3 de dezembro de 2022

Terry Pratchett: uma vida com notas de rodapé


Porque o trabalho sempre foi a coisa mais importante, mas agora ganhou uma nova dimensão. O trabalho é a última defesa de Terry contra esta doença cruel que o está a despojar de si mesmo. Por quanto tempo ele possa escrever, ele ainda será Terry Pratchett.

Quando Terry Pratchett faleceu em março de 2015, chorei como quem tivesse perdido um ente querido. A essa altura, já fazia mais de uma década que eu lia gulosamente seus livros, um atrás do outro; muitas das quais tocaram-me de inúmeras maneiras - foram alegria, conforto, reflexão, acolhimento, e até ponto de partida para muitas amizades. Eu admirei sua capacidade de indignação e senso de justiça, e a coragem de se expor para falar daquilo que era necessário.

Pratchett foi e continua a ser uma inspiração. Não apenas por sua capacidade de nos fazer cair de cabeça nos mundos que criou, mas pela capacidade de nos fazer questionar, e de pensar em mudanças possíveis, de fazer o certo quando o mundo está contra você. Muita gente comenta sobre como, por baixo do riso que sua sátira era capaz de provocar, havia uma grande raiva, um sentimento de indignação que não se bastava em si mesmo, mas procurava maneiras de resgatar dignidade, decência, humanidade.

Não é, pois, surpresa, que eu tivesse muita curiosidade para saber mais do Homem sob o Chapéu. Li, no começo do ano, a biografia do Marc Burrows - The Magic of Terry Pratchett -, mas, embora ela trouxesse vários fatos da vida de sir PTerry, trata-se mais de uma análise do Disco a luz da vida de seu autor; e, por tabela, uma declaração de amor a sua vasta obra. À ocasião, já se falava muito da biografia que estava sendo escrita por Rob Wilkins e fiquei na espera dela.

Wilkins foi assistente pessoal de Pratchett por mais de vinte anos, acompanhando-o no auge da carreira e também por todo o declínio causado pelo Alzheimer. Para além da família mais próxima, junto com outros colaboradores e amigos de uma vida inteira, ele é sem dúvida a pessoa com mais autoridade para tratar do assunto.

A primeira parte do livro, que trata da infância e juventude do autor, baseia-se muito nas anotações que o próprio Pratchett estivera fazendo para o que seria sua autobiografia; e é repleta de anedotas duvidosas. O próprio Wilkins comenta como Pratchett por vezes “ornamentava” alguns fatos para que eles se tornassem mais engraçados ou surreais - e nunca se podia ter certeza se era uma questão de humor ou memória.

Tal detalhe não retira o interesse despertado por essa parte - afinal, estamos aqui diante dos primeiros tijolos que tornaram Pratchett quem ele foi. A luta da mãe para interessá-lo pelos estudos, sua descoberta da fantasia com O Vento nos Salgueiros, sua carreira e aprendizado como jornalista, seu trabalho de relações públicas numa usina nuclear (eu sempre acho esse detalhe da vida dele hilário…), suas aspirações como autor, seus primeiros passos rumo a publicação e reconhecimento…

Uma das coisas que acho mais interessante nesses primeiros anos de Terry e sua família (incluo nisso seus pais) é o interesse que eles tinham por conhecimento - qualquer tipo de coisa que pudessem aprender e lhes aparecesse pela frente -, e sua autossuficiência. Eles plantavam em seus quintais; tinham animais para ordenha, e para tirar lã, abelhas para o mel. Faziam seus próprios rádios, consertavam seus carros (alguns que parecem ter servido de inspiração direta para o possante de Newt Pulsifer em Belas Maldições), chegando, já famoso, ao ápice de participar da forja de uma espada…

Mas é quando o relato chega nos anos que Wilkins viveu ao lado de Pratchett como seus assistente faz-tudo que o livro realmente nos acerta. Porque aqui ele está falando não do que ouviu Pratchett e associados, mas do que ele presenciou. Para além da biografia de Pratchett, estamos diante das memórias de Wilkins trabalhando e convivendo muito de perto com alguém que ele admirava, que por vezes o exasperava, e que ele claramente amava.

Por isso mesmo, é tão doloroso quando ele começa a tratar dos primeiros golpes da doença, o diagnóstico do Alzheimer, a decisão de Pratchett não apenas de revelar sua condição sem grandes papas na língua, mas de expor todas as pequenas indignidades que iam se avolumando, a realidade de viver com uma doença que, pouco a pouco, despojava-o da mente brilhante capaz de criar tantas histórias.

Confesso que chorei mais de uma vez. As descrições de Wilkins me pegaram ainda mais porque tenho atualmente duas parentes com Alzheimer e não preciso fazer esforço algum para imaginar o que sente alguém que tem de observar a pessoa que ama se perdendo de si mesma dessa maneira.

Terry Pratchett: A Life With Footnotes não é uma biografia típica. Não existe qualquer chance do biógrafo se distanciar e ser capaz de julgar sem parcialidade a figura de seu biografado. Mas ela é exatamente aquilo que eu esperava que fosse, uma celebração da memória de sir PTerry, e também de uma longa e profunda amizade. Para os fãs do Cara de Chapéu, é sem dúvida uma leitura mais que recomendada.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Terry Pratchett: A Life With Footnotes
Autor: Rob Wilkins
Editora: Transworld Digital
Ano: 2022

Onde Comprar

Amazon


A Coruja


____________________________________

 

2 comentários:

  1. Gosei da resenha. Esava em duvida de comprar esse livro mas depois de ler aqui decidir comprar =)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu demorei um pouco para começá-lo, mas quando iniciei, não consegui parar. Tinha conhecimento de vários dos fatos narrados, especialmente das obras que inspiraram o Pratchett em vários dos seus escritos. Mas a parte da doença em si, como eu disse, é bem dolorosa. Tem uma cena em que Pratchett e Wilkins estão nos Estados Unidos, que o Pratchett passa mal, que eu quase passei mal junto (reconhecer tais episódios em gente querida sua é para dar nó na cabeça...). Mas, de um modo geral, é uma leitura que prende a gente. Quem for minimamente familiar com as pessoas que rodearam o Pratchett ao longo de sua vida, vai ter uma compreensão melhor dos fatos. E um último adendo: embora eu ame o Pratchett, eu desconfio que não conseguiria trabalhar com ele... Admiro o Wilkins pela fortitude.

      Excluir

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog