4 de maio de 2018

Por Nárnia! || Parte I: Um Mago Professor


Vez que em 2018 celebramos 120 anos do nascimento de Clive Staples Lewis - mais popularmente conhecido pelas iniciais - decidi que era tempo de adentrar o guarda-roupa e explorar sua mais famosa criação. A data oficial é novembro, mas como todos aqui sabem, maio é o aniversário do Coruja e isso significa um especial quase monográfico sobre alguma obra, autor ou personagem favorito desta que vos escreve. Somando tudo, como eu poderia resistir a fazer o especial desse ano sobre Nárnia?

Descobri o nome de Lewis em associação a Tolkien, como um dos Inklings - o famoso grupo literário que se formou em Oxford e que viu o nascimento de algumas das mais notáveis obras da ficção fantástica moderna. Não cheguei a ler nada dele a essa época, não sei dizer exatamente por qual motivo… Foi só mais tarde, quando uma colega de turma no meu primeiro ano de faculdade praticamente me obrigou a pegar emprestado O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, que realmente comecei a lê-lo.

Tinha uns dezoito para dezenove anos e era uma criatura bem idealista. Talvez exatamente por isso, a narrativa de Lewis tenha me fisgado com tanta força, motivo pelo qual terminando aquele primeiro volume emprestado, tratei de ir atrás das outras crônicas - que acabei ganhando de aniversário de outra amiga, essa dos tempos do colégio. E aí li tudo antes que a adaptação do primeiro livro chegasse ao cinema. Não me lembro de ter feito releituras nesse meio tempo, de forma que faz mais de uma década desde minha primeira visita à Nárnia. Revisitar os livros esse ano me lançou numa estranha nostalgia, embora também tenha me aberto os olhos para algumas reflexões que não me passaram pela cabeça naquele tempo.

Às vezes, esse tipo de empreendimento é um risco: significa pôr à prova uma história que você amou e que pode não resistir à passagem dos anos; você vai mudando e um conto que foi capaz de te tocar no passado talvez tenha perdido aquele sentido pessoal no presente. Descobrir que algo que foi gigante aos seus olhos na infância ou adolescência acabou por se apequenar com a maturidade, é triste, porque parece que perdemos algo essencial, uma memória afetiva ou mesmo parte da nossa própria identidade.

Antes, contudo, que coloquemos Nárnia à prova do tempo, falemos de Lewis.

A primeira coisa a saber sobre Clive Staples Lewis (que preferia ser chamado pelo apelido de Jack) é que ele era irlandês; uma informação que me pegou completamente de surpresa quando comecei sua biografia, já que eu sempre o associara a algo quintessencialmente inglês. Ele nasceu em Belfast, em 1898, um período conturbado na história de seu país: movimentos separatistas; tensões entre católicos e protestantes; a repressão inglesa; o estabelecimento da República da Irlanda, separada do Reino Unido; e a fundação do IRA na Irlanda do Norte, que permanecera sob domínio da Inglaterra, são alguns dos episódios que vêm à mente. Tudo isso junto deixou um forte impacto na cultura irlandesa: o ímpeto nacionalista e separatista são uma marca de sua literatura na virada do século XX, algo que simplesmente inexiste na obra de Lewis.

O motivo para isso é que ele foi 'exilado' muito cedo para a Inglaterra. Tendo perdido a mãe aos 9 anos, Lewis foi logo em seguida enviado pelo pai a uma sucessão de internatos, lugares em que ele pouco se encaixava devido a seu desapreço por atividades mais atléticas, um dos bastiões do sistema educacional inglês. Exceto por algumas visitas esporádicas à família e amigos, após sair da primeira infância, Lewis nunca chegou a de fato morar na Irlanda. Para além disso, embora fosse de família protestante, tornou-se ateu antes mesmo de completar 20 anos. No final das contas, suas referências ficaram todas divorciadas do furor político da época, e nem mesmo os irlandeses parecem fazer questão de clamá-lo como um de seus talentos.

Por outro lado, ainda menino, ele se interessou por literatura e mitologia. Lia muito e sempre, aprendendo outras linguagens (incluindo línguas mortas) simplesmente para poder ler no original os clássicos que tanto o fascinavam. Isso o destacou em seus estudos, inclusive para admissão em Oxford, lugar que o fascinava e que ele amou apaixonadamente.

Antes que pudesse começar oficialmente como aluno em Oxford, contudo, Lewis percebeu que não teria como fugir à convocação para lutar na Primeira Guerra Mundial. Inscreveu-se então no Curso de Treinamento para Oficiais - apresentar-se voluntariamente significava começar no exército com uma patente de oficial, em vez de ser convocado como soldado raso - onde sua natureza sociável ajudou-o a fazer muitas amizades. Problema era que, embora o rapaz fosse inteligente e estudioso, ele era uma negação com matemática. E isso fazia toda a diferença para indicação de posto: fosse bom com cálculos, Lewis poderia ter sido designado para a artilharia, o que significava estar mais distante do front, numa posição mais segura. Não sendo, foi colocado na infantaria e enviado para combater nas trincheiras do Vale do Somme, na França.


Hoje em dia, lembramos de forma muito mais contundente dos eventos da Segunda Guerra - os crimes perpetrados pelos nazistas são uma marca indelével na história da humanidade. Para os europeus, contudo, a Primeira Guerra Mundial e suas trincheiras foi muito mais traumática, e a batalha do Somme, uma das maiores - e mais inúteis - de todo o conflito. Foi o início do uso de tanques - o marco inaugural do que chamamos de “guerra moderna”. Estima-se que mais de um milhão de soldados tenha morrido para a conquista de pouco mais de 300 km²; os britânicos, em sua maioria jovens inexperientes, sofreram baixas superiores a cinquenta mil homens só no primeiro dia, isso numa batalha que se arrastou por cinco meses, de julho e novembro de 1916.

Lewis chegou ao Somme cerca de um ano após essa batalha, mas a carnificina continuava. Para além do combate contra os alemães, havia ainda as próprias deploráveis condições das trincheiras. Até o final da guerra, do grupo de amigos que se tinha formado quando do treinamento em Oxford, ele seria o único sobrevivente.

Mais tarde, a geração que cresceu durante a Grande Guerra foi chamada de ‘Geração Perdida’ ou ainda, a ‘Geração em Chamas’. Gertrude Stein teria cunhado a expressão, popularizada por Hemingway na epígrafe de O Sol Também se Levanta. O significado do termo tanto tinha a ver com a desilusão que muitos carregaram consigo ao final do conflito, como com as perdas humanas, ‘a flor da juventude’ destruída nas trincheiras.

Entre os amigos perdidos no front, estava Edward Francis Courtenay Moore, ou Paddy, que Lewis conheceu durante seu treinamento para oficiais. Paddy apresentou Lewis a sua mãe, Jane Moore e sua irmã, Maureen, e, antes de partirem para o front, os dois fizeram um pacto que, se um dos dois morresse e o outro sobrevivesse, cuidaria da família daquele que falecera.

Ferido em abril de 1918 por uma granada, Lewis foi enviado de volta para a Inglaterra. Jane Moore foi sua enfermeira, visitando-o constantemente no hospital; mais tarde, quando teve alta, Lewis passaria a morar com as Moore, cumprindo a promessa que fizera a Paddy. À época, seu relacionamento com o pai - que já era distante devido à separação e os internatos - tornou-se ainda mais complicado. Jane Moore, que já era divorciada quando conheceu Lewis, tornou-se, junto com a filha, o porto seguro do rapaz; Lewis a chamava carinhosamente, mesmo em suas cartas, de sua mãe. Biógrafos que estudaram sua correspondência e conversaram com seus conhecidos (incluindo Maureen Moore) acreditam porém que, a despeito da diferença de idade - quando se conheceram, Lewis tinha 18 anos e a senhora Moore, 45 - os dois foram amantes.

Fato é que Albert Lewis nunca chegou a visitar o filho enquanto ele esteve convalescente. Quando os dois estiveram juntos em 1919 e Albert questionou a situação financeira de Lewis - que agora sustentava as Moore -, eles praticamente romperam relações. Depois disso, Lewis foi inventando mentiras e somando dívidas, pegando todo tipo de trabalho que lhe aparecia, até que em 1925 foi contratado como professor no Magdalen College. Isso lhe deu autonomia suficiente para não ter mais que se preocupar com o pai. Quando Albert foi diagnosticado com câncer em 1929, Lewis chegou a visitá-lo em Belfast, mas não passou muito tempo; o pai terminaria falecendo sozinho, quatro dias após o retorno do filho a Oxford. Bem mais tarde, Lewis reconheceria seu erro: em uma carta de 1954 ele escreveu que “tratei meu próprio pai de modo abominável, e agora nenhum pecado em toda a minha vida me parece tão grave”.

Seja como for, Lewis manteve-se ao lado da senhora Moore até a morte desta, mesmo depois de ela ser diagnosticada com demência e tornar-se cada vez mais autoritária e inflexível - talvez até como um reflexo da culpa que levava pelo abandono do pai. Ele e o irmão mais velho, Warren, compraram junto com Jane Moore uma casa em 1930 e os três, mais Maureen, viveram ali por toda a vida. Hoje, a casa é administrada pela Fundação C. S. Lewis, tendo sido transformada num espaço de estudo.


Voltando um pouco no tempo… Com o fim da guerra e a desmobilização, Lewis pode retornar aos estudos, tendo se formado com louvor. Começou sua carreira como tutor em filosofia em 1924 e, a partir de 1925 passou a lecionar literatura inglesa em Magdalen College - parte da universidade em Oxford. Em 1926 fez amizade com outro professor da cátedra, John Ronald Reuel Tolkien, uma amizade que o influenciaria profundamente, tanto em sua vida pessoal como em sua carreira como escritor. Com Tolkien, Lewis teria criado os Inklings, grupo de escritores e estudiosos que marcaram a literatura e ficção fantástica e a influenciam até hoje. Teriam sido também os argumentos de Tolkien, católico fervoroso, que o levaram de volta ao cristianismo.

Isso é importante porque, embora sua obra acadêmica o tenha feito conhecido, fê-lo em círculos restritos (sua obra mais famosa tratava de alegorias medievais); com a conversão de Lewis e a edição de uma série de livros sobre questões de fé, sua figura tornou-se popular o suficiente para que ele fosse convidado a participar de uma série de programas de rádio sobre religião. Esses programas, realizados pela BBC no início da década de 40, foram posteriormente reunidos no livro Cristianismo Puro e Simples, e levou sua fama para além do Atlântico. Lewis falava de forma clara e didática, do ponto de vista de um leigo; e suas palavras eram uma mensagem de conforto e esperança, algo extremamente necessário considerando o início da Segunda Guerra Mundial.


A questão religiosa é importante também para entender Nárnia - afinal, embora se possa pensar neles como livros infantis, ficção fantástica e escapista, Lewis criou aqui uma alegoria cristã para apresentar os princípios e dogmas fundamentais de sua fé. É possível ler Nárnia divorciado dessa compreensão, mas as coisas fazem bem mais sentido quando levamos isso em consideração.

Jane Moore faleceu em 1951. Um ano antes, Lewis estabelecera correspondência com a escritora americana Joy Davidman, que admirava seu trabalho e procurara conhecê-lo para discutir questões de fé - uma amizade que marcaria seus últimos anos de vida.

Joy era casada, mas separada de fato - seu marido se revelara um alcoólatra violento -, comunista e atéia; mas era também uma poetisa e crítica literária reconhecida, extremamente inteligente e determinada. Sua própria conversão foi influenciada pela obra de Lewis, motivo pelo qual procurou uma forma de fazer contato com ele. Foram dois anos de correspondência e, em 1952, Joy se mudou para a Inglaterra com os dois filhos. Retornou aos Estados Unidos em 53 e, após seu divórcio, em 1954, bem como a ‘caça às bruxas’ do governo americano a comunistas conhecidos, voltou para a Europa. Seu visto de permanência, contudo, venceria em 56 e ela teria de voltar à América. Foi então que Joy convenceu Lewis a casar-se com ela no civil, permitindo assim que ela tirasse um visto definitivo para permanecer na Grã-Bretanha.

Esse casamento de aparência, realizado por questões práticas e amizade, terminou por se tornar uma verdadeira união quando Joy descobriu um câncer nos ossos, já em estado avançado. Os dois se casaram no religioso após muitas complicações (afinal, Joy era divorciada), e Lewis a levou para Kilns, onde Joy não apenas reorganizou a casa, mas também a escrita do marido, ajudando-o a editar seus livros com críticas e sugestões.

Joy faleceu em 1960. Se formos pensar com cuidado, Lewis teve três grandes mulheres em sua vida e perdeu todas as três de forma traumática: a mãe, de quem ficou órfão muito cedo; Jane Moore, cuja saúde e consciência foram se deteriorando pouco a pouco sem que ele pudesse fazer nada; e Joy Davidman, com quem teve apenas quatro anos antes que a doença também a levasse. Como lembrança desse último relacionamento, ficaram, além dos livros, os dois filhos de Joy, Douglas e David, que foram criados por Lewis e tornaram-se seus herdeiros.

Três anos depois, após um lento declínio causado por uma doença renal e um infarto, Lewis faleceu em 09 de abril de 1973 - mesmo dia do assassinato do presidente americano John F. Kennedy. Lewis deixou um legado prolífico, com obras acadêmicas, de apologia cristã, poemas, ensaios e ficção. A obra que o tornaria mais amplamente conhecido, ironicamente, seria uma das que tivera menos destaque quando de sua publicação: os sete livros que compõem a coleção das Crônicas de Nárnia.

(Continua em… ‘Através do Guarda-Roupa, de Desertos de Neve e Areia’)


A Coruja


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