20 de maio de 2014
O Mundo Inteiro é um Palco – Parte IV: “Nós, um Bando de Irmãos...”
"Nós, estes poucos; nós, um punhado de sortudos; nós, um bando de irmãos… pois quem derrama o seu sangue junto comigo passa a ser meu irmão."
- Henrique V
- Henrique V
Além das comédias e tragédias, Shakespeare aventurou-se também no terreno dos dramas históricos. Acho curioso que tragédias como Julio César e Antonio e Cleópatra não estejam inclusos nessa classificação, mas aparentemente só valem para os críticos dramas históricos que girem em torno da História inglesa.
Ísis: Abster-me-ei de comentar... >.>
Não me lembro agora com certeza qual foi meu primeiro contato com os dramas históricos shakesperianos, mas creio que tenha sido com Ricardo III, que, para mim, é um dos personagens mais memoráveis na longa galeria de criações geniais do dramaturgo.
Ricardo se dirige diretamente à audiência em muitos momentos e toma as rédeas da história. Ele se reconhece como uma criatura amoral e é basicamente o epítome do maquiavelismo, e a despeito de seus muitos crimes e vilanias, é difícil escapar ao seu carisma – especialmente na primeira parte da peça.
A partir do momento em que ele alcança a coroa, contudo, sua personificação de “eu sou o vício e a iniqüidade” fazem-no alienar todos os outros personagens da história e também a platéia. De certa forma, Ricardo ecoa o que mais tarde será Macbeth, com a diferença de que Ricardo parece se divertir bem mais com sua tirania.
Mas se Ricardo III me apresentou aos dramas históricos, foi Henrique V que me fez prender o fôlego, que me inspirou e que é ainda hoje uma das minhas peças favoritas de todos os tempos e, pra mim, o discurso de São Crispim é a mais brilhante peça de retórica que conheço.
Para se ter uma idéia, foi lendo Henrique V que eu tive a idéia do tema da minha monografia de conclusão de curso e ele me serviu de epígrafe e texto de cabeceira (junto com John Keegan e Samuel Huntington) no período em que desenvolvi e escrevi a tese.
Em resumo? Eu provavelmente iria para a guerra se fosse pelo rei Henrique V – ou, ao menos, pelo Henrique de Shakespeare.
Ísis: Deus me livre se você resolver ir a uma guerra. O mundo não sobreviveria... >.>
Antes de se tornar Henrique V, contudo, ele foi o Príncipe Hal das duas partes de Henrique IV, que tinha por companheiro um dos mais impressionantes, mais vivos e divertidos personagens de Shakespeare: sir John Falstaff.
De uma forma geral, os críticos amam Falstaff. Cá entre nós, não sou uma grande fã dele, pois o considero um parasita sem qualquer tipo de moral; mas não posso negar sua vivacidade e seu brilhantismo. Talvez se eu pegar a peça para reler daqui a mais alguns anos, eu tenha mudado de opinião... a verdade é que meus primeiros contatos com essa peça foram quando eu era muito novinha para pegar todas as nuances do personagem. O fato é que seus trocadilhos, seus golpes e trapaças, sua visão de vida – tudo isso fazem de Falstaff, para o bem ou para o mal, um personagem inesquecível.
Mais importante: se Hal se torna o personagem inspirador da Batalha de Agincourt, é porque primeiro viveu sob a tutela de Falstaff. Não pode haver Henrique V sem que antes haja o cinismo bem humorado de Falstaff.
É interessante observar que pelo menos um quarto das peças de Shakespeare lidam com questões de sucessão – mesmo nas comédias, como em Como Gostais, a problemática aparece de forma um tanto oblíqua. Essa, contudo, é uma preocupação constante nos dramas históricos e um dos muitos motivos pelos quais a despeito de sua ressonância junto ao público, elas não duravam muito em cartaz.
A época em que Shakespeare escreveu a maioria de suas peças foi um período bastante conturbado para a Inglaterra. Elizabeth envelhecia sem deixar herdeiros e sem apontar um sucessor, preferindo alimentar expectativas como as que levaram o Conde de Essex à morte. Havia a ameaça da Espanha, mesmo após o fiasco da Invencível Armada; e os constantes levantes da Irlanda. Havia a divisão entre católicos e protestantes que ia e vinha, com tempos de mais liberdade religiosa e outros de perseguição violenta.
Por mais brilhante e inovadora que tenha sido essa época, era também um período em que escrever ou dizer a coisa errada na hora errada podia significar desde uma temporada na Torre ate perder a cabeça de vez.
Os dramas históricos tocavam em pontos muito próximos da realidade que se estava vivendo e por mais que Shakespeare se mantivesse em cima do muro em questões políticas – encontra-se em suas peças defesas tanto do tiranicídio quanto da legitimidade monárquica, mas nunca com uma resposta definitiva sobre eventuais preferências – havia riscos inerentes a escrever histórias que poderiam, a depender da interpretação, aparentar crítica à monarca reinante.
Tanto é assim que The Lord Chamberlain’s Men se viu às voltas com ter de prestar esclarecimentos sobre o fato de terem representado Ricardo II - com uma especial ênfase na cena da deposição - diante de Essex e companhia às vésperas da tentativa de rebelião do Conde. Foi por muito pouco que a trupe escapou de ser acusada de traição junto com os outros insurgentes.
Ísis: OK, isso responde minha pergunta anterior sobre ele ser acusado ou ter escapado...
De outro lado, dramas históricos poderiam ser empregados como brilhantes peças de marketing. Já falei do discurso de São Crispim, em Henrique V, que é um claro discurso de propaganda para inflamar corações e mentes para seguirem para a guerra pela rainha – na Irlanda e contra a Espanha. Mas outras peças demonstram a legitimidade do reinado de Elizabeth.
Basta observar que Ricardo III traz como salvador da pátria para depor o rei perverso um tal de Henrique Tudor, que mais tarde se tornará Henrique VII, pai do Henrique VIII que por sua vez é pai de Elizabeth I e que Henrique Tudor é um legítimo herdeiro do trono por descender, pelo lado da mãe, de Eduardo III, descendência essa que foi reconhecida como legítima por Ricardo II e Henrique IV.
O pai de Henrique, por sua vez, era Edmund Tudor, Conde de Richmond e meio irmão por parte de mãe de Henrique VI. Henrique VI era filho de Henrique V com Catherine de Valois; quando Henrique V morreu, Catherine casou-se secretamente com Owen Tudor, que lutou em Agincourt – ou pelo menos acredita-se que houve casamento, visto que seu filho mais velho e rei decidiu reconhecer os dois irmãos frutos do romance como legítimos.
Ísis: Sempre fui grata por não ter de decorar esse bocado de nomes da realeza europeia (ou mesmo a Brasileira). E, só para comentar, mas não tem a ver com o tema, descobri que numa escola Tailandesa (pelo menos a de uma colega minha), cada aluno era obrigado, em preparação à visita ao monumento em que há inscritos os nomes dos soldados mortos numa guerra (acho que a 2GM), a decorar pelo menos cinco (ou eram dez?) desses nomes. E, sim, eram espancados ou coisa parecida se errassem pelo menos um. Cruzes!
Lulu: O.o
E vamos parar o curso rápido de genealogia Tudor por aqui... O caso é que antecedentes da rainha Elizabeth aparecem em várias dessas peças históricas, muitas vezes sob um prisma heroico. Talvez algumas dessas peças fossem favoritas na Corte; talvez houvesse períodos em que elas pudessem inspirar ações e pensamentos contra a Coroa. Tudo depende da interpretação dada no palco e pelo leitor/espectador.
Para ler mais...
Henrique VI, Parte I
Henrique VI, Parte II
Henrique VI, Parte III
Ricardo III
Eduardo III
Ricardo II
Vida e Morte do Rei João
Henrique IV, Parte I
Henrique IV, Parte II
Henrique V
Henrique VIII
(Continua com as Conclusões...)
A Coruja
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