3 de abril de 2021
Queime Antes de Ler: entre cartas e filamentos do passado em “É assim que se perde a guerra do tempo”
Em um vão do solo arrasado, ela encontra a carta.
Está fora de lugar. Ali deveria haver corpos empilhados entre os destroços de naves que um dia percorreram as estrelas. Ali deveria haver a morte e a sujeira e o sangue de uma operação bem-sucedida. Deveria haver luas se desintegrando lá em cima, naves incendiadas em órbita.
Não deveria haver uma folha de papel cor de creme, limpo, exceto por uma única linha longa e repuxada escrita à mão: Queime antes de ler.
Esse título já me chamara a atenção há algum tempo por ter ganho os prêmios Nebula, Locus e Hugo entre 2019 e 2020. E, bem, trata-se de um romance epistolar entre viajantes no tempo, o que junta duas coisas que me fascinam: cartas e viagens temporais. Como eu poderia resistir?
Duas agentes de facções rivais - uma tecnocracia e outra enraizada no mundo natural - iniciam uma correspondência improvável em meio aos esforços de manipular o passado para ganhar o embate entre elas. E, o que começa como uma provocação, talvez até um plano para desmoralizar a melhor agente do campo oposto, acaba se transformando em um relacionamento real.
[...] a fome que você descreve — essa navalha atravessando a pele, essa desintegração, como a de uma encosta constantemente atingida por tempestades, esse vazio — soa bonita e familiar.
A narrativa se alterna em vislumbres dos mundos - “filamentos” - pelos quais Red e Blue visitam em suas missões, e as cartas que cada uma escreve. Essa condução narrativa fragmentária pode parecer confusa para alguns leitores, mas vale o esforço e condiz com a vida que as agentes levam. São várias existências trocando de pele e identidade para se encaixarem num determinado momento do tempo, quando então agem para influenciar fatos aparentemente inócuos e assim criar futuros mais vantajosos para sua gente. Esses recortes das realidades visitadas pelas duas - cavalgando com hordas mongóis, em meio à destruição de Atlântida, caçando focas no Polo ou tomando chá numa Londres steampunk - são fascinantes e bem poderiam ser expandidos em uma miríade de spin-offs. Para uma noveleta tão curtinha, há bastante para se refletir aqui sobre a natureza do tempo, questões sobre destino, liberdade, humanidade.
As cartas, que começam num tom de desafio, certa admiração profissional, e irreverência, migram para uma autêntica troca: de cultura, de segredos e de desejos. À medida em que revelam mais de si mesmas, Red e Blue se descobrem mais parecidas do que poderiam supor - elas compartilham um estranhamento de outros de sua mesma espécie, experiências que as fizeram únicas, além de uma fome por algo intangível, que nenhuma delas consegue realmente explicar. Há uma circularidade no que elas revelam em suas missivas e no que ocorre em cenas posteriores e, ao chegar ao final, você percebe que as sementes para o relacionamento delas foram plantadas muito antes daquele primeiro “queime antes de ler”. Sem nunca estarem realmente próximas, elas se apaixonam pelas palavras que deixam uma para a outra, caminhando entre a lealdade a suas agências e essa ponte que construíram juntas.
Ela se move fio acima e abaixo; ela trança e destrança o cabelo da história.
Red raramente adormece, mas quando dorme, ela deita imóvel, olhos fechados no escuro, e se deixa ver lápis-lazúlis, sentir o gosto de pétalas de íris e gelo, ouvir o canto de um gaio-azul. Ela coleciona azuis e os guarda.
Quando tem certeza de que ninguém está olhando, relê as cartas que entalhou em si mesma.
Sua caneta tinha um coração dentro, e a ponta era uma ferida em uma veia. Ela manchou a página consigo mesma. Às vezes esquece o que escreveu, salvo que era verdade, e que escrever doeu.
Segundo explicam os autores - uma poetisa canadense e um escritor de ficção científica americano - eles não escreviam as cartas juntos, um não sabendo exatamente o que o outro traria para as palavras de cada personagem, Esse processo imprimiu a correspondência das protagonistas algo de espontâneo e genuíno, que realmente nos envolve no relacionamento de Red e Blue. Cada uma tem seu próprio estilo: Red, construída numa realidade de máquinas e processos automáticos, brutal e sem meias palavras; Blue, plantada aos cuidados de Jardim, reflexiva e dada a elegantes metáforas. A costura de suas vozes forma um todo arrebatador em sua intensidade, algumas das cartas de amor mais belas que já li em romances (sim, lembrei de ti, oh, Capitão Wentworth).
Acabei por ler esse livro duas vezes quase em sequência: primeiro o e-book, em inglês, que já estava há tempos na fila; aí anunciaram a tradução e gostei tanto da história que queria ter a edição física, que comecei imediatamente a (re)ler assim que chegou. Devo dizer que a edição brasileira ficou, realmente, de encher os olhos: capa dura, ilustrações exclusivas de Renato Faccini, as páginas das cartas decoradas com circuitos (Red) ou ramos (Blue).
A tradução, em si, foi muito boa, preservando o ritmo e a poesia do original, embora alguns trocadilhos não façam tanto sentido em português (a carta “selada” dentro de uma foca, por exemplo, que brinca com o duplo sentido do termo ‘seal’, que em inglês significa tanto selo quanto foca - a tradução explica a piada, mas piadas perdem a graça quando precisam ser explicadas...), e haja ainda alguns problemas de revisão. Uma edição tão caprichada quanto essa merecia não ter letrinhas trocadas em algumas palavras.
[...] ler as suas cartas é colher flores dentro de mim, arrancar um botão aqui, uma samambaia ali, arrumá-las e rearrumá-las de um jeito que combinem com um quarto ensolarado.
Mesmo a poesia, que quebra a linguagem em significados — poesia ossifica, com o tempo, como as árvores. O que é dócil, flexível, macio e fresco se torna duro, cria armadura. Se eu pudesse te tocar, apoiar o dedo em sua têmpora e afundar você em mim, como Jardim faz… talvez assim. Mas eu nunca faria isso.
É assim que se perde a guerra do tempo é um livro que desafia rótulos. É um romance fora da caixa, uma ficção científica extremamente lírica, contada através de cartas de amor que nos roubam o fôlego, entre duas personagens tão camaleônicas que, elas também, desdenham de categorizações. Não é um livro fácil, de forma alguma, mas para quem se coloca o desafio encontrará algo de belo, surpreendente e inteligente: um encantamento em palavras enfim.
Mas se você tem fome, eu me dilato. Você me fez observar pássaros, e embora eu não saiba seus nomes, como você sabe, tenho visto pequenos cantores cintilantes inflarem-se antes de cantar. É assim que eu me sinto. Eu canto a mim mesma para você, e minhas patas agarram galhos, e fico exausta até que sua próxima carta me dê fôlego, me encha até estourar
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: É assim que se perde a guerra do tempo
Autor: Amal El-Mohtar e Max Gladstone
Tradução: Natalia Borges Polesso
Ilustrações: Renato Faccini
Editora: Suma
Ano: 2021
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Arquivado em
epistolar
ficção científica
lgbtq
lit. americana
lit. canadense
romance
viagens no tempo
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