18 de novembro de 2021

Projeto Agatha Christie: Morte na Praia


Houve uma pausa. Stephen Lane limpou a garganta e disse, com um leve toque de constrangimento:

- Eu fiquei interessado, Monsieur Poirot, por uma coisa que o senhor acabou de dizer. O senhor disse que o mal era cometido em todos os lugares embaixo do sol. Foi quase uma citação do Eclesiastes. - Ele fez uma pausa e então citou por conta própria: -
Sim, também o coração dos filhos dos homens é repleto de mal, e a loucura está em seus corações enquanto vivem.

Publicado inicialmente de forma serializada na revista americana Collier's Weekly, em fins de 1940, Morte na Praia - ou Evil Under the Sun no original - é um dos mais populares romances de Agatha Christie e traz Hercule Poirot de férias num luxuoso hotel à beira mar, ansioso por alguns dias de paz e tranquilidade.

Claro que o famoso detetive nunca consegue tirar uma folga tranquila: em meio a mexericos e possíveis adultérios, a bela Arlena Stuart é encontrada morta, assassinada. Poirot se verá assim no coração do mistério - e terá muito a investigar, considerando a miríade de razões que surgem para o assassinato da ex-atriz, mentiras contadas por muitos dos hóspedes no hotel e os álibis que todos apresentam.

Uma das coisas mais interessantes de Morte na Praia é que Christie usa nossos próprios preconceitos para qualificar a vítima - e, com isso, desviar o foco de quem seja o assassino. Arlena nos é apresentada pelo ponto de vista das mulheres hóspedes do hotel, por muitas delas considerada uma “devoradora de homens” sem escrúpulos, que já deu, mais de uma vez, seus golpes por aí - incluindo uma grande herança de um velho admirador. Temos a impressão de que ela enganou o atual marido, o capitão Marshall, e, com pena da possibilidade fracassada de romance do capitão com Rosamund, velha amiga de infância, colocamos ela num papel de vilã.

Christie assim brinca com nossas percepções, e deixa uma trilha de pistas falsas que fazem com que desconfiemos de quem não tinha culpa no cartório e percamos de vista outras possibilidades.

Por isso, nem de longe acertei o assassino dessa vez. Verdade seja dita, algumas das pistas que levam a solução não estão de fato ao alcance do leitor - expressões faciais e identidades falsas, por exemplo. Outras me passaram completamente batidas e só me dei conta de como certos diálogos eram importantes diante da explicação completa de Poirot. Depois fui me tocar que conversas encenadas era um gancho que já fora bem utilizado em Assassinato no Campo de Golfe e eu deveria ter desconfiado delas.

Bem, ao menos percebi algumas mentiras, tentativas de incriminação, e cheguei até a acertar meu palpite sobre o que Linda - a enteada de Arlena - realmente fizera na manhã do crime. Mas, como praticamente todas as mulheres que fazem parte do enredo, julguei Arlena pela possibilidade do adultério e disse-me-disse que acompanhavam seu glamour e desprezei o que eu sabia desde o início sobre o marido, o capitão Marshall, seu cavalheirismo e senso de responsabilidade, bem como a realidade do seu primeiro casamento.

De modo geral, é um mistério fascinante, com criminosos que teriam se saído brilhantemente - afinal, tinham o álibi perfeito - não fosse a argúcia de Poirot. Faço, porém, uma crítica a cena final, que, para além de ser desnecessária (o leitor poderia inferir a resolução daquele romance sem uma prova cabal de seu acontecimento), ainda acaba numa nota desconfortavelmente machista. E isso ainda que se leve em consideração a época em que o livro foi escrito, especialmente a se considerar que a própria Christie era uma profissional independente e bem sucedida.

Fica, então, a ressalva. De resto, Morte na Praia é um daqueles títulos que não dá para largar antes de chegar ao final.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Morte na Praia
Autor: Agatha Christie
Tradução: Rodrigo Breunig
Editora: L&PM
Ano: 2014

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