12 de maio de 2021

Lugar Nenhum: sobre marginalizados, compaixão e diferentes significados de heroísmo


"(...) Nesse ponto, faltou uma boa metáfora. Havia muito que deixara para trás o mundo das metáforas e comparações, passando para o lugar das coisas que são, e isso o estava transformando."

Mais uma releitura, embora esta estivesse prevista há tempos na minha lista: a primeira vez que li Lugar Nenhum foi numa edição da Conrad (tanto tempo atrás que não tenho nem o registro de quando o li), texto que foi editado por Gaiman, com vários cortes e acréscimos, saindo por aqui pela Intrínseca em 2016, com nova tradução e o aviso de ser o “texto preferido do autor”.

Não tenho mais a edição da Conrad - que doei quando comprei a nova - para fazer o cotejo de ambas. Mas, ao reler minhas impressões mais antigas do livro, vejo que achei o texto por vezes cansativo, sensação que não tive dessa vez. Talvez seja uma questão de mudança de perspectiva (que teve muita desde aquela primeira leitura), mas não posso deixar de pensar que o novo trabalho de edição tenha feito diferença na fluidez do texto.

Quando escrevi algumas impressões sobre Lugar Nenhum em 2010 - não com uma leitura fresquinha na cabeça, mas de memória, dentro de um artigo maior sobre o Gaiman - minha atenção estava inteiramente voltada para a estranheza e a aventura da Londres de Baixo e o enredo de mistério envolvendo a morte do pai de Door. Como de hábito, uma releitura significa que você não está tão aflito para saber como a coisa toda se resolve e há tempo de sobra para admirar a construção de mundo e dos personagens, tudo o que tio Neil consegue empacotar aqui.

Como várias outras aventuras fantásticas, essa aqui começa com o herói passando por um portal para adentrar um mundo paralelo que ele não sabia existir bem debaixo do seu nariz. É Alice despencando pela Toca do Coelho ou Lucy descobrindo Nárnia dentro do Guarda-Roupa. Gaiman gosta desse tipo de enredo: Tristan em Stardust e Coraline passam por experiências bem parecidas a de Richard.

E sim, nosso herói improvável em Lugar Nenhum é Richard Mayhew, que pode até parecer um pobre tolo à primeira vista - preso na rotina de seu trabalho no mercado financeiro, com uma noiva autoritária e destinado a uma vida bastante comum -, mas surpreendeu bastante ao longo do enredo. A questão é que, cinicamente, confundimos gentileza com uma vocação para servir de capacho e, bem, lá está Jessica para mandar e desmandar no noivo e nos passar essa impressão.

Da primeira cena que Richard nos é apresentado, a gentileza é sua principal característica. Na chuva, meio nauseado pela quantidade de brindes que tomou em sua despedida dos amigos, ele ainda assim se importa com a moradora de rua que passa por ele e dá a ela seu guarda-chuva. O início de toda a enrascada do livro é quando ele ignora Jessica e ajuda Door (que ferida e desesperada, desejou que a porta que abriu a levasse para alguém seguro e confiável). Quando Anaesthesia lhe é designada por guia, ele conversa e se preocupa com ela - e talvez seja o único que se importe quando a garota desaparece.

Vez e outra, Richard demonstra civilidade, compaixão e uma bondade inata, algo que se alia a um grande autocontrole (mesmo com toda a estranheza em que logo se vê mergulhado, ele não se desespera ou dá um ataque histérico - o que seria bastante desculpável considerando que de uma hora para a outra as pessoas simplesmente deixam de enxergá-lo), pragmatismo e , sim, coragem. Tudo isso somado o tornará um herói capaz de passar por provações e obstáculos mortais - um Galahad moderno (e sim, isso me fez lembrar do conto Cavalaria, um dos meus favoritos do Gaiman). Gaiman aqui identifica heroísmo não com ser mais forte, de duelar e vencer o combate, mas de demonstrar compaixão, solidariedade, autoconhecimento.

Voltando um pouco… Richard ajuda uma jovem que basicamente desaba aos seus pés ferida e é assim que seus problemas começam. Door, que faz parte de uma família de abridores de porta (quer elas existam ou não, estejam proibidas e suas chaves, perdidas), acaba de ter todos os seus parentes assassinados pelos temíveis Croup e Vandemar. Parte da nobreza da Londres de Baixo, Door tenta descobrir porque sua família foi morta e sobreviver, ela mesma, à caçada que os assassinos mantêm contra ela.

Para isso, ela tem a ajuda do Marquês de Carabas, um vigarista astuto de várias vidas, que negocia na base de favores; de Hunter, a maior caçadora de bestas da Londres de Baixo e também de Richard, que após ser apagado da lembrança da Londres de Cima, procura o grupo para tentar reaver sua vida de antes.

O que impressiona nessa que seria uma típica jornada do herói, é o ambiente em que tudo isso acontece. A Londres de Baixo é costurada de partes esquecidas e descartadas da cidade de cima (e dá para inferir que todas as grandes e antigas cidades do mundo têm essa versão espelhada de si), algumas delas em que o tempo literalmente parou. Sua geografia é formada pelas estações de metrô de Londres: há de fato uma corte do conde (Earl’s Court) num vagão obscuro; monges em Blackfriars e um anjo em Islington. Aqui se abrigam seres e criaturas tão antigas quanto o mundo, mas também pessoas simples - os destituídos, os órfãos, os abandonados, aqueles pelos quais passamos nas ruas como se fossem invisíveis, que vivem completamente à margem da sociedade.

Por alguma razão, Lugar Nenhum me faz pensar no soneto gravado na base da Estátua da Liberdade, em Nova York: “venham a mim as multidões exaustas, pobres e confusas ansiosas pela liberdade. Venham a mim os desabrigados, os que estão sob a tempestade…”. Esses ‘pobres exaustos e desabrigados’ são exatamente aqueles que formam a população das Cidades de Baixo. E essa talvez seja a maior sacada do livro: a forma como Gaiman dá protagonismo aos marginalizados, onde mesmo o mais secundário dos personagens tem seu momento de destaque, sendo possível perceber enredos muito maiores por trás de suas breves participações.

Eu leria páginas e mais páginas sobre a história do Conde, sobre como Vandemar e Croup começaram sua maldita associação, sobre o resto da família de Door e de onde veio sua habilidade, sobre a hierarquia dos diferentes povos e comunidades que se encontram no Mercado Flutuante - ratos, lamias, cogumelo, corvos, pastores, e por aí afora -, sobre a miríade de favores que todo mundo parece dever ao Marquês, sobre como o Marquês se tornou quem é. Há tanta possibilidade nesse mundo criado para Lugar Nenhum que não me espanta Gaiman estar escrevendo uma continuação (nem que ela se inspire na crise de refugiados para tanto).

Inclusive essa edição traz como extras um capítulo cortado - com Croup e Vandemar antes de seguir para o trabalho com a família de Door - e um conto publicado anteriormente em algumas antologias, Como o Marquês Recuperou seu Casaco. Para ser um volume perfeito de colecionador, só faltava trazer as ilustrações maravilhosas do Chris Riddell - mas essas, por enquanto, só na edição em inglês (aparecendo em português, trocarei de novo de edição...).

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Lugar Nenhum
Autor: Neil Gaiman
Tradução: Fábio Barreto
Editora: Intrínseca
Ano: 2016

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A Coruja


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2 comentários:

  1. Sua resenha ficou tão linda que despertou em mim o desejo de uma releitura.

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    Respostas
    1. Obrigada, Maria! Releituras são importantes, a gente percebe nelas o quanto nós mesmos mudamos com o tempo. Enfim, fico feliz que tenha gostado!

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