20 de outubro de 2010
O Único e Eterno Rei – Parte VI: ‘Bebo para a morte e para a desonra’
- Thomas, minha idéia sobre aqueles cavaleiros foi uma espécie de chama, como esta aqui. Eu a carreguei durante muitos anos com uma mão a protegê-la contra o vento. Muitas vezes ela quase se apagou. Estou lhe passando essa chama agora – promete não deixá-la se apagar?
T. H. White – A Chama ao Vento
Cuidamos já de alguns dos principais personagens dessa história, mas não do grande perpetrador da desgraça e ruína do rei e uma das figuras mais dúbias do ciclo arturiano: Mordred, o sobrinho e filho de Arthur.
Há muitas maneiras de interpretar Mordred, de tentar entender suas ações – de uma forma ou de outra, contudo, elas sempre terão por conseqüência a obliteração de Camelot e de tudo aquilo que a cavalaria e Arthur representam.
Mordred aparece desde as versões mais antigas da história, inicialmente apenas como sobrinho de Arthur, filho de Anna, sua irmã e do rei Lot. Não havia a questão do incesto – o rapaz era apenas uma criatura ambiciosa, que, aproveitando-se da ausência do tio quando este parte para combate o Império Romano (lembrando que nessas primeiras versões não tínhamos ainda Lancelot), seduzia Guinevere, casava com ela (consensualmente) e coroava-se rei.
É curioso que exatamente nessas versões mais antigas do mito, há menções a um filho de Arthur, Amr, que aparece na Historia de Nennius, e que foi morto pelo próprio pai – embora não haja explicações para tal ato. Para dizer a verdade, há outros tantos filhos de Arthur espalhados em romances da Vulgata e outras fontes mais obscuras, mas de forma geral, nenhum deles parece ter sido legítimo.
As informações sobre o assunto são desencontradas – afinal, o ciclo arturiano é um dos maiores exemplos do velho ditado “quem conta um conto aumenta um ponto”. Cada autor que pegava as figuras estabelecidas no cânone saía fazendo suas próprias adições, interferindo na história e fazendo de conta que aquilo que ele tinha colocado era parte da história original. Distinguir, portanto, quantos filhos Arthur teve, com quantas mulheres diferentes é quase que trabalho para uma vida.
Creio ter visto apenas uma menção a Guinevere como mãe – em Perlesvaus, de autoria desconhecida, manuscrito francês do século XIII e que não segue quase nenhum dos caminhos já estabelecidos pela lenda. Nessa obra, ela e Arthur teriam tido Loholt, mas o que diabos acontece com o menino, ninguém sabe, já que boa parte da história se perdeu.
De uma forma geral, contudo, Mordred assume o lugar de todos esses filhos ilegítimos e talvez ecoe sim o Amr de Nennius. E, da mesma forma que seu tio e pai, há muitas maneiras de interpretá-lo.
Podemos encarar Mordred como o grande vilão da história – ambicioso e vingativo, manipulador, de personalidade sombria e dissimulada. Este Mordred me faz lembrar a figura de Ricardo III, um dos personagens mais malignos e poderosos de Shakespeare – um homem que não para por nada, por nenhuma lealdade, para alcançar o poder.
Essa análise, contudo, é muito simplista e eu não acredito que seres humanos sejam capazes de maldades e bondades absolutas – e sempre transmito esse pensamento aos personagens.
Não interpreto o Mordred apenas como um vilão. Ele pode ser o agente objetivo da ruína de Camelot, mas muita coisa rolou pelos bastidores antes que ele assumisse esse papel e o rapaz não é único a quem se deve culpar.
Também não direi que ele é uma simples vítima das circunstâncias, um produto de seu meio. Alguns autores, por exemplo, fizeram dele um peão nas mãos de uma vingativa Morgause. Se for para pensar em Mordred como um peão, contudo, eu prefiro pensá-lo como um peão dos deuses, ou do destino, na medida em que lemos as histórias da vida de Arthur como uma tragédia grega, uma maldição inexorável que se abateu sobre toda a casa de Pendragon pelo crime de Uther.
Mordred é filho de Arthur com a própria irmã. Um bastardo dentro de casa, talvez visto com desprezo ou mesmo asco – a prova viva de uma grande infâmia. Ainda bebê, seu próprio pai tentou matá-lo – Arthur teria sonhado ou lhe teriam profetizado que uma criança nascida em Maio lhe mataria e, tentando fugir ao seu destino, o rei dá uma de Herodes, ou de Faraó com os judeus e manda que coloquem todas as crianças nascidas naquele mês, naquelas condições, sejam colocadas num navio e deixadas à morte.
Profecia auto-realizável. Se Arthur não tivesse ordenado esse massacre, não tivesse mandado matar o próprio filho, então – quem sabe? – Mordred poderia não odiá-lo, poderia não querer traí-lo.
Mordred foi o único a sobreviver no navio e, de acordo com algumas das histórias, teria ficado ligeiramente deficiente de um braço (tal como a corcunda de Ricardo III). Por isso, nunca teria sido bom com a espada – e o que seria dele numa corte onde a valentia, a perícia com as armas, e os combates acirrados eram valorizados quase que acima de tudo?
E então Arthur o reconhece em particular como filho, pede perdão pelos erros passados e, através de suas ações, demonstra que deixará a coroa da Inglaterra para ele. E, realmente, se Mordred não tivesse levantado um exército contra Arthur, eu não duvido que ele teria sido feito herdeiro do trono.
Mas o que isso significaria de verdade para o rapaz? Ser rei numa corte em que ninguém o respeitava ou bem queria, onde suas qualidades – sua inteligência, especialmente – não eram reconhecidas, sob o nome de um pai que jamais poderia realmente assumi-lo, talvez visto com desconfiança pelos outros cavaleiros que não poderiam entender o porquê de sua nova posição, resultado de um erro do qual ele estava totalmente consciente?
Como você se sentiria se soubesse que foi um erro? Que jamais foi desejado e, pior, que tentaram se livrar de você de todos os modos?
É, eu também não seria uma pessoa particularmente feliz.
Independente da forma como interpretemos sua figura, Mordred permanece no imaginário do ciclo arturiano como a sombra, a traição – mais até que Lancelot e Guinevere. Não são apenas suas ações; ele próprio representa a aniquilamento de uma época, de uma utopia.
E talvez fosse esse o destino de Arthur e sua Camelot desde o princípio. Eles representam uma utopia. E utopias estão fadadas ao fracasso – elas não são para seres humanos, perfeitos em suas imperfeições.
Ainda assim, eles foram uma chama. Uma chama que jamais se apagou, capaz de nos inspirar até hoje, enquanto esperamos a volta do Único e Futuro Rei.
(Continua em Hic jacet Arturus Rex quondam Rex que futurus...)
A Coruja
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