10 de agosto de 2020

A Filha do Rei de Elfland: um conto de fadas sobre o Tempo


Durante todo o dia, Alveric viajou com o vigor que aguarda no início das jornadas, e isso o ajudou, embora estivesse sobrecarregado com tantas provisões e um grande cobertor que usava como uma capa pesada sobre os ombros; além disso, carregava um pacote de lenha e uma vara na mão direita. Ele era uma figura disparatada com sua vara, sua sacola e sua espada; mas seguia uma ideia, uma inspiração, uma esperança; e assim compartilhava algo da estranheza que têm todos os homens que fazem isso.

A primeira vez que li The King of Elfland’s Daughter, de Lorde Dunsany, foi dez anos atrás, em inglês, e devo dizer que não foi uma leitura fácil. Por mais fluente que eu fosse, o estilo repleto de volteios e o vocabulário bastante formal foram um desafio. Isso não me impediu de achar o enredo fascinante, mas interferiu na experiência de leitura. Assim é que, quando vi que a Wish ia lançá-lo traduzido, empolguei-me. A editora costuma ter grande esmero com a tradução, introduções escritas por especialistas e projetos gráficos lindíssimos. Tinha certeza que essa seria uma oportunidade para apreciar a prosa de Dunsany como ela deve ser apreciada, deixando-se levar pelo lirismo em vez de arfar com o esforço de compreensão.

Assim é que a primeira coisa que preciso dizer nessa resenha é que não me desapontei. A tradução trouxe todo o encantamento que a poesia em prosa de Dunsany merece. A Filha do Rei de Elfland é um conto de fadas clássico, cheio de ritmo e imagens brilhantes, palha em ouro fiado de rocas enfeitiçadas. É um texto muito descritivo, mas são descrições repletas de símiles, metáforas, imagens de tirar o fôlego em sua beleza.

E o inverno chegou, e embranqueceu os telhados de Erl, e toda a floresta e as terras altas. E, quando Órion levou seus sabujos para o campo de manhã, o mundo parecia um livro recém-escrito pela Vida; pois toda a história da noite anterior estava exposta em longas linhas na neve. Por aqui a raposa tinha passado e por ali o texugo, e por aqui o cervo-vermelho tinha saído da floresta; as trilhas seguiam pelas terras baixas e desapareciam de vista, assim como as ações de estadistas, soldados, cortesãos e políticos aparecem e desaparecem nas páginas da história.

O enredo básico é bem simples e bem humorado também: o parlamento de Erl decide que a melhor maneira de fazer seu pequeno reino ser conhecido no mundo é trazendo magia para ele - de preferência, um governante com sangue mágico nas veias. Assim eles aconselham o rei, que envia seu filho, Alveric, para as terras além do crepúsculo: Elfland, onde ele deve encontrar para si uma noiva.

Alveric, depois de uma série de aventuras com bruxas, espadas e florestas encantadas, encontra para si ninguém menos que a própria princesa de Elfland, Lirazel. Ele a traz para a terra das coisas que conhecemos e os dois têm um filho, Órion, aquele que trará a Erl a importância que o parlamento desejara.

No entanto, como muito bem diz o ditado popular, tenha cuidado com o que deseja, pois pode vir a se realizar. O parlamento queria apenas um pouco de magia, de modo a tornar seu reino algo notável nas crônicas do mundo, mas uma vez que você abre a passagem, não tem como controlar quanto realmente vai passar.

Como disse antes, há muito de humor na história, um convite para rir da tolice, vaidade e arrogância dos doze supostos líderes que compõem o parlamento. Mas A Filha do Rei de Elfland também tem correntes mais sutis entre os temas de que trata, em especial duas dualidades que costuram uma boa parte do conflito que vai surgindo dessas páginas.

O primeiro desses contrastes é a questão do tempo e da mortalidade. O tempo não passa em Elfland, o que torna suas criaturas imortais - ao menos, se eles continuam do lado de lá do crepúsculo. Numa determinada altura da história, as fronteiras de Elfland se afastam de Erl e com isso liberam um território de lembranças que tinham ficado presas nesse tempo estático: brinquedos quebrados, vozes esquecidas, ecos de uma época que se passou e que, de repente, não são mais preservadas e se dispersam no ar.

As grandes folhas cessaram seu murmúrio pelas profundezas verdes da floresta, silenciosos como mármore esculpido eram os fabulosos pássaros e monstros; e os trolls marrons que corriam para a Terra pararam subitamente em silêncio. Então, do silêncio, surgiram pequenos murmúrios de saudade, pequenos sons de anseio por coisas que nenhuma canção pode expressar, sons como as vozes das lágrimas se cada pequena gota salgada pudesse viver e ter uma voz para contar os caminhos do luto. E todos esses pequenos rumores dançaram gravemente, formando uma melodia que o mestre de Elfland invocou com sua mão mágica.

Elfland parece, à primeira vista, um paraíso, onde tudo é beleza e perfeição; mas o anseio por sua magia é também, de certa forma, uma estagnação. É um mundo dolorosamente belo, mas que não muda, não se altera, não conhece evolução. Por isso mesmo, é tão fácil para Alveric levar consigo Lirazel - conscientemente ou não, a princesa se cansou desse tempo imóvel e o encontro com o cavaleiro mortal é mais um resgate que um rapto.

Contudo, mesmo sendo trazida para as terras do lado de cá, onde o tempo pode passar, não é realmente da natureza de Lirazel mudar. E assim, ela, que é um ser todo instinto e magia, confronta-se com os modos de vida e de crenças do povo humano. Esse é o segundo grande contraste do conto: magia e religião, algo que pode ser visto tanto em Alveric tentando forçar sua jovem esposa à compreensão dos objetos sagrados do Frei, quanto nos avisos do Frei sobre a magia para o resto do povo de Erl.

Dunsany foi um autor prolífico, um dos grandes mestres do gênero fantástico antes mesmo dele se consolidar como gênero. Seu estilo influenciou autores como Lovecraft, Tolkien, Ursula Le Guin e Gaiman (fãs de Stardust provavelmente vão ver muito de familiar nesse conto). Eu já o tinha visto traduzido cá no Brasil antes, numa antologia de contos da Arte e Letra que também recomendo muito. É, enfim, um autor que merecia ser resgatado e difundido por aqui, de forma que só tenho a agradecer à editora por tê-lo trazido nessa edição.

"- (...) Pela vassoura, pelas estrelas e pelos passeios noturnos! Vocês roubariam da Terra a herança que veio desde os tempos antigos? Vocês pegariam o tesouro dela e a deixariam nua para o desprezo de seus colegas planetas? De fato, éramos pobres sem magia, mas estamos bem equipados contra a inveja das trevas e do Espaço. (...) Eu lhe daria um feitiço contra a água, para que o mundo inteiro sentisse sede, antes de lhes dar um feitiço contra o canto dos riachos que a noite ouve de um jeito fraco sobre o cume de uma colina, indistinto demais para ouvidos vigilantes, um canto que atravessa sonhos, com o qual aprendemos sobre velhas guerras e amores perdidos dos Espíritos dos rios. Eu lhes daria um feitiço contra o pão, para que o mundo inteiro passasse fome, antes de um feitiço contra a magia do trigo que assombra os vales dourados sob o luar de julho, pelas quais, nas noites quentes e curtas, vagueiam muitos daqueles de quem o homem não sabe nada. Eu lhes daria feitiços contra o conforto e as roupas, a comida, o abrigo e o calor, e farei isso, antes de arrancar desses pobres campos da Terra a magia que lhes serve de manto amplo contra o frio do Espaço e de traje alegre contra o escárnio do nada."

Para ser realmente feliz, claro, tudo o que me faltava é que lançassem a tradução de Lud-in-the-Mist - que tem em comum com o livro do Dunsany todo o encanto e arrebatamento das terras de Faërie. Algum dia, algum dia... há de se ter esperança, não é mesmo?


Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: A Filha do Rei de Elfland
Autor: Lorde Dunsany
Tradução: Cláudia Mello Belhassof
Editora: Wish
Ano: 2020

Onde Comprar

Wish


A Coruja


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3 comentários:

  1. CARAMBA! Estou encantada. AMo esse tipo de escrita, e é tão difícil acha algo tão lindo assim! QUero ler com certeza!

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    1. É muito bonito mesmo. Esse é aquele tipo de livro que você lê devagar, em voz alta, saboreando o ritmo das palavras.

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  2. Eu vejo Elfland como uma metáfora da infância, uma época despreocupada, em que a gente não tem consciência do tempo, e a imaginação é a magia que dominamos, enquanto que o campo em que conhecemos é uma metáfora para a vida adulta, onde ninguém mais tem tempo de se dar ao luxo de olhar para o leste, receando serem seduzidos por ilusões que já não têm mais espaço na vida real, em que o campo precisa ser arado, as vacas ordenhas, o feno armazenado, as sementes plantadas, e por aí vai.

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