20 de novembro de 2017

Desafio Corujesco 2017 - Um Livro de um Autor Brasileiro || As Águas-Vivas não Sabem de Si

A relação que os azúlis estabeleceram com as outras espécies era algo inédito: pela primeira vez, uma espécie se enxergava como superior às outras; nem pela força, nem pelas posições hierárquicas de uma cadeia alimentar, mas pela profunda consciência de que, por possuírem mais recursos e mais inteligência, deveriam ser responsáveis pelas outras formas de vida ao redor. Era uma época em que superioridade significava ter responsabilidade de cuidar e proteger - o que não seria fácil de ver novamente.
Não lembro exatamente quando foi que esse título primeiro me chamou a atenção - talvez a capa, numa visita à livraria, talvez de ouvir o título. Mas foi na época em que estávamos trabalhando na Antologia Valquírias, quando a Aline Valek foi convidada para escrever o prefácio, que acabei indo atrás de descobrir do que se tratava As Águas-Vivas não Sabem de Si.

A história começa como um relato de uma expedição ao fundo do mar, testando trajes especiais capazes de levar mergulhadores a profundidades impensáveis. Corina, a protagonista, é uma mergulhadora de longa experiência, mas com alguns segredos que podem muito bem interferir em seu trabalho. Junto com ela, morando numa estação submarina - Auris -, há ainda dois cientistas, Dr. Martin e seu assistente Maurício; uma engenheira responsável pelo bom andamento da estação, Susana; e outro mergulhador, Arraia, colega de anos de Corina. Todos eles também com seus segredos, anseios e medos. São personagens bem construídos, personalidades muito distintas que - fica óbvio desde o início - entrarão em confronto em algum momento.

Alternados aos capítulos que contam a história da expedição, há as narrativas de criaturas marinhas ao longo de toda a história da evolução da terra, inclusive com sociedades organizadas de forma complexa, como a dos azúlis. É uma mudança de ponto de vista que considerei muito interessante - e que eu teria lido mais deles, se houvesse. A narrativa da expedição é fascinante, até porque você passa boa parte do tempo segurando o fôlego, pensando o que acontecerá a seguir, mas fiquei muito mais curiosa em acompanhar essas vozes diferentes.

O livro abre com epígrafes que fazem menção a Jules Verne e Lovecraft, o que faz muito sentido quando acompanhamos o desenrolar da história. O clima entre os personagens que estão na estação submarina me fez lembrar do Nautilus, dos segredos do capitão Nemo, da desconfiança e da sensação de confinamento e também do fascínio e do prodigioso presentes na narrativa do Dr. Aronnax - de testemunhar coisas que o resto do mundo é sequer capaz de imaginar. O dr. Martin de Valek, aliás, parece-me um tributo a Aronnax.

Da mesma forma, há um senso de perigo, de que há uma inteligência ao redor dos personagens humanos, algo que os observa. O próprio ritmo e a linguagem me fizeram pensar em Nas Montanhas da Loucura, inclusive pela sensação de claustrofobia que perpassa a narrativa. Diferente dos horrores ‘eldritchianos’, contudo, as criaturas com as quais cruzamos ao longo da história não parecem interessadas em causar pânico e loucura, mas sim em buscar formas de se comunicar.

E não é curioso que sejam os animais, criaturas que consideramos de inteligência inferior a nossa, que busquem compreensão, quando os humanos todos que fazem parte da narrativa se isolam em seus segredos, em seus traumas e planos egoístas? Os capítulos narrados pelas criaturas marinhas falam de fazer parte de uma comunidade, de deixar uma mensagem e se fazer entender, ao passo que a história de Corina e seus companheiros é uma história de indivíduos que parecem incapazes de se conectar, mesmo num nível superficial, com seus pares.

As Águas-Vivas não Sabem de Si é uma narrativa lenta, introspectiva, menos uma aventura e mais uma exploração filosófica. Gosto desse tipo de exposição que convida o leitor à reflexão, que explora nossa identidade como seres humanos. Num determinado ponto do livro, torna-se previsível como as coisas irão se desenrolar, e o final não me surpreendeu. Mas isso não tira nada da experiência da leitura, do encanto que ela consegue construir com suas imagens marinhas, e das considerações que compartilha conosco.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: As Águas-Vivas não Sabem de Si
Autor: Aline Valek
Editora: Fantástica Rocco
Ano: 2016

Onde Comprar

Amazon || Cultura || Saraiva


A Coruja


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