21 de setembro de 2009

Fronteiras do Universo - (o livro, o filme e uma aula de teologia)

Esse artigo foi publicado pela primeira vez no Tsuru, no início de 2008. Estou republicando ele aqui porque meu próximo artigo é sobre o livro novo do Pullman e algumas referências ao que já foi anteriormente colocado nele serão feitas.


Philip Pullman seguiu o caminho aberto por seus predecessores nas narrativas de fantasia - Tolkien e Lewis. Como eles, foi professor; não de uma universidade, mas de crianças, escrevendo durante algum tempo peças para festivais escolares e livros infantis, antes de realmente tornar-se um escritor.

Em comum, além do fato de terem escrito livros de ficção fantástica e da carreira, os três usaram da religião, em maior ou menor grau, dentro de suas histórias. Em Tolkien, é o Silmarillion que mais terá essa faceta presente; Lewis nos traz em Nárnia fábulas cristãs, incluindo ali até mesmo a ressurreição de Cristo e o Apocalipse.

Pullman, contudo, usou uma visão muito diferente da religião em suas obras. Na premiada trilogia His Dark Materials, a ‘Autoridade’ e, principalmente, a ‘Igreja’, surgem como as grandes vilãs da história.

Esse ponto de vista já rendeu diversas discussões - diante da estréia do filme baseado no primeiro livro da série, A Bússola Dourada, vários grupos religiosos fizeram propaganda para que pais não permitissem que seus filhos o fossem assistir.

Muito provavelmente, alguns séculos atrás, os livros de Pullman teriam entrado na lista do índex: os livros proibidos pela Igreja e ele próprio teria sido queimado na fogueira como herege.

Mas não é a religião em si que o escritor ataca em sua obra; mas o fanatismo, o dogmatismo da Igreja; uma faceta que por muitos anos predominou dentro do Catolicismo.

Filosofia, teologia, física, geografia; são diversos os temas abordados dentro de His Dark Materials - na versão em português, Fronteiras do Universo. Embora seja vendida como livros infanto-juvenis, a trilogia tem um viés mais sombrio que as obras desse segmento e exige de seu leitor um certo arcabouço para que possa compreender os vários meandros da história.

Para começar, Pullman colocou como base dos livros o mito bíblico da Gênesis. A história da tentação de Eva permeia toda a narrativa e, para ela, existem diferentes interpretações: a Igreja, principal porta-voz da Autoridade, representa-a como a Queda do Paraíso. Com o desdobrar das aventuras de Lyra Belacqua e Will Parry -personagens principais da trilogia-descobrimos, contudo, que a tentação de Eva, pelo contrário, representaria a ascensão do homem ao conhecimento.

"O Pó ama o Pó." Essa é uma frase citada na história e que explica, de certa forma, essa interpretação. His Dark Materials vai ter sua ação passada em diversos mundos e, em cada um desses mundos, teremos um pouco mais de informação sobre o Pó, a mola propulsora da consciência.

Não posso explicar muito sobre o Pó, ou terminarei por tirar de quem quiser ler os livros, o prazer da descoberta. Mas vamos continuar a história... e tentarei dar o menor número de spoilers possíveis, ok?

Além da Bíblia, a citação mais óbvia, outra obra que serviu de base para Pullman foi O Paraíso Perdido, poema épico do inglês John Milton, que retrata a queda do homem do ponto de vista do "vilão" - Lúcifer.

Lembro de uma história de Gaiman, Murder Mysteries (em português, Mistérios Divinos, publicado em forma de conto na coletânea Fumaças e Espelhos) que tem muito a ver com a idéia do Lúcifer de O Paraíso Perdido. Deus precisava ter sua contraparte. Ele sabia, tinha consciência de que Lúcifer o trairia. E permitiu que isso acontecesse para que se desse curso aos seus planos.

Em His Dark Materials, ainda que Lúcifer não seja diretamente citado, temos vários dos anjos que atuaram na Primeira Rebelião. E, através de Metraton, temos uma pequena, quase ínfima citação da Segunda Rebelião - mito este tratado nos manuscritos apócrifos que se creditam a Enoch, onde anjos teriam tomado esposas na Terra e, com isso, foram banidos do céu, tornando-se nefilim.

Aliás, de acordo com alguns tratados sobre anjos, Enoch, após ter sido arrebatado da Terra por Deus, teria se transformado em Metraton, o Regente. Essa informação também é passada no terceiro livro da série, A Luneta Âmbar.

Muito bem, suficiente de aula de teologia. Vamos agora para o filme, que é o real motivo da resenha, não é? E, para começar, falando com toda a sinceridade, querem saber mesmo?

Eu estou decepcionada.

Não sou o tipo de fã purista que acha que uma adaptação para as telonas tem que seguir passo a passo o livro. Certas cenas não terão o mesmo apelo no cinema; há brechas que podem ser aproveitadas para crescer a história e, acima de tudo, numa obra em que várias histórias se intercruzam, é mais que necessário escolher uma linha predominante para que o filme não se perca num labirinto de histórias soltas.

Quando se trabalha com exíguas duas, três horas de filme, há de se colocar limites para que o que formos ver na tela não se transforme num caldeirão onde se coloca de tudo um pouco e, ao final, não se sabe que resultado deu.

Infelizmente, é mais ou menos isso que acontece com a adaptação do primeiro livro da série para os cinemas, A Bússola Dourada (na versão inglesa, Northern Lights e, na americana, The Golden Compass).

O roteiro não apenas está cheio de furos, mas também parte da essência da história foi perdida. Tentaram fazer foi transformar His Dark Materials em algo palatável para crianças e não conseguiram. As crianças não conseguirão acompanhar a história. E aqueles que leram os livros vão se sentir simplesmente estarrecidos diante do que vão assistir.

Bem, eu, pelo menos, quando fui assistir (e foi numa sessão cedo, bem do tipo ‘família’) não vi uma única criança na sala. E minha reação ao final foi soltar um palavrão dos mais cabeludos... Mas vamos explicar o porquê da minha indignação...

O filme já começa errado ao colocar o aletômetro da Lyra como o único do mundo. Isso faz com que ganchos para os livros seguintes sejam completamente perdidos e também dá menor significado ao dom que Lyra adquire ao longo do primeiro volume, ao tirar a comparação com o trabalho árduo daqueles que passaram uma vida estudando para poderem compreendê-lo.

Em segundo lugar, a relação dos humanos com seus daemons é completamente jogada para escanteio. Pan surge como um bichinho covarde, que praticamente desaparece nas cenas realmente importantes. Estão longe de se mostrarem como uma parte da própria consciência, da essência de seus humanos, exceto por uma ou outra dor física. Isso diminui consideravelmente a importância e o terror que significa a intercisão e torna a cena em que Lyra e Pantalaimon quase são separados apenas em uma amálgama de luzes sem sentido.

Assim como a cena em que Lyra encontra Billy Costa (que, no original, era outro garoto, mas isso não é realmente importante). Eles falham em passar toda tristeza e toda a inaturalidade de uma criança interseccionada. A cena da morte da criança, quando Lyra exige que o enterrem com seu peixe, é uma cena emblemática do livro. Aquela era uma cena que não deveria ter sido cortada no roteiro adaptado.

Iorek foi outra coisa que me decepcionou. Eu só conseguia pensar no urso da coca-cola quando o via correndo pela neve. Não sei como o pessoal do filme não pensou nessa possibilidade de merchandising...


E a luta dele... grande Amaterasu, não teve UMA única gota de sangue! O cara simplesmente rasga a mandíbula do outro e não tem UMA ÚNICA GOTA DE SANGUE! Faça-me o favor. A ferida congelou de imediato, foi?

Eu poderia passar o dia enumerando os defeitos da produção e de roteiro. A cena dela correndo no corredor de gelo é um exemplo de burrice. Era uma oportunidade perfeita de usar um bom clichê numa cena de ação e que quase nos gelaria o sangue.

MAS ELA É SIMPLESMENTE CORTADA! Uma hora, Lyra está no meio da ponte, que começou a ruir. No segundo seguinte, está do outro lado, como se tivesse dado algum pulo do gato ou coisa do tipo.

Agora o final é coisa para um tratado inteiro. Que &*¨%$# fizeram com o final? Eles cortaram Asriel matando Roger! Cortaram a abertura da fenda entre os mundos! O que a Lyra diz ao final do filme é mais parecido com a fala dela ao final do terceiro volume, quando diz que 'temos de construir a República do Céu onde estamos'. Mas de uma forma mais egoísta e presunçosa e aí termina e as coisas ficam sem sentido nenhum.

Céus... Eu imagino se eles farão a continuação-sinceramente, não acho que faria grandes diferenças... Especialmente porque A Faca Sutil e A Luneta Âmbar só fazem aprofundar as sombras da história.

É esperar para ver...

A Coruja


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Um comentário:

  1. Ótima resenha!!!
    Adorei!
    Não li por causa do filme, mas darei uma chance!!

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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

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