9 de novembro de 2021

Por Debaixo da Porta Sussurrante: um conto pós-morte para aquecer o coração


"... qual é a razão, então? Para tudo isso? Para qualquer parte disso? Se nada do que fazemos importa, então por que devemos tentar?" Ele estava espiralando, sabia disso. Confuso e perdendo o controle. Sentia a pele como gelo, o que não tinha nada a ver com o frio ao seu redor. Cerrou os maxilares para impedir que os dentes batessem.

"Porque é a sua vida", disse Nelson, vindo para o outro lado dele. "É o que você faz com isso. Não, nem sempre é justo. Não, nem sempre é bom. Queima e rasga, e há momentos em que isso te esmaga além do que você é capaz de reconhecer. Algumas pessoas lutam contra isso. Outros ... não podem, embora eu não ache que eles possam ser responsabilizados por isso. Desistir é fácil. Levantar-se não é. Mas temos que acreditar que, se o fizermos, podemos dar outro passo."

Tendo lido e caído de amores por The House in the Cerulean Sea, tão logo esse título foi anunciado, ele entrou para a minha lista de desejos. De todos os lançamentos de 2021, Under the Whispering Door era o livro para o qual eu mais tinha expectativas e, para minha felicidade, ele correspondeu a todas elas.

Wallace Price é um advogado corporativista desprezível, que se compraz em intimidar os funcionários da firma de que é sócio e pensa, sobretudo, em termos de máxima eficiência. Um ataque cardíaco fulminante o deixa como espectador de seu próprio funeral, no qual ele tem uma cadeira de honra para testemunhar o quanto era detestado. É ali que ele conhece Mei, a Ceifadora responsável por acompanhá-lo até Hugo, o barqueiro - responsável por ajudá-lo a fazer a travessia e dono da casa de chá que serve como uma espécie de estação entre a morte e o que vem depois, onde se localiza a porta sussurrante do título.

Além de Mei e Hugo, Wallace também se verá na companhia de dois espíritos, o avô de Hugo, Nelson, e seu cão, Apollo. E, observando tudo de longe, há uma entidade misteriosa mais antiga que a humanidade, responsável por empregar Hugo e Mei como barqueiro e ceifadora, conhecida apenas como O Gerente. Pelo meio do caminho ainda há espíritos furiosos, espíritos perdidos, falsas médiuns, uma mãe que não aceita a perda da filha e um romance impossível.

Há algo bem Scrooge em Wallace - embora não esteja apenas na companhia de fantasmas, mas seja, ele mesmo, um deles. Na ‘Casa de Chá e Delícias Travessia do Caronte’, Wallace tem tempo para avaliar a insignificância do sucesso e dinheiro que acumulou em vida, e o isolamento em que vivia, bem como o legado que deixou para trás. De repente, ele encontra naqueles estranhos - no momento mais difícil de sua existência - uma família. Na morte, ele aprende a viver. É uma jornada de transformação previsível, mas nem por isso menos tocante.

“Todo mundo se perde em algum momento, e não é apenas por causa de seus erros ou das decisões que tomam. É porque eles são terrivelmente, maravilhosamente humanos. E a única coisa que aprendi sobre ser humano é que não podemos fazer isso sozinhos. Quando estamos perdidos, precisamos de ajuda para tentar encontrar nosso caminho novamente.”

E se o roteiro pode ser um tanto previsível, a escolha de protagonistas é mais inesperada. Acho incrível como Klune consegue pegar personagens tradicionalmente pouco carismáticos - o burocrata Linus em The House in the Cerulean Sea, um advogado egocêntrico como Wallace - e fazer com que nos importemos de verdade com eles. Que acreditemos em sua mudança, no caminho que eles fazem para se tornar pessoas melhores. Depois daquele primeiro capítulo, quando Wallace demonstra toda a sua arrogância e falta de empatia, não achei que pudesse em algum momento gostar dele. E aí Klune me passou uma rasteira.

Todo o resto do elenco é muito cativante, personagens com quem eu ficaria feliz em dividir uma xícara de chá nessa encruzilhada para o outro mundo. Seus dilemas pessoais, ainda que apareçam de forma tangencial, costuram o enredo com uma riqueza de nuances. Identifiquei-me demais com o humor de Mei e Nelson, e me emocionei com a empatia e ansiedade de Hugo, a lealdade de Apollo, com a maneira como todos eles acolhem quem precisa deles. Como eles acreditam no trabalho que fazem - e se colocam à disposição mesmo quando isso pode lhes causar sofrimento.


Na essência, Under the Whispering Door é uma história sobre morte, perda, luto e, como tal, não tem como não carregar um traço de melancolia em suas páginas. Klune confessa nos agradecimentos que escreveu esse livro para lidar com uma perda pessoal, e o pesar dele está presente ali de forma muito genuína - e não tenho dúvidas de que essa dor torna nosso envolvimento com ele mais intenso. Houve mais de um momento em que fiquei de coração partido com os rumos da narrativa. Ao mesmo tempo, contudo, ela é incrivelmente calorosa, aconchegante. Sensível. Dei muitas risadas, chorei, torci por Wallace e Hugo, e o final foi incrivelmente catártico, daqueles que você fecha a última página e sente como se um peso tivesse saído do peito.

Klune conseguiu, mais uma vez, entregar o livro que eu nem sabia que precisava - e um forte candidato para os melhores do ano.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Under the Whispering Door
Autor: T. J. Klune
Editora: Tor Books
Ano: 2021

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