25 de maio de 2020
Night Watch: tiranos, uma Revolução Gloriosa e a banalidade do mal
'Você gostaria de Liberdade, Verdade e Justiça, não gostaria, camarada Sargento?' perguntou Reg encorajador.
'Eu gostaria de um ovo cozido,' respondeu Vimes, sacudindo a caixa de fósforos.
Houve algum riso nervoso, mas Reg pareceu ofendido.
'Nas circunstâncias, Sargento, eu penso que poderíamos focar um pouco mais alto--'
'Bem, sim, nós poderíamos' retrucou Vimes, descendo os degraus. Ele lançou um olhar para os papéis na frente de Reg. O homem se importava. Ele realmente se importava. E ele estava sério. Realmente estava. 'Mas... bem, Reg, amanhã o sol virá de novo, e eu tenho bastante certeza que o que quer que aconteça não teremos encontrado Liberdade, e não haverá muita Justiça, e tenho absoluta certeza que não teremos encontrado a Verdade. Mas é possível, talvez, que eu consiga um ovo cozido.'
Night Watch abre com uma cena de perseguição policial pelos becos e telhados de Ankh-Morpork, envolvendo Samuel Vimes, Comandante da Guarda, e Carcer, um psicopata que prefere policiais como suas vítimas. Vimes consegue encurralar o assassino no telhado da Universidade Invisível, mas, em meio a uma tempestade mágica, os dois despencam não apenas no espaço, mas através do tempo, até trinta anos no passado, às vésperas do que ficou conhecido como a Revolução Gloriosa e a República da Estrada Mina de Melaço - um breve e sangrento momento na história da cidade.
Já resenhei antes esse livro aqui no Coruja (bom, eu resenhei todos os quarenta volumes da série Discworld… é só buscar lá no índice). Mas hoje é 25 de maio, data da Revolução Gloriosa, e o dia que fãs do Pratchett celebram o autor e sua obra. Tendo comprado a edição de colecionador de Night Watch (é o meu favorito afinal), parecia-me uma boa desculpa para relê-lo. Curiosamente, eu não esperava perceber que o enredo - com o qual eu já era familiar - tivesse tanto a ver com o momento que temos vivido.
Embora seja uma espécie de paródia de Os Miseráveis, do Victor Hugo - com direito a revolucionários, barricadas, Vimes e Carcer fazendo as vezes de Javert e Valjean -, Night Watch não segue a linha de humor rasgado e subversão de clichês, que é uma das características da série Discworld. Na verdade, ele é um dos livros mais sérios e mais sombrios do Pratchett, uma longa reflexão sobre a diferença entre leis e justiça, moral e pragmatismo, barbárie e civilização. Em outras palavras, é uma fantasia escrita sob medida para discutir a ideia da banalidade do mal.
Creio que muitos por aqui conheçam o conceito, cunhado pela filósofa Hannah Arendt. A banalidade do mal está intimamente ligada à experiência totalitária. O mal, para Arendt, nada tem a ver com religião e pecado; a ideia aqui é que as pessoas podem fazer coisas horríveis, sem que haja uma intenção realmente maligna por trás. Elas fazem parte de um processo que naturaliza esse comportamento, um processo que diz “estamos apenas seguindo ordens”, autômato, burocrático, que trivializa a violência.
No passado onde Vimes e Carcer vão parar, Ankh-Morpork é governada por Lorde Winder (também conhecido como “o homicida”), um aristocrata paranóico que, após sobreviver a uma tentativa de assassinato realizada por um jovem insano, surta de vez. Além de se cercar de guarda-costas e provadores de comida, e ver teorias da conspiração e traidores por todos os lados, Winder cria uma polícia secreta especial, os Particulares de Cable Street, conhecida entre a população como “os Imencionáveis”. Essa polícia secreta é especializada em conseguir confissões, qualquer que seja a maneira necessária para extraí-las.
Winder e seu governo vivem fora de contato com a realidade, passando leis que só são benéficas a eles mesmos, incluindo aumentos constantes de impostos, além de um toque de recolher que permite aos imencionáveis simplesmente sumir com as pessoas que eles prendem nas ruas. Qualquer desculpa é válida para levar alguém para o quartel general dos Particulares, em Cable Street. A Guarda tem de se subordinar aos desmandos dos Particulares, e é nesse contexto que Vimes chega ao passado, para confrontar não apenas tudo aquilo que sabe que vai acontecer, mas seu próprio papel em tais fatos. E, no processo, acaba por se tornar mentor de si mesmo, ao ser obrigado a assumir a identidade do sargento John Keel.
Enquanto Vimes, no papel de Keel, começa a passar em revista a dúbia moralidade da Guarda e ensinar ao jovem Vimes o que ele precisa saber para ser um bom policial, as conspirações contra Winder deixam de ser apenas teoria e fervilham pela cidade. Nos bastidores, um sucessor digno está sendo preparado para o cargo de Patrício. Snapcase parece bastante são, e, a essa altura dos acontecimentos, o povo quer que haja mudanças de forma tão fervorosa que eles vão aplaudir qualquer um que suceda Winder, sem parar para pensar ou investigar as promessas feitas de antemão por alguém que, essencialmente, é um traidor. “Todos terão uma voz quando Snapcase estiver no poder.”
“Todo mundo diz que será Snapcase no Palácio. Ele escuta as pessoas."
"É, ‘tá certo," respondeu Vimes. “E eu escuto o trovão. Mas não faço nada sobre o assunto.”
Como o Vimes que já passou por tudo isso bem sabe, o remédio será tão amargo quanto: Snapcase não é insanamente paranóico, mas um sádico sedento de poder, que lançará Ankh-Morpork em várias guerras com vizinhos, e que, além de fazer parte de uma cultura extremamente militarizada, também é um entusiasta defensor de métodos de tortura. Segundo consta de Interesting Times, Snapcase acaba sendo retirado do cargo (e enforcado) após forçar um rapazote, julgado por um crime não especificado, a comer o próprio nariz.
Vimes não pode de fato mudar a História - ou pelo menos é isso que os Monges do Tempo lhe dizem -, de forma que ele tem de participar da Revolução e cumprir o papel que a História lhe impôs, sabendo que nada vai mudar de fato. Quando a revolução acaba, as pessoas continuam a viver como antes e o governo continua tão ruim, talvez até pior do que era. Então, tudo o que ele pode fazer é ensinar ao jovem Vimes aquilo que ele precisa saber para chegar ao futuro (presente): a agir da forma correta, não apenas na letra da lei, mas no espírito da justiça. Isso significa não deixar sua vingança pessoal se sobrepor ao seu dever; significa não matar um homem desarmado mesmo que você saiba que esse homem é um torturador (que ‘apenas’ seguia ordens e se orgulhava de sua eficácia), significa confiar na realidade de um julgamento em vez de se arvorar juiz e executor.
A justiça, para Vimes, não significa simplesmente a punição do culpado, mas a proteção do inocente. Esse é o papel que ele entende pertencer a si e é com esse pensamento que Vimes contém seus próprios impulsos mais violentos (ou “A Besta”, como ele chama). É nessa máxima que ele se apoia ao enfrentar os Particulares e organizar a construção das barricadas contra o Exército mobilizado contra a população no espaço que será conhecido como a República da Estrada Mina de Melaço. Enquanto os nobres aproveitam a confusão na cidade baixa para colocar em funcionamento seus planos e se livrar de Lorde Winder, Vimes tenta ao máximo reduzir o que ele sabe será um banho de sangue, quando o exército avançar contra os civis desarmados e desesperados que se escondem por trás das barreiras.
As pessoas do lado do Povo sempre terminam desapontadas, de toda forma. Elas descobrem que o Povo tende a não ser agradecido ou apreciativo ou progressivo ou obediente. O Povo tende a ser mesquinho e conservador e não muito esperto e até mesmo desconfiado de esperteza. E assim as crianças da revolução se veem às voltas com o velho eterno problema: não é que você tem o tipo errado de governo, o que é óbvio, mas que você tem o tipo errado de gente.
Assim que você passa a enxergar pessoas como algo a ser mensurado, elas não chegam à medida que você espera. O que iria correr pelas ruas em breve não seria uma revolução ou tumulto. Iam ser pessoas com medo e em pânico. Isso é o que acontecia quando a máquina da vida urbana falhava, as rodas paravam de girar e todas as pequenas regras quebravam. E quando isso acontecia, humanos se revelam piores que ovelhas. As ovelhas apenas correm, elas não tentam morder a ovelha próxima a elas.
Assim como o grupo de torturadores de Cable Street, a polícia secreta de Lorde Winder, os comandos militares são também exemplo da banalização do mal, quando não têm coragem de dizer não e investem contra a multidão. Estamos cumprindo ordens, dizem eles, e assim lavam as mãos das consequências, porque não é responsabilidade deles questionar as ordens que recebem. Não é da conta deles, a revolução se tornou “um fato político”. E a elite aristocrática que organizou o golpe e planejou o assassinato de Winder - em vez de confiar na possibilidade de um julgamento justo -, ao ser confrontada com a crueldade que Snapcase escondia sob um fino verniz de civilidade, também não assume sua culpa e concorda apenas que o novo governante é… excêntrico.
Alguns dias atrás estava lendo Shakespeare in a Divided America e no capítulo de conclusão, Shapiro fala sobre uma montagem moderna de Júlio César em que o general romano era interpretado no palco por um sósia de Donald Trump. A ideia do diretor é que a plateia que porventura detestasse Trump sentiria uma espécie de catarse nesse momento, uma satisfação pessoal… para então sofrer um baque quando atores contratados e sentados no meio do público se levantassem para acusar a montagem de incitação criminosa. Pessoas comuns, que se acreditam bons cidadãos, e que por um momento se deleitaram com a imaginação de um assassinato teriam de confrontar aquele seu primeiro impulso. E não posso deixar de pensar que esse primeiro impulso é exatamente a Besta de que Vimes fala, essa natureza que pode parecer uma resposta aceitável, mas está a um passo de distância da barbárie.
Isso me faz lembrar também de Raskolnikóv em Crime e Castigo e sua teoria sobre o Grande Homem e como ele não está sujeito às leis do mundo porque faz suas próprias regras. Se você acha que está acima da lei e por isso pode fazer o que deseja por aquilo que você acredita ser um bem maior, que tipo de limitação então você vai aceitar?
Night Watch não é o primeiro livro em que Vimes se digladia com esses instintos. Mas é, talvez, aquele em que ele mais tem de resistir ao impulso tomar a justiça em suas próprias mãos e se desviar do rígido código de conduta que assumiu para si mesmo, um código que tem muito a ver com o fato de ele ser uma figura de autoridade e saber que, se ele perder as rédeas de si mesmo, ninguém o questionará. A consciência de que nele também está as sementes de um tirano é algum que nunca parece muito longe dos pensamentos do comandante.
Quem sabe o mal que espreita no coração dos homens? Um policial, é claro. (...) Você vê quão perto o homem vive da besta. Você percebe que pessoas como Carcer não são loucos. Eles são incrivelmente sãos. Eles simplesmente são homens sem escudos. Eles olham para o mundo e percebem que todas as regras não têm de se aplicar a eles, se eles assim não quiserem. Eles não se deixam enganar para as pequenas estórias. Eles apertam a mão da besta.
Na lógica de Vimes, a revolução é uma soma de resultado zero. Afinal, se você não joga pelo jogo, e, para derrotar você decido ir pelo mesmo caminho, o que nos diferencia? O que me faz melhor? O que garante que não vou me tornar o opressor no seu lugar? É exatamente isso que acontece na substituição de Winder por Snapcase, e é mais ou menos a mesma coisa que aconteceu nas grandes rupturas históricas pelas quais passamos: Luís XVI por Robespierre (o “incorruptível”, mas também o líder no período do Terror) ou os Romanov por Stalin.
O comandante não cruza os braços esperando o pior acontecer, mas ele não compromete seus princípios e não perde de vista seu dever. Dever, repito, porque Vimes orienta-se por sua vocação, pelo juramento que fez como um oficial da lei, não por ideologias. Acima de tudo, Vimes acredita na justiça e é por isso que, ao final de tudo, ele entrega o culpado para julgamento, em vez de tomar a mesma em suas mãos.
“Você fez um juramento de resguardar a lei e defender os cidadãos sem medo ou favor”, disse Vimes. “E de proteger os inocentes. Isso é tudo o que eles colocam no juramento. Talvez eles pensassem que essas eram as coisas importantes. Nada lá é dito sobre ordens, mesmo vindas de mim. Você é um oficial da lei, não um soldado do governo.”
Esta não é, pois, uma história sobre o triunfo da Revolução. Vimes não consegue salvar aqueles que ele sabe que morreram pela traição do novo Patrício. Mas não é a intenção do livro mudar a História, “consertar” tudo o que Vimes sabe que deu errado. Pratchett não está interessado em respostas simples ou utopias. Talvez por isso mesmo, reler Night Watch agora, a luz de tudo o que tem acontecido e do momento que vivemos, seja tão impactante e faça-o parecer quase presciente.
Depois de tudo isso, o leitor pode pensar que se trata de um livro difícil e trágico. Surpreendentemente, não é. Night Watch é complexo, sim, mas o final é esperançoso. Ele permite ver a possibilidade de mudança, a repercussão que as ações da revolução trouxeram, celebra a memória e o impacto daqueles que estavam lá. No arco de livros sobre a Guarda, é o clímax da redenção de Vimes, que superou todos os seus demônios, não abriu mão de nenhum de seus princípios pelo caminho, e conseguiu, enfim, encontrar paz.
É uma catarse, enfim.
Termino como terminei a resenha original desse livro: lembrem-se da Gloriosa República da Estrada Mina de Melaço. Verdade. Justiça. Liberdade. Amor com Preços Razoáveis. E um ovo cozido.
Use a lavanda.
A Coruja
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Adoro os seus textos, muito obrigada!! ��
ResponderExcluirEu que agradeço! E fico mais que feliz de compartilhar as palavras do Pratchett.
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