1 de junho de 2011
Para ler: O Aprendiz de Morte
De todos os personagens criados por Pratchett, talvez o mais emblemático, aquele que sempre reconhecemos independente de qual seja a obra em que ele apareça, é Morte. Mesmo fora da série Discworld, em Belas Maldições, nós somos capazes de perceber que o Motoqueiro do Apocalipse responsável por despachar as almas deste para o outro mundo tem o toque do cara de chapéu.Esta é a sala onde são guardados, à luz de velas, todos os marcadores do tempo: prateleiras e mais prateleiras de ampulhetas, cada qual para uma pessoa viva, derramando sua areia fina do futuro ao passado. O chio acumulado dos grãos caindo faz a sala retumbar como o oceano.
Este é o dono da sala, andando com ar de preocupação. Seu nome é Morte.
Mas não qualquer Morte. Este é o Morte cuja esfera particular de ações é, bem, nem um pouco esférica, mas sim o Discworld, que é plano, fica no lombo de quatro elefantes gigantescos - que, por sua vez, sustentam-se sobre a carapaça da enorme tartaruga estelar Grande A'Tuin -, e é contornado por uma queda-d'água a verter no espaço sem fim.
Cientistas calcularam que as chances de uma coisa tão notoriamente absurda acontecer são de uma em um milhão.
Mas os mágicos calcularam que chances de uma em um milhão ocorrem nove a cada dez vezes.
Sobre o chão de ladrilhos brancos e pretos, Morte avança com seus pés de osso, murmurando sob o capuz enquanto passeia os dedos esqueléticos pelas fileiras de ampulhetas em atividade.
Por fim, encontra uma que parece satisfazê-lo, suspende-a da prateleira e a leva até a vela mais próxima. Segura-a de modo a fazê-la reluzir sob a luz e fita o pontinho do brilho refletido.
Com as órbitas cintilantes, avista a tartaruga-mundo, gingando pelas profundezas do espaço com o casco marcado por cometas e meteoros. Um dia, mesmo a Grande A'Tuin vai morrer, Morte sabe disso; agora, seria um desafio.
Mas o foco do olhar se desvia para cima, em direção ao esplendor azul e verde do próprio Disco, a girar lentamente sob o minúsculo Sol.
Então se dirige para a grande cordilheira chamada Ramtops. As Ramtops são repletas de vales profundos, penhascos inusitados e mais características geográficas do que realmente precisariam. Possuem seu próprio clima, cheio de chuvas de pedra, ventos de chicote e tempestades permanentes. Algumas pessoas dizem que é assim porque as Ramtops guardam a magia antiga, selvagem. Não importa, algumas pessoas dizem qualquer bobagem.
Morte pisca os olhos, ajusta o foco. Então vê o terreno gramado das ladeiras que descem no sentido horário das montanhas.
Vê uma certa colina.
Um campo.
Um menino correndo.
Observa.
Então, numa voz que se assemelha a lajes de chumbo caindo sobre granito, diz:
- CERTO.
Já o encontramos em livros anteriores – Rincewind tinha uma enorme propensão a se meter em situações nas quais a presença de Morte era em requisito necessário. Mas nessas primeiras aparições, ele ainda não tinha desenvolvido a personalidade com que nos acostumamos – pelo contrário, tinha um certo senso de humor sádico e ficava quase furioso de não levar Rincewind com ele no último minuto.
É nesse volume que vamos encontrar a consolidação da personalidade curiosa da personificação da morte no Disco. E é nele que teremos respostas para uma série de perguntas, tais como o que é Morte, além de um esqueleto coberto de preto com supernovas por olhos? Onde ele fica quando não está trabalhando? Como ele consegue se dividir para dar conta de tanto trabalho? Quem cozinha para ele? E como é o plano de aposentadoria do cargo?
O Aprendiz de Morte começa com Mort, filho de um fazendeiro, indo para uma feira de aprendizes. Seu pai acha que ele pensa demais, o que não é uma ocupação muito comum na família e nem ajuda muito na hora de cuidar das plantas e animais. Sua idéia então é levar o menino para a feira, onde ele poderá ser acolhido sob a tutela de algum artesão e então o problema não será mais dele.
Ao longo do dia, Mort observa todos os outros jovens presentes serem acolhidos, conforme suas características e necessidades do cargo, enquanto ele mesmo fica para trás. Até que, ao soar da meia-noite, quando seu pai já se desespera de conseguir se livrar do filho, surge um forasteiro que se oferece para ser tutor de Mort.
Este forasteiro é alto, fala com letras em caixa alta e produz uma sensação em seus interlocutores não totalmente agradável.
Eis como Mort se torna aprendiz de Morte e vai parar nos domínios de seu quase xará, onde conhecerá Ysabell, a filha adotada e um tanto arrogante do chefe, e Albert, outrora o maior mago do Disco e fundador da Universidade Invisível, agora criado pessoal e faz-tudo do grande ceifador.Lezek piscou os olhos.
- Não vi você chegar - desculpou-se. - Sinto muito... devia estar com a cabeça em outro lugar.
- EU ESTAVA OFERECENDO UM CARGO AO SEU FILHO - informou Morte. - CONTO COM SUA APROVAÇÃO?
- Qual é mesmo o seu trabalho? - perguntou Lezek, encarando o esqueleto vestido de preto sem revelar a menor sombra de espanto.
- CONDUZO ALMAS PARA O PRÓXIMO MUNDO - respondeu Morte.
- Ah - soltou Lezek. - É claro, desculpe, eu já deveria ter adivinhado pelas roupas. Um trabalho muito interessante, bastante estável. O negócio é sólido?
- JÁ ESTOU NELE HÁ ALGUM TEMPO - considerou Morte.
- Excelente. Nunca pensei nisso como trabalho para o Mort, mas é uma boa profissão, uma boa profissão, bastante segura. Qual é o seu nome?
- MORTE.
- Papai... - interveio Mort.
- Nunca ouvi falar da empresa - considerou Lezek. - Onde fica?
- DAS PROFUNDEZAS DO MAR A ALTURAS QUE NEM AS ÁGUIAS PODEM ALCANÇAR - respondeu Morte.
- Nada mal - considerou Lezek. - Bem, eu...
- Papai - insistiu Mort, puxando o casaco de Lezek. Morte pôs a mão no ombro do menino.
- O QUE SEU PAI VÊ E ESCUTA NÃO É O QUE VOCÊ VÊ E ESCUTA - explicou. - NÃO O DEIXE PREOCUPADO. ACHA QUE ELE GOSTARIA DE ME VER... EM CARNE E OSSO, SE FOSSE O CASO?
- Mas o senhor é o Morte - retrucou Mort. - Sai por aí matando as pessoas!
- EU? MATAR? - indignou-se Morte, notadamente ofendido. - CLARO QUE NÃO. AS PESSOAS SÃO MORTAS, E ISSO É PROBLEMA DELAS. EU SÓ ASSUMO O COMANDO A PARTIR DAÍ. AFINAL, SERIA UM MUNDO BASTANTE IDIOTA SE AS PESSOAS FOSSEM MORTAS SEM MORRER, NÃO É MESMO?
Morte sente uma estranha... fascinação pela humanidade – se é que podemos aqui falar de sentir no sentido próprio do termo. Ele é uma criatura de Dever, em suas próprias palavras, e leva suas responsabilidades muito a sério. Volta e meia, contudo, perde-se em conjecturas sobre o que faz um ser humano... um ser humano.
Para conseguir essa compreensão, ele tenta mimetizar comportamentos humanos – o que muitas vezes confunde Mort. Por exemplo, por que uma personificação antropomórfica teria adotado uma filha? Por que ele permite que Albert permaneça em seus domínios? Por que cargas d’água ele tem um banheiro?
Claro que Morte pode apenas mimetizar esses comportamentos, mas sem compreender a significação deles. É por isso que seu banheiro tem tolhas feitas de pedra e encanamentos que não funcionam.
Seja como for... com um aprendiz dentro de casa, Morte começa a deixar mais e mais responsabilidades para Mort, enquanto se distrai com sua inesgotável vontade de compreender a humanidade – a ponto de arranjar um emprego como cozinheiro em Ankh-Morpork.
O problema é que no curso de suas tarefas, Mort, que tem uma noção de justiça mais forte que o senso de Destino, acaba por salvar a vida de uma princesa em vez de recolher sua alma após terminado o tempo da ampulheta – o que se traduz num desvio do tecido espaço-temporal, a criação de uma nova dimensão e o fim do mundo.
De novo.
Nada como um dia de trabalho após o outro, não?
A Coruja
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