20 de maio de 2021

Projeto Agatha Christie: Noite sem Fim


Publicado originalmente no Reino Unido, em 1967, um dos favoritos da autora e considerado pela crítica sua última obra-prima, Noite sem Fim é uma daquelas histórias sutis sobre a natureza do mal e dá bastante no que pensar. Seu título deriva do poema de William Blake, Augúrios de Inocência, cantada a determinada altura por uma das personagens:

Toda Noite, todo Dia,
Há quem nasce à Agonia
Todo Dia, toda Noite
Há quem nasce à Alegria
Há quem nasce ao Festim
Há quem nasce à Noite sem Fim

Narrado em primeira pessoa pelo jovem Michael Rogers, o livro conta a história de sua fascinação com um terreno aparentemente amaldiçoado, seu romance com uma herdeira americana, os primeiros dias idílicos na casa construída com a fortuna de Ellie e a tragédia anunciada pela maldição da cigana, que não se demora a consumar. Pelo meio, há ainda os advogados e administradores de Ellie, sua família de aproveitadores, uma governanta extremamente eficiente, um arquiteto genial e muito doente e a sociedade em que o casal começa a se integrar após o rápido casamento.

Noite sem Fim não me pareceu um dos típicos romances da Christie. Conhecendo a sinopse e sabendo que uma morte aconteceria mais cedo ou mais tarde, cheguei à conclusão sobre quem era o assassino antes de terminar a primeira parte do livro. Talvez porque a narrativa me colocou no espírito de O Assassinato de Roger Ackroyd, ou então por certas cenas terem me puxado pela memória o filme O Anjo Malvado, de 1993 (é, eu sei, fui bem longe…). Acertei “quem”, desconfiei do “como”, e cheguei a conclusão de que “o por quê” é a razão de ser do enredo.

Sim, porque o fato de me parecer óbvio quem estava por trás de tudo não tirou o interesse da história. Noite sem Fim é um daqueles thrillers que parecem se arrastar por cantos obscuros da mente, provocar calafrios e um terror que nada tem de sobrenatural - por mais que haja aqui essa sugestão, considerando a maldição que envolve o Passo do Cigano, palco de mais de uma tragédia. Entender as razões que levaram ao crime é passear pelos meandros do caráter humano e é isso que faz o livro tão surpreendente.

Leitores de Agatha Christie estão acostumados com mistérios leves e confortáveis. Ainda que boa parte deles trate de assassinatos - e não haja nada particularmente agradável num envenenamento, esfaqueamento e outras variantes - não chegamos a presenciar de fato a violência acontecendo. Nosso foco é a investigação, o montar do quebra-cabeça, capitaneado no mais das vezes pelas figuras de Hercule Poirot e Miss Marple, ambos imprimindo uma dose de humor que realmente torna essas leituras divertidas. Para além disso, os motivos dos criminosos costumam ser bem pragmáticos. Ciúmes, ganhos materiais, vingança: podemos não concordar, mas somos capazes de entender as razões dos assassinos.

Noite sem Fim, contudo, não tem nada dessa simplicidade. Não existe humor. Não acompanhamos a investigação, que acontece do outro lado das cortinas pelas quais o enredo nos é apresentado. Não é só pelo dinheiro, nem por paixão, que as coisas acontecem como acontecem. E é isso que nos assusta, essa incógnita que transita entre distúrbio mental e uma falha moral tão profunda que nos faz confrontar a existência do Mal.

No final de tudo, tenho de confessar que esse não é um dos meus romances favoritos da Christie. Não pela qualidade da obra, que rende muita reflexão e debate, e bem poderia ser tema de alguma futura sessão do clube do livro de que participo, mas porque ele foge às minhas razões de ler a autora. Costumo procurá-la como uma zona de conforto e Noite sem Fim é tudo, menos uma leitura acolhedora. Fica então a dica para quem for lê-lo com esse tipo de expectativa.

De resto, posso entender os elogios da crítica e me espantar com a qualidade da obra. Christie já publicara mais de cinquenta títulos e passara dos setenta ao escrever esse livro. Ainda que haja alguns elementos reciclados de outros romances (o já citado Ackroyd e um dos últimos contos de Miss Marple, O Caso da Zeladora), há muito com que se impressionar aqui.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Noite sem Fim
Autor: Agatha Christie
Tradução: Érico Assis
Editora: Harper Collins
Ano: 2020

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