8 de outubro de 2019
Dez Anos em Dez Ensaios - Um Atlas Particular de Lugares (não tão) Imaginários
Num dos ensaios do livro Confissões de um Jovem Romancista, Umberto Eco observa como certos personagens da ficção se tornam tão verídicos para seus leitores que passamos a buscar por eles em lugares reais. São o que ele chama de ‘personagens flutuantes’, conhecidos mesmo de quem nunca pegou o livro de onde eles se originaram. É esse efeito que levou centenas de pessoas a escreverem para Conan Doyle, chamando-o de carniceiro pela morte de Sherlock Holmes (mesmo antes disso, eram aqueles que escreviam para Doyle acreditando que ele poderia encaminhar suas correspondências para o bom doutor Watson); e que deu origem ao Bloomsday, a celebração da jornada de Leopold Bloom, o protagonista do Ulisses de James Joyce.
No translado da obra original ao imaginário coletivo, a ficção acaba ganhando corpo, sangue e outros fluidos. Há quem se apaixone e transforme seu personagem favorito num ideal de par romântico perfeito - algo que não considero particularmente saudável, mas, bem, quem sou eu para julgar? No Japão, já tem gente casando com hologramas, e um coreano decidiu contrair matrimônio com seu travesseiro de abraçar.
Objetos de significado na história se tornam objetos de desejo reais. Alguns recriam cenários - já vi cantinhos de leitura que se parecem com o armário que leva a Nárnia, para não falar de tocas de hobbit em vários lugares do mundo. Outros transformam suas celebrações pessoais em espetáculos criativos que lhes permitem penetrar por alguns instantes no mundo pelo qual anseiam - casamentos que se inspiram no mundo bruxo de J. K. Rowling, ou nos reinos élficos de J. R. R. Tolkien (o pinterest está repleto de exemplos).
Há quem vista fantasias e se deixe mergulhar por algumas horas no personagem. Grandes encontros das sociedades austenianas na Europa e Estados Unidos costumam terminar em bailes organizados como na época da Regência, e quem pode, comparece devidamente caracterizado. Eu mesma já me vesti como uma mocinha dos romances da Austen para apresentar os encontros nacionais da JASBRA cá no Brasil.
Além de tudo isso, claro, há quem viaje. Quem conhece o Coruja de tempos, sabe: sou uma viajante que gosta de seguir os passos de personagens flutuantes. Meu mapa-múndi mental é um mapa de histórias, dividido entre autores e personagens. Alguns são propositais - já visitei ou pretendo visitar algum dia. Outros, só fiz a ligação depois de estar no lugar. E assim fui montando meu atlas de lugares não tão imaginários, importantes pelo significado pessoal que têm para mim.
Tenho uma lembrança extremamente vívida de quando fui ao Château de Fontainebleau, uma visita que fiz pelas referências napoleônicas, mas que se fixou em minha memória pela ligação com Os Três Mosqueteiros. Confesso que nem tinha ligado muito as aventuras de D’Artagnan ao local - eu pensava nele e em seus companheiros no Louvre e em Versalhes - mas quando descobri os aposentos de Ana d’Áustria, o romance de Dumas foi tudo que me veio à cabeça.
Fontainebleau é um palácio menos famoso que Versalhes e houve vários momentos e lugares em que fiquei praticamente sozinha (com exceção dos vigias em cada sala), absorta no que via sem ninguém para interromper ou uma babel de linguagens ao redor. Lembro particularmente de me recolher num corredor vazio e olhar pela janela para o pátio atrás do palácio e, por um momento, vislumbrar uma cena de cavaleiros desmontando seus corcéis. Na época, fazia anos que eu tinha lido Os Três Mosqueteiros (por coincidência, reli esse ano, para um dos encontros do clube do livro), mas a impressão que o livro e seus personagens me deixaram foi tão forte que, naquela alcova de um corredor vazio, eu me senti transportada ao passado.
O que me lembra de prometer que algum dia visitarei a cela de Edmund Dantès no Château d’If. E também de ir Vaux-le-Vicomte para lembrar da festa de Fouquet para Luís XIV e mais aventuras dos mosqueteiros. Talvez até colocar flores para eles em la Rochelle. A próxima vez que estiver na França, vou fazer um roteiro todo inspirado em Dumas...
Oxford me presenteou com uma lembrança tão visceral quanto a de Fontainebleau. Fronteiras do Universo foi outro dos livros que descobri na adolescência e que me marcou sobremaneira. O final da história é agridoce, mas perfeito para o mundo que Pullman costurou nos três volumes da série. A promessa de Lyra e Will de visitarem o mesmo lugar uma vez por ano, cada um em seu mundo, sempre me deixava de olhos rasos e assim é que bati o Jardim Botânico inteiro atrás do banco em que os personagens teriam escrito seus nomes. D’Artagnan tinha ao menos um pé na realidade e vários dos personagens de Os Três Mosqueteiros realmente existiram. Os nomes no banco eram uma referência completamente fabricada, eu sabia disso racionalmente. Isso não me impediu de ir às lágrimas quando sentei naquele lugar.
Oxford, na verdade, é um lugar maravilhoso para turismo literário. Quando estive lá, bati ponto em todas as faculdades de alguma forma ligadas a uma miríade de escritores: Lewis Carroll, J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis, Connie Willis e Philip Pullman. Achei o pub em que os Inklings se reuniam, a porta da casa que teria inspirado o armário para Nárnia e a casa em que morou a verdadeira Alice Liddell.
Continuando na Inglaterra, fui à Bath. Bath é uma cidade linda, um delicado bibelô. Quando penso nela, lembro sobretudo das flores, de caminhar por ruas de pedra mais antigas que nosso país, de parar para assistir um grupo tocando músicas folclóricas e depois passar por pessoas vestidas com roupas de época. Lembro de me sentar na abadia e pensar “Northanger?”. De sair marcando no mapa: Sydney Gardens, Pump Room, Pulteney Bridge, Assembly Rooms, Royal Crescent, tudo pensando com meus botões ‘aqui esteve Catherine Morland e Henry Tilney. Aqui se encontraram Anne Elliot e o Capitão Wentworth. Aqui morou Jane Austen’. E, embora eu tenha conseguido ver aqui tudo o que queria ver, Bath é uma cidade que eu gostaria de voltar a visitar. Mais que um lugar, Bath é ela mesma uma personagem dos romances de Austen. Para completar meu périplo austeniano, de uma próxima vez, terei de ir a Lyme Regis (que descobri ser bem importante para Tolkien também).
Tive experiências parecidas em lugares como Notre-Dame, onde cada sombra parecia trazer um pouco do Monsenhor Frollo e de Quasímodo; ou 221B Baker Street; e ainda Leadenhall Market, que parecia a entrada do Beco Diagonal no mundo real, ambas em Londres. A Catedral de St. Paul estará para sempre ligada à noveleta de Connie Willis, Vigia de Incêndio, e Hyde Park, aos romances da família Bridgerton. Isso para não falar nas casas dos escritores - visitas para ver onde a magia acontecia: a morada de Dante Alighieri em Florença; o chalé de Austen em Chawton; o casarão em que Shakespeare nasceu e os jardins onde a mansão que ele construiu existia; os apartamentos de Victor Hugo em Paris. Em Buenos Aires e Lisboa, foi imperativo ir aos cafés que Borges e Pessoa frequentavam.
(Antes que alguém pergunte, faço essas coisas na minha cidade também. A faculdade em que estudei é ligada a nomes como Castro Alves, Joaquim Nabuco, Raul Pompéia, Câmara Cascudo e Ariano Suassuna (entre muitos outros). Lá perto fica o Espaço Pasárgada, casa em que morou Manuel Bandeira - e inspirada em seu Evocação do Recife, tenho meu próprio roteiro sentimental da cidade, e também a de Clarice Lispector, ali junto da praça Maciel Pinheiro. Um pouco mais longe está a morada de Gilberto Freyre. E, pelo centro, uma série de estátuas de famosos autores compõem o chamado ‘circuito da poesia’.)
Quando fui à Escócia numa excursão, meu ônibus passou pela floresta de Sherwood e foi por pura sorte que estava acordada para ver a placa ao passarmos por ela, pois o guia não avisou e nem entendeu porque fiz tanta questão de questionar - na opinião dele, não era algo suficientemente importante para chamar a atenção, já que Robin Hood era pura invenção. Em Winchester, eu me plantei na frente da Távola Redonda e me perguntei por Merlin. Estaria o mago ainda em sua prisão, em alguma floresta próxima dali? Dane-se o fato de que a mesa não seja mais bem uma mesa, mas um painel na parede; tão pouco me vale que a pintura seja da Era Tudor. As histórias de Camelot e Avalon, as aventuras de Galahad e Robin Hood, a imagem de Morgana e Lady Marian - tudo isso faz um pouco parte de mim. Eu cresci com elas. As histórias importam.
Como leitora, sou impactada pelas histórias que consumo. Elas me comovem, encantam, por vezes causam até arrepios. São ficção, eu sei, mas os sentimentos que elas provocam quando lidas são verdadeiros e pessoais. Quanto maior a emoção que elas são capazes de extrair, menos abstratas elas se tornam. Sim, é possível viajar apenas virando as páginas de papel. Mas isso não significa que não queremos tocar, fazer parte da magia.
Assim é que, na minha caixinha de jóias, estão o Um Anel e o Evenstar, além de um vira-tempo. Na bancada, excalibur é usada como abridor de cartas (sou daquelas que ainda escreve e recebe cartas) e minha estante é uma amálgama de souvenires de viagem, um número estapafúrdio de corujas, bustos de escritores e figures de personagens. Numa prateleira vive a Sociedade do Anel; em outra estão Holmes e Watson; depois Alice, o gato Cheshire e o Pequeno Príncipe; e mais abaixo Jareth, o rei Goblin, divide espaço com Nessie, o monstro do lago. É uma bagunça, mas há algo de extremamente satisfatório em ter todos esses regalos à vista, um tanto representativo do universo que existe dentro da minha cabeça.
Real ou imaginário, isso é o menos importante. Ainda que fatos também me interessem, no mais das vezes, eles estão ligados à construção de uma narrativa. Então, sim, a verdade é essa: as histórias me movem. Em todos os sentidos.
Há religiões que possuem em seus princípios peregrinações religiosas. Estar num determinado lugar considerado sagrado é uma experiência... inefável - como Crowley e Aziraphale provavelmente diriam. Pode parecer um exagero a comparação, mas peregrinações literárias vão além de simples visitas a locais históricos - e, às vezes, nem históricos em si, se levarmos em consideração, por exemplo, os estúdios em que foram gravados os filmes de Harry Potter. Outro exemplo é visitar um lugar em que ocorreu uma batalha por curiosidade, talvez até por interesse pessoal - um parente ou conhecido pode ter lutado ali. Na minha experiência, contudo, quando você ama uma história, quando já se perdeu entre as páginas de um livro ou as cenas de um filme e, de repente, tem oportunidade de conhecer pessoalmente o lugar que inspirou aquela narrativa… isso é algo sublime.
Peregrinações religiosas ganham sentido na fé, na crença... nos contos e relatos. No final, peregrinações literárias se baseiam no mesmo princípio. Quando narrativas, personagens e locais ganham um significado pessoal, também são ressignificadas essas nossas jornadas. Uma jornada do herói, para utilizar o termo do Campbell. Há algo de sagrado, de devoção, em ambos. Por que essa é uma história que diz algo a você, que te inspira e te toca.
Não posso comprar passagens para Hogwarts, ou Minas Tirith, Ankh-Morpork ou Pemberley. Mas posso chegar o mais perto disso que a realidade permite. E é por isso que associo cidades à figura de seus autores e, quando viajo, minhas jornadas sempre me levam a lugares que têm a ver com histórias. Meu atlas particular de lugares imaginários e não tão imaginários assim.
Dez Anos em Dez Ensaios: todas as minhas viagens mais significativas do ponto de vista de ‘peregrinação literária’ foram feitas depois que eu já tinha o blog. Elas foram documentadas, em maior ou menor grau de detalhes em vários posts especiais, baseados nos diários de viagem que escrevi enquanto batia perna e andava - como costuma dizer D. Mãe - ‘mais que notícia ruim’. Ainda há muitos lugares para visitar na lista, e talvez daqui há dez anos eu esteja de novo falando do assunto por aqui. Porém, enquanto não começo a elaborar novos roteiros, seguem os links para os vários especiais que já apareceram no Coruja sobre o tópico:
2012: França e Portugal || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI - Parte VII - Parte VIII - Parte IX
2013: Argentina, Inglaterra, França e Itália || Parte única
2014: Escócia e Inglaterra || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV
2018: França, Bélgica, Inglaterra e Portugal || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV
A Coruja
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