16 de maio de 2020

Jane Austen Lives - O Mistério dos Diários Varonis


Participei essa semana de uma segunda live no canal do Jane Austen Brasil no Instagram (sobre a primeira vocês podem ler/ver aqui), tendo sido convidada a falar um pouco da série de diários dos heróis austenianos escrita por Amanda Grange. Alguns anos atrás, resenhei todos os seis volumes (vou deixar o link para as resenhas no final desse post, bem como o vídeo da live da vez) e, desde então, a Grange publicou alguns outros títulos, várias releituras de Orgulho e Preconceito incluindo aí o diário de Wickham e uma versão em que Mr. Darcy é um vampiro.

Em uma entrevista que encontrei no AustenBlog, Grange diz que a ideia para escrever Mr. Darcy's Diary - publicado originalmente em 2005 e o único dos títulos que chegou a sair aqui no Brasil - veio de uma de suas releituras do romance original e reflexões sobre como a história não tinha perdido sua atualidade em duzentos anos, faltando apenas pontos de vista alternativos ao da heroína. Não havia planos para escrever uma série, mas a coisa acabou acontecendo; afinal, ela basicamente acertou um filão de ouro quando se lançou nessa aventura. Praticamente todo leitor de Austen quer mais livros (não contando a Juvenilia e os contos inacabados, são só seis romances) e certamente adoraria ver “o outro lado da moeda” das narrativas.

Grange já publicara alguns romances passados nos tempos da regência, tinha já alguma pesquisa e conhecimento de contexto histórico, que foi utilizado para criar a história de fundo dos heróis, nem sempre presente nos originais. A narrativa tem uma linguagem convincente - você consegue ‘ouvir’ a voz dos personagens, acreditar que está às voltas com um diário escrito naquele período - e há uma boa continuidade com os originais. Pesquisando para a apresentação, vi que algumas pessoas reclamaram que não era muito crível uma pessoa escrever entradas no diário relembrando e esmiuçando cada diálogo que teve ao longo do dia. Contudo, quem já leu algum livro de fato escrito na época e nesse mesmo formato, reconhecerá o formato como característico: Evelina e Pamela estão aí para prová-lo. Podemos até estranhar, mas não é algo que está distante da forma como se escrevia no período em que a própria Austen viveu.

Antes de adentrar o mérito dos livros, tenho algumas notas rápidas a fazer. Eu imagino que se eu sair perguntando por aí hoje que tipo de pessoa mantém diários hoje em dia, são grandes as chances que a maioria responda “adolescentes”. Há exceções (olá, rainha Elizabeth), mas por uma ou outra razão, quer seja tempo, quer seja a necessidade de encontrar formas de se expressar, a adolescência nos parece a época certa para manter um diário. Minha hipotética pesquisa também chegaria à provável conclusão que a esmagadora maioria dos possuidores de diários são do sexo feminino. Pessoalmente, quando me falam de diários, o primeiro nome que me vem à cabeça é Anne Frank, e talvez isso tenha a ver com essa imagem estereotipada de mocinha escrevendo diário que persiste por aí.

É curioso que em suas origens, os diários estão bem longe do estereótipo moderno que temos: talvez o mais antigo exemplo do gênero na cultura ocidental são as meditações do imperador romano Marco Aurélio (aquele mesmo do filme O Gladiador). Viajantes e filósofos orientais, como Lio Ao na China do século IX e Ahmed Ibn Banna, de Marrocos no século XI também deixaram seus diários para a posteridade. No período medieval, muitos doutores teólogos mantinham diários para registrar seus pensamentos e experiências espirituais - as Confissões de Santo Agostinho fazem essa mesma linha, sendo considerada a primeira autobiografia escrita no Ocidente.

Talvez a essa altura seja bom lembrar que papel não era uma coisa tão barata ou fácil de conseguir - podemos apontar a própria Austen como exemplo dessa realidade; quem viu uma página escrita por ela sabe que ela não desperdiçava um espaço em branco, escrevendo até entre linhas, primeiro numa direção do papel, depois na outra. Assim é que ter papel para escrever aleatoriedades sobre sua própria vida é coisa de quem tinha tempo, dinheiro… ou era, por ofício, escritor.

Entre os séculos XVIII e XIX que os níveis de alfabetização aumentaram, o custo do papel caiu e os diários começaram a se popularizar. Inclusive, muita gente publicou seus diários pessoais, que se tornaram importantes documentos históricos para entender a sociedade de antanho.

É mais ou menos por essa época que se passam os romances de Austen. Historicamente, portanto, não é estranho que nossos heróis mantenham diários. Dos seis protagonistas trazidos por Amanda Grange, temos três homens de posses, donos de terras (Darcy, Brandon e Knightley), dois filhos de famílias ricas, encaminhados como clérigos (Bertram e Tilney) e um capitão da marinha que, por sua função, certamente mantinha um diário do dia-a-dia no navio (Wentworth). Eles têm a educação para valorizar a ideia de um diário; o patrimônio para justificar tal tipo de despesa e, com exceção do Wentworth que de fato tem de fazer sua própria fortuna, todos possuem o tempo para desenvolver aquele ócio criativo de que ouvimos falar.

É por essa razão que o título dessa palestra é “o mistério dos diários varonis” (ok, não, a razão principal é que estava revendo a série Sherlock quando a Dri me pediu um título para a apresentação). Escrever diários é uma atividade reflexiva, que demanda tempo, em que o escritor do diário investe muito de si. Isso não parece combinar com a figura do Herói - decidido, ativo, senhor de si - e nossas noções sobre masculinidade. Um diário é, supostamente, um retrato da face mais íntima de seu autor, de suas dúvidas e questionamentos. Escrever um diário te coloca numa posição de vulnerabilidade - independente de você sair ou não confessando todos os seus segredos para o papel. Então, que a Grange tenha escolhido dar voz aos heróis austenianos pelo recurso de diários pode parecer um mistério à primeira vista, mas não é.

Para além das questões práticas, os padrões de masculinidade da época são diferentes; estamos quase que no início da Era Romântica e do grande advento da classe burguesa - há uma valorização da educação, urbanidade, sofisticação e sentimentalismo. O que estou tentando explicar dando tantas voltas é que no contexto da época e do caráter dos personagens, que todos eles mantenham diários faz sentido. Que eles revelem suas dúvidas, o coração por baixo da casaca, também. Os heróis da Austen são sólidos, generosos e, sim, permitem-se ser vulneráveis - cada uma das declarações que eles fazem demonstram isso - e talvez por isso mesmo eles sejam tão fascinantes. Foi por entender isso que Amanda Grange conseguiu fazer sua série funcionar tão bem.

Pessoalmente, uma das coisas que mais valorizo num romance - o que faz com que eu realmente me encante com uma história - é a capacidade que os personagens têm de impactar o senso de identidade do outro. Não é a ideia do “você me completa” ou coisa parecida, mas sim de que “eu sou a melhor versão de mim mesmo quando estou ao seu lado”. Através do relacionamento - e não digo apenas amoroso - o personagem amadurece, sua forma de ver o mundo cresce. Austen sabe utilizar essa mecânica muito bem, praticamente todos os seus protagonistas fazem essa jornada.

Orgulho e Preconceito é um ótimo exemplo disso. Lizzie ganha um melhor entendimento de si mesma por influência de Mr. Darcy; e o mesmo acontece a ele; a versão da Grange para esse processo é excelente, gosto muito de ver Darcy ir da indignação com o não da moça para a compreensão de sua própria arrogância e seus erros. O Diário de Mr. Darcy é, ironicamente, o único da série que não resenhei previamente, mas fica aqui meu selo de aprovação. No entanto, devo complementar dizendo que a trilogia Fitzwilliam Darcy, Gentleman da Pamela Aidan é a melhor releitura não apenas do Darcy, mas de todas as releituras dos romances austenianos que já li.

Meus favoritos da Grange são os diários de Mr. Knightley, Henry Tilney e Edmund Bertram. Destaco particularmente o do Bertram, que me fez ter uma visão bem mais favorável do herói de Mansfield Park, mudou algumas coisas da minha interpretação. Por outro lado, tive algumas ressalvas a fazer para a versão da história do Capitão Wentworth e do Coronel Brandon. Minha impressão nesses dois é que, quanto mais a Grange se distancia do material original - no caso, a criação de um passado, um inteiro background que é apenas delineado por Austen - mais complicado se torna manter a autenticidade da voz dos personagens. Não é impossível fazê-lo: Susan Kaye conseguiu me convencer na voz do capitão em sua duologia. Grange, contudo, consegue recapturar a atenção quando os eventos de ambos os diários alcançam o início de Persuasão e Razão e Sensibilidade, respectivamente.

Não me estenderei muito mais, porque acho que já escrevi aqui mais do que falei na live (e eu falei muito…) e vocês podem ir direto para as resenhas de cada livro para saber sobre cada um individualmente. Mas vamos à conclusão ou passarei o dia aqui...

Leitores puritanos de Austen podem torcer o nariz para essas releituras. Por um lado, concordo com o ponto de vista que ler Austen apenas para suspirar pelos cantos em razão do romantismo é desperdiçar a profundidade, a elegância, o rico comentário social, a genialidade imbuída em cada uma dessas narrativas. Por outro, não existem leituras erradas e ninguém tem de se meter e julgar o que as pessoas querem ler. E às vezes, de verdade, o que precisamos é de uma dose de açúcar direto na veia.

Grange responde a essa necessidade. Ela não tem aqui nenhuma pretensão mais ambiciosa que brindar o leitor com uma narrativa leve, divertida, apaixonante. Você não precisa mergulhar de cabeça no contexto histórico-social-político-e-o-que-mais-vier-pela-frente para desfrutar dessas leituras. Livros podem ser um refúgio, um lugar de conforto, um escape da realidade. Considerando o que temos acompanhado nas notícias nos últimos tempos, escapar para Pemberley me parece bem oportuno.

Termino hoje lembrando que, num dos ensaios de seu Sobre Histórias, C. S. Lewis parafraseia Tolkien para dizer que as pessoas mais preocupadas com a ideia de fuga, e mais hostis a ela, são os carcereiros. Então lembrem-se disso quando alguém disser que seu gosto literário é um escape da realidade. E leia o que te der na telha.



Bibliografia

Série Jane Austen Heroes, por Amanda Grange
Mr. Knightley's Diary
Captain Wentworth's Diary
Edmund Bertram's Diary
Colonel Brandon's Diary
Henry Tilney's Diary

Trilogia Fitzwilliam Darcy, Gentleman, por Pamela Aidan
An Assembly Such as This
Duty and Desire
These Three Remain


Duologia Frederick Wentworth, Captain, por Susan Kaye
None But You
For You Alone

Continuem acompanhado o projeto Jane Austen Lives! Inscrevam-se no canal do YouTube, sigam pelo Instagram e também direto no site do Jane Austen Brasil para saber da programação das próximas lives!


A Coruja


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