12 de outubro de 2017
Bruxas, bonecas e olhos de botão no universo de Coraline
Hoje é o dia das crianças, e que data seria melhor que essa para aproveitarmos o embalo do All Hallow's Read e falarmos sobre Coraline, uma das obras mais famosas do Neil Gaiman? Coraline, afinal, é um conto de fadas em sua melhor tradição: estranho, sombrio, repleto de verdades difíceis, mas também de coragem e determinação, com uma brava heroína que não tem nada de mocinha indefesa e monstros assustadores e famintos. É uma história que pode ser lida como um conto de terror - certamente capaz de causar calafrios - mas é também uma grande e maravilhosa aventura.
Publicado em 2002, o livro já foi adaptado para uma graphic novel, filme e musical (coisa que descobri enquanto pesquisava para escrever esse artigo e agora estou aqui, ouvindo a trilha sonora) e conta a história da jovem Coraline Jones, uma garota que acaba de se mudar com os pais para um apartamento alugado numa velha casa cheia de pessoas, no mínimo, muito excêntricas. Coraline vive entediada, é ignorada pelos pais e assim começa a explorar o casarão, encontrando uma porta secreta que a leva para uma espécie de dimensão alternativa, onde encontra criaturas-espelho das pessoas de sua realidade, incluindo seus pais. Essas criaturas são muito mais divertidas e interessantes que suas contrapartes, tendo a própria menina como centro de sua atenção, e possuem uma característica curiosa: em vez de olhos, possuem botões no rosto.
É claro que Coraline se encanta com essa nova realidade, um lugar onde tudo e mais um pouco parece possível. Como não ser seduzida por esse novo universo? Exceto que... bem, como em todo bom conto de fadas, as proibições existem por um motivo e há uma boa razão para a entrada para aquele mundo estar trancada pela mais antiga, maior, mais escura e enferrujada chave do molho.
Todo mundo já ouviu o ditado de que os olhos são as janelas da alma. Pensando nesse adágio, é meio óbvio que existe algo de muito errado nas contrapartes do outro mundo, com seus olhos de botões negros; olhos que Coraline sequer tem certeza estão de fato olhando para ela. Os botões, em Coraline são uma imagem extremamente perturbadora - não apenas como uma máscara para que nossa heroína não enxergue as reais intenções da Outra Mãe, mas também como uma ameaça, representativo do risco que ela sofre de perder sua própria essência. Partindo do princípio de que a Outra Mãe consome não o corpo, mas a energia de suas vítimas - sua atenção, sua devoção -, o fato de que ela insiste em seu amor por Coraline (algo que a menina não consegue negar), e que seu poder é usado principalmente para manipular suas vítimas; os botões representam o desejo dela de transformar Coraline numa boneca sem vontade.
Nós nunca temos certeza do que realmente é a Outra Mãe - o próprio gato preto, que parece saber de tudo e é o grande mentor de Coraline em sua aventura - não é capaz de dizê-lo. Esse mistério é tanto parte de seu fascínio quanto do terror que ela nos inspira. As crianças fantasmas a chamam de "a bela dama" na tradução, uma referência ao poema de Keats La Belle Dame sans Merci e que é uma boa pista sobre sua identidade. O poema é narrado por um cavaleiro que encontra uma bela dama com traços de fada e olhos selvagens, que o enfeitiça e o lança num sonho encantado, no qual ele é alertado do risco que corre:"- E o que ela fará comigo? - perguntou.
[...]
- Levará sua vida, tudo o que você é, tudo o que lhe é caro e não deixará nada a não ser neblina e névoa. Levará sua alegria. E, um dia, você vai acordar e seu coração e sua alma terão partido. Um casco você será, um fiapo será. Não mais do que um sonho ao despertar ou a lembrança de algo esquecido."
Em inglês, o nome é um pouco mais revelador: beldam, corruptela de beldame (belle dame), palavra que no inglês medieval ‘avó’, ‘velha mulher feia’, ‘feiticeira’ ou ‘bruxa’ - fazendo referência também as criaturas de Faerie. E aqui é sempre bom lembrar quem são os elfos e fadas no folclore antigo, usando de glamour para disfarçar sua aparência, prendendo os mortais e consumindo suas vidas, levando crianças do berço e deixando para trás suas próprias crias, changelings. Imortais, amorais, criaturas de pesadelo, eram as moradores de Faerie antes de Shakespeare transformá-los em pequenos bibelôs com seu Sonho de uma Noite de Verão."Eu vi pálidos reais e príncipes também,
pálidos guerreiros, de mortal palidez eram todos eles;
Eles gritaram - 'A Bela Dama sem Piedade
Tem a ti escravizado!'
Eu vi seus lábios famintos e sombrios,
Em horrível alarme boquiabertos,
E eu acordei e me encontrei aqui,
Nesta fria borda da colina"
Sem sombra de dúvidas, adoro o Gaiman pela forma como ele consegue tecer suas histórias, com personagens a um tempo fortes e vulneráveis, e em cenários estranhos, magnéticos, surrealistas... mas das minhas coisas favoritas sobre o Gaiman é como ele constrói todo esse universo em cima de referências de folclore, mitologia, poesia, música… Há sempre um milhão de detalhes para percebermos nas entrelinhas e descobrir esses detalhes é também perceber como ele consegue utilizar tudo isso sem cair em estereótipos, criando coisas completamente novas e de tirar o fôlego.
Seguindo as pistas que Gaiman deixa pelo caminho, não é difícil entender o tipo de criatura contra a qual Coraline tem de se armar: uma figura que é representativa dos medos mais primitivos da humanidade. Todos os personagens no livro, desde os habitantes do outro mundo, até o gato e até nossa própria heroína, temem a Outra Mãe. O filme, por sinal, acompanha muito bem a revelação do que ela realmente é, transformando sua aparência até uma forma quase aracnídea, prestes a prender Coraline em sua teia. O poder da Outra Mãe é algo que não conseguimos nem imaginar; especialmente em seu próprio mundo, ela é praticamente onipotente.
O importante, contudo, é não desistir. E isso é algo que Coraline constantemente repete para si mesma: ela é uma exploradora, ela é corajosa e que o te faz realmente bravo é fazer algo mesmo quando você está com medo. Não se deixar levar pelo temor, enfrentá-lo, é o principal tema de Coraline. Essa é uma das primeiras lições que aprendemos nos contos de fadas e é uma das razões pelas quais o livro é tão envolvente para o leitor, qualquer que seja sua idade. Se Coraline pode enfrentar seus medos - sozinha - e derrotar a Outra Mãe, então nós também podemos fazê-lo. Também podemos enfrentar nossos próprios monstros debaixo da cama. Por que, ao final das contas, como Gaiman bem nos lembrar ao escolher introduzir o livro com a epígrafe de Chesterton: “Contos de fadas são a pura verdade: não porque nos contam que os dragões existem, mas porque nos contam que eles podem ser vencidos.”
Outras Recomendações de Leitura: Tentei não me repetir, mas fato é que já escrevi sobre Coraline antes. Se você gostou de Coraline, bem todas as outras obras de Gaiman são recomendadas, mas faço uma especial recomendação para O Livro do Cemitério, que também tem tudo a ver com o All Hallow’s Reads. Ainda, sobre a verdadeira natureza das criaturas de Faerie, ninguém escreveu melhor que Pratchett em Lordes e Damas, embora Jonathan Strange e Mr. Norrell também seja uma boa pedida. Para fechar no clima de dia das crianças, indico também Chris Priestley, com Contos de Terror do Tio Montague e Contos de Terror do Navio Negro.
A Coruja
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