24 de maio de 2012

Um Estudo em Sherlock – Parte VI: “I play the game for the game’s own sake.”

- Qual é o significado disso tudo, Watson? - proferiu Holmes, em tom solene, ao terminar a leitura. - Que propósito anima este círculo de desgraça, violência e terror? Deve tender para um fim. De outro modo, nosso universo seria governado pelo acaso, o que é inadmissível. Mas qual será esse fim? Eis o imenso, imutável e eterno problema, de cuja solução a mente humana se encontra mais longe do que nunca.

- A Caixa de Papelão -
Quando me propus a escrever esse especial sobre Sherlock Holmes, tentei me restringir ao cânone escrito por Sir Arthur Conan Doyle, pensando em fazer uma análise em cima unicamente dos personagens. Nos quase cinco meses que levei para fazê-lo, contudo, a coisa acabou crescendo como uma bola de neve, a ponto de eu ter perdido a conta de quantos livros, filmes, séries, artigos e teses estive lendo em minhas pesquisas.

Tentei então fugir à tentação de adicionar listas e mais listas dos detalhes que fui notando enquanto lia. Por mais interessante que seja saber todas as monografias e trabalhos científicos publicados por Holmes, os nomes dos inspetores da Scotland Yard que trabalharam ao lado do detetive, para não contar as frustradas tentativas de estabelecer uma linha do tempo completa das histórias, o propósito desse especial não era transformar-se em um índice enciclopédico, e assim cortei muita coisa sobre as quais gostaria de tagarelar ad infinitum.

Não sei se fui totalmente vitoriosa nessas metas, mas creio que consegui o principal – delinear os aspectos centrais das histórias e personagens que Doyle criou, dentro de um certo contexto histórico, sem ser chata. Se consegui convencer alguém a ler ou reler os livros e pensar um pouco em suas ramificações, ficarei bastante feliz.

[Dé: Se for pra te encher o saco com a inconsistência de datas, ainda ficaria feliz? =D

Lu: Por incrível que possa parecer... sim XD]


Agora, contudo, chegamos à última parte desse especial e, antes que eu comece meu período de reabilitação pós-era vitoriana (porque nos últimos meses, parece que foi só isso que li e minha cabeça realmente precisa voltar ao mundo moderno...), creio que seja o momento de apresentar algumas conclusões.

Nos cento e vinte e cinco anos que se passaram desde a publicação de Um Estudo em Vermelho, o mundo criado por Doyle continua a conquistar e fascinar leitores pelo mundo inteiro e inspirar outras tantas obras, autores e diretores. Praticamente todas as séries policiais que fazem sucesso hoje pagam tributo ao detetive – seja no formato das investigações, seja nos próprios personagens. As histórias do cânone foram traduzidas para quase todas as línguas vivas (e algumas mortas) e há centenas de sociedades ao redor do mundo dedicadas a elas. Holmes é, segundo o Guiness Book, o personagem mais vezes retratado em filmes, encarnado por mais de setenta atores diferentes – e a lista só tende a aumentar.

Como fenômeno literário, Sherlock Holmes é algo sem precedentes. Talvez seja o mais antigo ‘fandom’ literário – praticamente desde o começo, seus leitores estavam debatendo as histórias, publicando cartas nos jornais para chamar a atenção de contradições das narrativas de Watson, sendo ‘trollados’ pelo autor e escrevendo ‘fanfics’ (Leblanc colocou Holmes para contender com Lupin já em 1907!).

Mas o que há de tão extraordinário nesse personagem para criar tal tipo de devoção, quase que um verdadeiro culto? Por que mais de cem anos depois de serem publicadas, continuamos devorando as histórias, criando teorias da conspiração, quase arrancando cabelos enquanto espera a nova temporada de uma adaptação?

David Grann, em seu livro O Diabo & Sherlock Holmes: histórias reais de assassinato, loucura e obsessão observa a certa altura que quando Holmes fez sua estréia, em 1887,
...foi considerado não só uma personagem, mas um modelo da fé vitoriana em tudo o que era científico. Entrou para a consciência pública mais ou menos na mesma época que o desenvolvimento da força policial moderna, em um momento no qual a medicina estava perto de erradicar doenças comuns e a industrialização se propunha a diminuir a pobreza das massas. Ele era a prova de que, de fato, as forças da razão podiam triunfar sobre as forças da loucura.
E continua, citando Edgar W. Smith, num ensaio publicado no Baker Street Journal em 1946, sob o título "What is it that we love in Sherlock Holmes":
Nós o vemos como a melhor expressão do nosso anseio de derrotar o mal e de consertar as injustiças que infestam este mundo. Ele é Galahad e Sócrates, trazendo grandes aventuras a nossa existência monótona e lógica imparcial e serena a nossa mente tendenciosa. Ele é o sucesso de todos os nossos fracassos; a fuga ousada de nosso aprisionamento.
Seno bastante sincera, eu não vejo as histórias de Holmes como atuais. Elas se beneficiam de um clima que não se pode criar em lugar algum e uma época que quase nada tem a ver com a nossa. A Inglaterra vitoriana é um mundo hoje quase tão distante de nós quanto Faërie.

Ainda assim, Holmes – e Watson também, pois um não pode existir sem o outro – é imortal. Como bem observa Edgar Smith, sua mente, seu amor pela lógica, pelo racional, nos deslumbra, ao mesmo tempo em que nos deixa confusos com suas manias e excentricidades. A absoluta lealdade de Watson nos encanta e se há algo que possamos invejar a Holmes é ter um amigo como Watson.

A amizade entre o detetive e o doutor permanece um retrato único, quase arquetípico. Não há, antes ou depois deles, personagens com o mesmo grau de afeto, respeito, admiração, confiança. E talvez essa seja o principal motivo pelo qual continuamos lendo Sherlock Holmes.

Os casos estranhos, as investigações, os métodos forenses, os passos do método dedutivo; tudo isso acaba sendo um tanto secundário ao descobrirmos a humanidade, o ‘grande coração’ por trás da grande mente. Holmes é extraordinário por ser extraordinariamente humano – ainda que tente ocultar essa faceta por trás do humor ácido e atitude blasé.

Seja pela aventura ou pelo mistério, pelo romance ou pela amizade, pela História e pela Ficção, vale à pena conhecer o mundo que se esconde por trás das ruas enevoadas iluminadas por lampiões a gás logo após a porta de 221B Baker Street.

Você está pronto para o Jogo?

“Come, Watson, come! The game is afoot!”

Algumas Fontes

Livros
The Complete Sherlock Holmes – Sir Arthur Conan Doyle
Aventuras Inéditas de Sherlock Holmes – Sir Arthur Conan Doyle (série de histórias, ensaios e artigos escritas originalmente pelo autor, mas que não entraram no cânone)
The Quotable Holmes – Gerard Van Der Leun
Sherlock Holmes: The Unauthorized Biography - Nick Rennison
Encyclopedia Sherlockiana – Matthew e. Bunson
Os Livros e os Dias – Alberto Manguel

Sobre a Linha do Tempo
Sherlock Holmes Timeline – além de reunir as cronologias de outros principais Holmesianos, apresenta teorias alternativas bastante sólidas e foi a linha que acabei adotando enquanto relia os contos em ordem ‘cronológica’.

Artigos, teses, comentários, etc...
Discovering Sherlock Holmes – projeto da Universidade de Stanford trazendo algumas das principais histórias do cânone anotas e comentadas.
The Universal Sherlock Holmes - informações sobre a coleção Sherlock Holmes da Universidade de Minnesota (onde descobri que havia balés e óperas inspiradas no detetive...).
Mundo Elementar – reúne vários bons artigos em português, bem como todos os contos traduzidos.
Sherlock Holmes Brasil – excelente site com referências, artigos e bibliografia recomendada.
Sherlockian.Net – talvez um dos mais completos sites sobre o detetive, com abundantes informações sobre tudo relacionado a Holmes.
The Chronicles of Sir Arthur Conan Doyle – um bom site com informações sobre Holmes e seu criador.
The Baker Street Journal – traz artigos acadêmicos sobre o detetive (embora nem todos estejam disponíveis online)
With Love, S.H. – dedicado a decodificar o subtexto homoerótico das histórias do cânone.
The Baker Street Babes – podcast organizado por mulheres fãs de Holmes. Vale muito à pena, inclusive pelas várias entrevistas com escritores de livros sobre/com o detetive, além de excelentes análises dos personagens. Em inglês.


[Dé: Só senti falta de uma coisa... cadê o RATO GIGANTE DA SUMATRA?!?

Lu: Em Sumatra?]


Finis


A Coruja


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9 comentários:

  1. "Nós o vemos como a melhor expressão do nosso anseio de derrotar o mal e de consertar as injustiças que infestam este mundo. Ele é Galahad e Sócrates, trazendo grandes aventuras a nossa existência monótona e lógica imparcial e serena a nossa mente tendenciosa. Ele é o sucesso de todos os nossos fracassos; a fuga ousada de nosso aprisionamento."

    Acho que esse trecho disse tudo.Vou ficar com saudades...

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  2. Nossa, gostei muito desse blog, principalmente pelos vários textos sobre Sherlock Holmes, de quem sou fã a ponto de comprar (às vezes até sem poder) tudo relacionado ao detetive, desde filmes e séries a coleções de livros. Profundo conhecimento dos responsáveis deste blog sobre a obra máxima de Doyle. Senti até vergonha do meu diminuto blog onde eu também exponho o que sei (pouco, vejo agora)sobre Sherlock.

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    1. Nada de ficar com vergonha, Sérgio! Quando me propus a escrever esse especial, eu reli todas as histórias, fiz várias anotações, pesquisei e escarafunchei e aprendi muita coisa que não sabia. Acho que o importante é justamente ir atrás, procurar, descobrir coisas novas e depois compartilhar esse conhecimento.

      E, olha, eu passei os cinco últimos meses devorando tudo o que podia encontrar do Doyle para poder escrever essas quase trinta páginas do especial... mas ainda há tanto para descobrir...

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  3. A, o que há para falar agora? Já disse tudo!
    Esse especial passou tão rápido! É incrível como há tanto para se falar sobre esse personagem e suas histórias. E pode ter certeza de que pelo menos a minha pessoa você conseguiu convencer a reler o que já tinha sido lido e seguir com o Cânone ^^ Enquanto espero loucamente pela terceira temporada da BBC...

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    1. Ficaremos todos carecas até a terceira temporada. Já tenho teorias sobre o que vai acontecer nela e como sofrerei um infarto antes de chegar à quarta...

      Foi bom enquanto durou e fico muito feliz pela companhia, Liz! Espero continuar a vê-la por aqui, mesmo que não seja para falar de Sherlock ;)

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    2. Como pode um seriado de tv fazer isso com a gente, não é?
      Eu sempre passo por aqui! Mas vou deixar de preguiça e comentar também, pode ter certeza! ^^

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  4. "Em Sumatra" foi ótima... LOL

    Realmente, vc leu tudo isso?! Por essas e outras que te amo... oO

    Muito bom, ficou bem trabalhado, Lulu. :)
    (se vc queria ser 100% neutra, contudo, são outros 500)
    e wow... de novo! :D

    ei, se tu vai fzr sobre creepy fairytales, vai ver a serie "once upon a time"! :)
    a forma como os autores "are weaving" os contos de fadas juntos é mirabolantemente fantástica! <3

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    1. Bem, foram cinco meses de pesquisa, né, Ísis... e você sabe que não gosto de fazer as coisas pela metade ;)

      Eu não queria ser 100% neutra, mas razoavelmente imparcial. Acho que isso eu consegui, não?

      Eu estou com Once Upon a Time aqui para assistir tão logo tenha tempo. Já ouvi muitos comentários a respeito dela, e estou bastante curiosa...

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