como reflexão filosófica, é uma obra-prima sobre significado, interpretação e linguagem.

Como praticamente todos os livros do Eco, O Nome da Rosa permite vários níveis de percepção, sempre com uma sutileza impressionante. Por isso, é o tipo de volume para o qual você acaba retornando, e em cada releitura, descobre algo de novo.

Estou ridiculamente feliz de ter me livrado de meus preconceitos de infância e gostaria mais uma vez de agradecer ao meu antigo professor de hermenêutica: você pode não ter aparecido mais que duas vezes para dar aula em um inteiro semestre, mas pelo menos você me deu um motivo para me obrigar a ler Eco. Estou em dívida eterna com você.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica
Título: O Nome da Rosa
Autor: Umberto Eco
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
Editora: Record
Ano: 2013
Número de páginas: 592

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