8 de setembro de 2020

Encontrando um Lar para Chamar de Seu: The House in The Cerulean Sea


"Adultos não pensam o tempo todo em morte”, Linus disse severamente. “Na verdade, eles mal pensam nisso. Ora, esse assunto nem passa pela minha cabeça."

“Então por que há tantos livros escritos por adultos sobre a mortalidade?” Phee perguntou.

"Eu não - é porque - isso não é nem aqui nem lá! O que estou tentando dizer é que não devemos mais falar sobre morte ou morrer! ”

Talia assentiu sabiamente enquanto acariciava sua barba. "Exatamente. Porque é melhor não saber se estamos prestes a morrer. Dessa forma, não começamos a gritar agora. Vai ser uma surpresa. Sempre podemos gritar então.”

Theodore gorjeou preocupado, escondendo a cabeça sob a asa enquanto se sentava no colo de Sal. Sal se abaixou e acariciou suas costas.

"Eu posso dizer quando você vai morrer", disse Lucy. Ele inclinou a cabeça para trás e olhou para o teto da van. “Acho que poderia ver o futuro se me esforçasse o suficiente. Sr. Baker? Você quer que eu veja quando você vai morrer? Ooh, sim, está vindo para mim agora. Eu posso ver isso! Você vai morrer em uma terrível-"

"Não quero", Linus interrompeu. "E vou repetir, enquanto estivermos no vilarejo, você não pode sair por aí se oferecendo para contar às pessoas sobre o destino que as espera!"

Lucy suspirou. “Como vou fazer novos amigos se não posso contar como eles vão morrer? Qual é o ponto? ”

"Sorvete e discos", disse Arthur.

“Oh. OK!"

Descobri esse livro logo no começo da quarentena, porque ele era citado em mais de uma lista de recomendados para "sobreviver a esses tempos difíceis". O título e a capa me chamaram a atenção, assim como o fato de que era um lançamento da Tor Books, editora que tem se preocupado em trazer histórias e autores com diversidade para seu catálogo. Tudo o que li lançado por eles - incluindo os muitos contos publicados no Tor.com - me interessou e surpreendeu, de forma que coloquei The House in the Cerulean Sea na lista.

Linus Baker, protagonista e narrador do livro, é um assistente social do Departamento Encarregado da Juventude Mágica (DICOMY em inglês). Ele passa seus dias supervisionando crianças com poderes extraordinários em orfanatos governamentais, levando uma vida solitária numa casa minúscula, com uma gata voluntariosa chamada Calliope e seus discos de vinil. Até ser chamado para investigar um orfanato na Ilha Marsyas, que abriga seis crianças ainda mais diferentes do padrão com o que ele está acostumado - uma das quais é o próprio Anticristo -, além de uma fada adulta e o mestre do orfanato, o misterioso e carismático Arthur Parnassus.

Vou começar dizendo de cara que fazia muito tempo que um livro não me conquistava dessa maneira (acho que a última vez foi com A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil). Não tanto pelo enredo em si, mas pela galeria de personagens, e pelo senso que a jornada ao lado deles desperta. Comecei e não queria largar o livro mais; ao mesmo tempo, não desejava que terminasse. Ao chegar ao final, tudo pelo que eu ansiava era permanecer naquele mundo mágico criado por T. J. Klune.

“A humanidade é tão estranha. Se não estamos rindo, estamos chorando ou correndo para salvar nossas vidas porque monstros estão tentando nos comer. E eles nem precisam ser monstros de verdade. Eles podem ser os que inventamos em nossas cabeças. Você não acha isso estranho?”

Senti muitas influências familiares durante a leitura. O começo, com suas descrições da máquina burocrática em que Linus trabalha, a sensação de estar sendo vigiado, os pôsteres que incentivam delatores para tudo o que é diferente do padrão naquela sociedade, fizeram-me pensar em 1984. Ao mesmo tempo, o trabalho de Linus com crianças diferentes e possuidoras de poderes extraordinários - e algo do idealismo dele que sobrevive mesmo a um ambiente tão estéril - lembraram-me de X-Men: First Class. E aí tem a introdução do Anticristo e o relacionamento entre Linus e Artur, e algo da dinâmica dos dois ecoa Aziraphale e Crowley de Belas Maldições.

Essa familiaridade, contudo, é um verniz, porque há muito mais de surpreendente em The House in the Cerulean Sea; começando pela escolha de narrador. Num livro de personagens com poderes surpreendentes, o protagonista é completamente humano, um burocrata de 40 anos, sem grandes traumas ou neuroses, que acredita na importância do próprio trabalho e procura ser, acima de qualquer coisa, ele mesmo. Considerando ainda que uma das fontes de conflito do enredo é o Anticristo, seria de se esperar que ‘O Fim dos Tempos como Conhecemos’ fosse uma possibilidade preemente, mas o risco de um apocalipse não surge nem de longe ao longo da história. Em vez disso, o cerne da narrativa é algo muito mais prosaico: o medo do diferente, do Outro; o preconceito que advém daí; e a procura pelo lugar de cada um no mundo.

Embora haja alguns temas bem fortes na trama - que vão de preconceito a negligência estatal, mentalidade de multidão, passam por abuso, desobediência civil, e tocam em depressão e questões de moralidade -, não se trata de um livro pesado. Ele não varre para debaixo do pano os problemas; há discussões sobre os maus tratos sofridos por algumas das crianças antes de chegar a Marsyas, além de cenas de intolerância e discurso de ódio. Paralelo, contudo, há mudanças de comportamento, pessoas que “furam suas bolhas” e se permitem enxergar o mundo em sua diversidade. O que reluz é o fato de haver esperança de mudança real, de desaprender comportamentos tóxicos com que crescemos nossa vida inteira e ouvir o outro. Interessante é que tudo isso é parte de uma corrente submersa mais séria num enredo extraordinariamente divertido, do tipo que te faz gargalhar histericamente, e se mistura com o romance confortável que se desenvolve entre Linus e Arthur.

“O ódio fala alto, mas acho que você aprenderá que é porque são apenas algumas pessoas gritando, desesperadas para serem ouvidas. Você pode nunca ser capaz de mudar suas mentes, mas contanto que você se lembre de que não está sozinho, você vai superar.”
E sim, o romance é uma das coisas mais legais do livro, que se desenvolve naturalmente, entre debates de filosofia (Kant, sério?) e aventuras com as crianças, sendo um relacionamento pelo qual eu torci um bocado. Na verdade, fiquei com muita vontade de ler um pouco do ponto de vista do Arthur, porque Linus não tem uma visão realista de si mesmo, sempre se colocando menor do que é. Talvez porque seja necessário a Linus o convívio em Marsyas para encontrar em si mesmo a coragem de dizer o que pensa e enfrentar seus medos - embora ele tivesse muita facilidade antes de se posicionar se fosse em defesa do outro em vez de si mesmo.

O elenco infantil rouba a cena constantemente, com suas perguntas inconvenientes, sinceridade brutal, senso de humor por vezes insano, e tentativas de juntar Linus e Arthur. Sou incapaz de decidir qual deles é meu favorito: Lucy, o Anticristo (“mas não usamos essa palavra aqui”) de seis anos, com seu humor macabro e seu gosto para canções da era de ouro do Rock (descobri várias playlists no Spotify com as canções citadas!); Talia, uma gnomo sempre cuidando do jardim e ameaçando estranhos com sua pá; Theodore, um wyvern atrás de botões para seu tesouro; Sal, que quando assustado se transforma num cãozinho pomeriano e é um poeta em desenvolvimento; Chauncey, que ninguém tem muita certeza do que é, mas sonha em se transformar num carregador de malas de hotel; Phee, uma fada capaz de fazer crescer florestas.

Terminei a leitura com um sorriso que ia de orelha a orelha e uma sensação de acolhimento, segurança. The House in the Cerulean Sea aperta todos os meus botões e acerta num dos meus tropos favoritos: encontrar uma família e um lugar para chamar de seu. Vi muita gente comentando no Goodreads que o livro era “como um abraço” e concordo com essa imagem. Há algo de mágico, de encantador, fantástico na forma como o enredo flui, como nos envolvemos com todos os personagens. Meu livro favorito do ano... pelo menos, até o momento (afinal, ainda temos três meses para o ano acabar).

Um lar nem sempre é a casa em que vivemos. São também as pessoas de quem escolhemos nos cercar. Você pode não viver na ilha, mas não pode me dizer que não é seu lar. Sua bolha, Sr. Baker. Foi estourada. Por que você permitiria que crescesse ao seu redor novamente?

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: The House in the Cerulean Sea
Autor: T. J. Klune
Editora: Tor Books
Ano: 2020

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