17 de dezembro de 2021

Projeto Agatha Christie: O Natal de Poirot


Ouviu-se um suspiro longo e trêmulo e depois duas vozes falaram sucessivamente. Por singular coincidência, ambas proferiram citações.

David Lee murmurou:

— Os moinhos de Deus moem devagar...

E a voz de Lydia acrescentou, num sussurro trêmulo:

— Quem pensaria que o velho tinha tanto sangue em si?

Para fechar esse ano no Projeto Agatha Christie, não pude resistir a encaixar na vez O Natal de Poirot, publicado primeiro de forma serializada em 1938, com o título Murder for Christmas na Collier’s Week. Trata-se de um típico mistério-de-sala-trancada, quando um crime aparentemente impossível ocorre - ou, pelo menos, impossível até que o autor te dê a resposta do enigma.

Tudo começa com uma reunião de família, organizada pelo tirânico patriarca Simeon Lee - uma reunião propositalmente engendrada para brincar cruelmente com os sentimentos de todos os seus dependentes. A promessa de uma mudança no testamento é, aparentemente, o estopim para o crime: Simeon é encontrado degolado numa poça de seu próprio sangue, num aposento trancado e, aparentemente, numa situação em que o assassino jamais teria conseguido fugir a tempo.

Um caso tão misterioso, com uma abundância de suspeitos repletos de razões para odiar a vítima e supostas impossibilidades na execução criminosa só poderia ser resolvido pelo mestre detetive Hercule Poirot - que, convenientemente, está visitando o local para passar o feriado com um amigo. Considerando o enredo da resenha do mês passado, vamos concordar que há algum tipo de maldição em curso toda vez que Poirot tenta tirar férias?

O interessante desse livro é que ele é basicamente a resposta a um desafio: seu cunhado James comentara que os assassinatos que apareciam nas obras da Rainha do Crime andavam “anêmicos” demais e que ele desejava um crime violento e com bastante sangue. Pelo menos, é isso que Christie escreve em sua dedicatória, o que, combinado com a referência shakespeariana - “Quem jamais poderia imaginar que aquele velho guardasse tanto sangue dentro de si?”, citação direta de Macbeth -, nos diz muito do que esperar desse mistério natalino.

Sempre acho interessante quando Christie mergulha em meio a relações familiares e destrincha uma complicada teia de mágoas e ressentimentos; e sou particularmente fascinada por essas situações que parecem impossíveis à primeira vista, dependendo de planejamento e atuação dramática por parte do criminoso. Ainda que esse tipo de enredo dificulte muito nossa tarefa como leitor de desvendar o mistério por nós mesmos, há algo muito satisfatório em chegar ao final e perceber como fomos tão bem enganados.

De fato, eu não consegui desvendar o assassino antes de Poirot, com sua costumeira teatralidade, apresentar suas conclusões. Seja como for, O Natal de Poirot, com sua vítima detestável, seu crime sanguinolento, seu elenco de suspeitos todos com muitas razões para matar Simeon Lee, é um daqueles volumes difícil de largar depois que o enredo acelera.

Uma leitura apropriada para a época, especialmente se o leitor tem em sua agenda uma ceia natalina com parentes difíceis. Esqueça a ladainha de ser esse um tempo de perdão e partilha: às vezes é preciso fantasiar com um romance como esse para não voar no pescoço daquele parente inconveniente que existe em toda família…

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: O Natal de Poirot
Autor: Agatha Christie
Tradução: Jorge Ritter
Editora: Folha de S. Paulo
Ano: 2019


A Coruja


____________________________________

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog