10 de novembro de 2014

Para ler: Jane Eyre

O coração humano tem tesouros ocultos. No segredo mantido, no silêncio selado… Os pensamentos, as esperanças, os sonhos, os prazeres… Cujo charme se romperia se revelado.
É um tanto surpreendente, considerando meus gostos literários, que eu nunca tenha lido Jane Eyre até esse ano. Eu tinha meus motivos para tanto: em parte certo despeito pelo desprezo por Jane Austen que ela demonstrou em algumas cartas e de outra parte, o temor de me ver às voltas com um novo O Morro dos Ventos Uivantes. A intensidade egoísta e irracional de Heathcliff e Catherine é algo que me deu arrepios e uma inteira bagagem de angústia e eu não ando num bom humor para protagonistas tão mesquinhos quanto os dois.

O curioso é que terminei me decidindo por desbravar os campos de Thornfield Hall por querer ler outro livro... Eu estava ansiosa para tirar da estante The Eyre Affair de Jasper Fford e acreditava com meus botões que para entender o Fford, eu precisaria primeiro ler a Brönte.

Uma vez tendo começado a ler Jane Eyre, contudo, não demorou para que eu me apaixonasse. Eu estava em Fortaleza quando comprei o livro, e quase larguei a Ísis de lado para continuar a leitura – no final das contas, obriguei-a a assistir o filme comigo porque precisava desesperadamente saber o final e não podia simplesmente desprezar a presença de uma amiga que passa o resto do ano no Japão...

(Por sorte eu acordo cedo e a Ísis enrola pra levantar, de forma que eu consegui passar da metade do volume na manhã seguinte que era quando eu já ia embora... e no avião cheguei ao final. E aí quando cheguei em casa assisti outro filme mais fiel do que a versão que eu tinha assistido em Fortaleza. Enfim, paremos com a digressão...)

A história em si é bem simples – e a leitura não é difícil, sendo pontuada por muitos momentos de bom humor (a cena da cigana é provavelmente uma das minhas favoritas...).

Jane é uma menina pobre, sem grandes atrativos, que começa a história sendo destratada pela tia e pelos primos – família que a acolheu após a morte de seus pais. Ela acaba por ser enviada a uma escola de caridade para aprender humildade e um ofício.

A despeito de ser uma criatura bastante sem graça – e essa é uma característica reforçada por ela e outros personagens ao longo de todo o livro – Jane tem um código moral muito forte, princípios e fé inabaláveis. Aliás, é interessante a forma como a moral cristã protestante permeia a obra. Normalmente eu me irrito um pouco com livros que tentem me ‘doutrinar’, mas existe algo bastante natural, autêntico e até mesmo prático na maneira que Jane tem de encarar questões religiosas.

É fácil de compreender essa característica quando lembramos que o pai de Charlotte era pároco, assim como seu marido. A vida inteira ela viveu num ambiente em que a religião era um paradigma inescapável.

Enfim... Jane cresce e decide deixar a escola, onde então já estava trabalhando como professora, para se tornar governanta na mansão Thornfield. Sua tarefa é cuidar da protegida de Mr. Rochester, o senhor da casa.

Rochester também não é um homem bonito (o que torna absolutamente hilariante as escolhas dos atores para interpretar seu papel. As duas versões que assisti tinham um Rochester de encher a tela...). Ele é charmoso quando quer, e tem uma grande presença sempre que aparece em cena.

Existe uma ambiguidade em suas atitudes que é muito interessante – por um lado, ele tem consciência dos mesmos tipos de princípios que orientam a vida de Jane... por outro, há uma mágoa que o leva aos caminhos da perdição.

Tanto Jane quanto Rochester são intensos em seus sentimentos. Eles são passionais de uma forma que nos faz segurar o fôlego quando estão juntos. Diante disso, o fato de Jane ser capaz de virar as costas para esse amor quando as circunstâncias o tornam necessário é um dos muitos motivos pelos quais Jane Eyre destoa dos romances comuns que pululam nas estantes das livrarias.

A força do caráter de Jane é algo impressionante, assim como sua independência. Mais, talvez, que o romance com Rochester, a capacidade que Jane demonstra de se manter após deixar Thornfield – numa época em que a verdadeira ‘profissão’ da mulher era simplesmente ser esposa e depois, mãe – é o que chama a atenção no livro.

Jane é uma heroína muito moderna ao demonstrar essa independência, ao se recusar a abrir mão da própria dignidade para ficar ao lado do homem que ama – Jane sabe quem é, sabe que trair a si mesma por um amor (mesmo que seja por um amor tão intenso quanto o de Rochester) acabará com seu próprio senso de ‘eu’ e prefere manter-se nesses princípios não porque é simplesmente uma puritana, mas porque agindo de outra forma ela perde o respeito por si mesma.
Eu me importo comigo mesma. E quanto mais solitária, sem amigos e sem sustento, mais eu vou me respeitar.
De certa forma, se ela tivesse agido de outra maneira, a história teria terminado com ela sendo abandonada por Rochester – da forma como eu interpreto as coisas, o que o leva a se apaixonar por Jane é exatamente essa força interior que ela tem, esse âmago inflexível que nunca a fez perder de vista quem ela é.

É uma história de amor, mas é também uma história de superação, sobre liberdade de escolhas, sobre ser fiel a si mesmo. Por todos esses motivos, é uma história que se mostra atual como nunca. Para ler e reler, definitivamente.
Eu não sou um pássaro; e nenhuma rede me prende; eu sou um ser humano livre com uma vontade independente.


A Coruja


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5 comentários:

  1. Lulu,

    Como sempre uma beleza de resenha! Vou postar no escritorasinglesas.com. Dá uma olhada lá e curte a página! Tem algumas das suas resenhas e são bastante vistas.
    Vou postar essa e você vai ver o alvoroço que é Charlotte Brontë por lá.

    Beijo.

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    1. Maria, fico feliz que tenha gostado. Curti a página e também fiz a indicação dela aqui no Coruja, na seção de links.

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  2. Odeio O Morro dos Ventos Uivantes. Amo Jane Eyre. O segundo nunca li o livro, mas é algo que pretendo desde o filme... (não o dos atores mais bonitos, se me entende). A personagem é muito forte, me chamou muita a atenção o fato dela saber ser racional, e até mesmo seu senso moral ser tão bem construído. Agora quero ler logo :x

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    1. Eu não odeio Morro dos Ventos Uivantes, mas acho errado intitulá-lo como uma 'história de amor', quando na verdade ela é uma história sobre vingança, ódio e egoísmo. Aí vamos ao livro com uma expectativa e acabamos encontrando outra coisa completamente diferente.

      Mas Jane Eyre é, de fato, excelente, oposto em quase tudo ao Morro. A força da Jane é algo admirável, algo em que nos inspirarmos. Ano que vem o clube do livro de bolso que medio cá no Recife vai debatê-lo e prevejo uma conversa muito boa...

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  3. Adorei Jane Eyer. Gostei muito a sua resenha. Expressou muito bem a natureza do livro. Também considero Jane uma mulher independente e repleta de vida. De todas as histórias que li das irmãs Bronte essa foi a que gostei mais. Agora estou lendo " Agnes grey" de Anne Bronte. E acho que tem semelhanças com esse livro... Porque a protagonista também vai trabalhar para uma mansão como uma governanta. Também li o Morro dos Ventos Uivantes, contudo a história de amor não me conquistou tanto como a de Jane Eyer.

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