16 de junho de 2010

Julgando as persuasões de "Persuasão" - uma análise do último romance de Austen



Continuando na minha super-maratona austeniana, hoje vamos começar a análise do livro Persuasão. Tinha pensado inicialmente em fazer uma resenha de cada um dos livros da Austen, mas cheguei à conclusão de que era melhor guardar alguma coisa para o próximo encontro, não é?

Persuasão foi o último romance completo que Austen escreveu – ela começou pouco depois de ter terminado Emma, por volta de agosto de 1815, terminando a primeira versão um ano depois, já doente. Considerando que ela escreveu Orgulho e Preconceito em 1796, no mesmo espaço de um ano, para depois revisá-lo e revisar de novo até 1811, é compreensível que por vezes Persuasão pareça uma obra... não digo inacabada... mas sem o devido polimento.

Pois é, eu também fiquei meio besta quando descobri que Tia Jane passou quase quinze anos revisando um livro...

Apesar disso, é meu livro favorito da Austen. Há um amadurecimento tanto no tema quanto na forma com que ela escreve. Para começo de conversa, a protagonista é quase uma balzaquiana, à beira dos trinta anos – o que, para os padrões da época, era já a meia-idade – ao contrário de todas as suas outras heroínas: Jane Bennet tem 22 anos e Lizzy, 21 ao começo de Orgulho e Preconceito; Elinor Dashwood tem 19 em Razão e Sensibilidade.

Nenhuma delas tem grande experiência – podem até ter um bom senso natural, mas não experiência – e todas elas estão ali se apaixonando pela primeira vez.

Essa é a primeira grande diferença de Anne Elliot para todas as suas outras colegas de estante. Ela tem vinte e sete anos e não se casou – o que a qualifica para se sentar com as matronas e solteironas em qualquer salão. Ela não é material para casamentos ou mesmo para felizes para sempre. Além disso, ela tem a experiência do primeiro amor – e também de um coração partido.


É engraçado, mas Persuasão foi duramente criticada por sua “falta de moral”: em 1817, quando primeiro publicado, criticou-se porque não parecia muito sábio que aos jovens fosse permitido escolherem com quem queriam se casar – a conduta de Anne era subversiva, quase escandalosa. Duzentos anos depois, os críticos reclamam que Anne é “quase perfeita, tediosamente desprovida de faltas”.

Vá se entender os críticos...

A verdade – ao menos na minha opinião de leitora – é que Persuasão é sim uma obra meio subversiva, especialmente a se considerar os padrões da época. De todos os casais de Austen, Anne e Wentworth são os mais passionais, os únicos que realmente desafiam convenções (e não apenas as convenções de classe).

Não era o Sr. Wentworth, o antigo cura de Monkford como as aparências poderiam levar a supor, mas sim um capitão Frederick Wentworth, seu irmão, que, tendo sido promovido a comandante em sequência de uma batalha ao largo de São Domingos e não tendo sido imediatamente destacado, viera para Somersetshire no Verão de 1806; e, como já não tinha os pais vivos hospedara-se, durante meio ano, em Monkford. Ele era, nessa altura, um jovem esplêndido, muito inteligente, ativo e brilhante; e Anne era uma menina extremamente bonita, meiga, modesta e com bom gosto e bons sentimentos. Metade da atração sentida por cada uma das partes teria bastado, pois ele não tinha nada que fazer e ela não tinha praticamente ninguém para amar, mas a confluência de tão abundantes qualidades não podia falhar. Foram-se conhecendo gradualmente e, depois de se conhecerem, apaixonaram-se rápida e profundamente.

A natureza da relação de Anne e Wentworth pode perfeitamente ter sido um dos motivos para que Lady Russell tenha aconselhado sua protegida a desmanchar o noivado. Não era apenas uma diferença de classes, uma questão econômica, mas existia um componente quase incendiário na equação. Lady Russell podia ver ali uma semente para um Romeu & Julieta da vida: muito rápido, muito intenso e pouquíssimo aconselhável.

Claro, em nada facilitava que Wentworth estivesse para partir de novo e quisesse apressar as coisas o máximo possível. Vamos concordar que além de impulsivo, o cara era bastante cabeça-dura e teimoso.

Mas eu o desculpo porque ao final das contas, Wentworth é um pirata institucionalizado – ainda que ele divida o botim com o Estado, não deixa de ser um pirata, pilhando navios franceses e espanhóis – e há poucas figuras mais charmosas que um bom e velho pirata.

Ok, esse foi um comentário cretino. Voltemos ao que interessa...

Aliás, nos primeiros estágios do “reencontro e reconhecimento” de Anne e Frederick, podemos ver esse elemento passional com bastante clareza.

A emoção que sentiu ao descobri-lo deixou-a completamente sem fala. Ela nem sequer conseguiu agradecer-lhe. Só conseguiu ficar junto do pequeno Charles, sentindo-se muito perturbada. A amabilidade dele ao vir socorrê-la, a sua atitude, o silêncio em que tudo se passou, os pequenos pormenores, juntamente com a convicção que logo lhe ocorreu, pelo barulho que ele estava a fazer propositadamente com a criança, de que ele tencionava evitar ouvir os seus agradecimentos e procurava mostrar que o que menos queria era conversar com ela, produziram um turbilhão de sensações confusas e dolorosas de que só conseguiu recompor-se quando Mary e as Meninas Musgrove entraram, e ela pôde entregar a criança aos seus cuidados e sair da sala. Ela não podia ficar. Talvez fosse uma oportunidade para observar os amores e os ciúmes dos quatro; eles estavam agora todos juntos, mas ela não podia mesmo ficar.

E não esqueçamos das palavras do próprio Frederick, que falando sobre James Benwick, está obviamente dando vazão aos próprios sentimentos:

Parece, pelo contrário, ter sido um sentimento perfeitamente espontâneo da parte dele, e isso surpreende-me. Um homem como ele, na sua situação! Com o coração ferido, quase destroçado! Fanny Harville era uma criatura superior; e o seu amor por ela era verdadeiramente amor. Um homem não se refaz facilmente de uma tal dedicação por uma mulher assim! Ele não deve, não pode, fazê-lo.

Ok, agora vamos considerar o seguinte... nessa época, se uma garota se encontrasse sozinha na presença de um rapaz por uma certa quantidade de tempo, isso era motivo suficiente para que ela tivesse sua reputação manchada, bem como para que a família exigisse reparação – em outras palavras, casamento.

A mulher era educada para ser uma dama perfeita, de sensibilidade e modéstia, romântica, frágil – Austen, aliás, faz constante graça com essa imagem moldada em muitos romances seus contemporâneos; no inacabado Catherine or The Bower, Mrs. Percival sente-se tão absolutamente confusa com o enorme número de regras existentes para criar uma moça que acaba decidindo-se a reduzir todo aquele imenso código moral em uma única regra a ser aplicada a sua protegida, Catherine: não deixe sua filha conhecer um homem e você estará segura.

Sob essa compreensão do período, o comportamento de Anne – que puxa conversa com Wentworth no concerto em Bath, buscando seu olhar, tentando desesperadamente, por todas as formas possíveis, comunicar-lhe seus sentimentos – ora, isso era realmente subversivo, escandaloso, uma imoralidade!

Antes, contudo, que cheguemos a essa parte da história, há muito chão e muitas observações a fazer.

O título do romance nos dá o que precisamos saber da história: a persuasão de Anne é um dos principais motes do enredo... mas não é o único tema que se levanta na situação. O que existe aqui é um conflito moral mais complicado do que se aparenta à primeira vista. Por um lado está tudo aquilo que Anne aprendeu durante sua vida, todas as convenções sociais, tudo aquilo que é certo pelo julgamento dos outros... e tudo aquilo que é certo pelo seu julgamento.

Durante a primeira parte da história, Anne é – com o perdão da palavra – um capacho, uma verdadeira mosca-morta. Das heroínas de Austen, ela é a mais solitária: diferentemente das Dashwood ou das Bennet, Anne não tem em nenhuma das irmãs um apoio, uma confidente. A única pessoa no mundo que se importava com ela era Lady Russell e, após a amargura de sua despedida de Wentworth, mesmo ela, Anne afastou.

O engraçado é que Anne, figurativamente, é a garota perfeita. Ela tem boas maneiras, é gentil, delicada, gosta de livros, toca bem, fala italiano com fluência, é capaz de administrar uma casa apesar dos mandos e desmandos da irmã e do pai, é inteligente, tem senso de humor – ela é, enfim, o modelo daquela moça prendada que Lizzy, os Bingley e Darcy discutem em Netherfield.


Mas Anne é, também, uma pessoa vazia. Tendo escolhido viver por princípios e pelo julgamento da sociedade – uma decisão completamente racional – ela sacrificou sua felicidade. E o que ganhou com isso? Vivendo à sombra da família, uma sombra ela mesma, permitindo que todos usem e abusem de si: ao início do livro, Anne perdeu toda a energia, toda a vontade de viver. Ela passa pelas horas e dias de forma mecânica.

Em outras palavras, Anne é um zumbi.

É interessante observar que não há nenhuma ação assertiva da parte dos protagonistas para precipitar o reencontro. Anne e Frederick chegam juntos ao final por um golpe de sorte: em quase oito anos, nenhum deles fez qualquer tentativa de contatar o outro; não tivessem eles se reencontrado, independente do quanto tenham sido obviamente feitos um para o outro, independente de nenhum dos dois ter encontrado felicidade nos braços de outra pessoa (e ambos obviamente tiveram a chance de tentar), não fosse o acidente de percurso dos Croft terem ido parar em Kellynch Hall, eles nunca teriam agido de acordo com seus sentimentos.

Obviamente que se isso tivesse acontecido, não haveria muita graça no livro. Provavelmente, nem teríamos Persuasão.

Tendo cuidado de Anne, falemos agora do captain, my captain, Frederick Wentworth.

Ok, o que eu tenho para dizer sobre Frederick... bem, primeiro, que, embora Mr. Darcy seja uma quase unanimidade, meu protagonista favorito das novelas de Austen é o capitão. Afinal, ele usa uniforme (kkkkkkkkkkkkkkk), e além de tudo, ele é um pirata, e eu tenho uma certa queda por piratas – não os de verdade, é claro, aqueles que passavam meses no mar sem tomar banho e cheiravam ao "delicioso" perfume de rum e suor e sujeira.

Não, eu prefiro os piratas ficcionais, muito obrigada. Aqueles que não cheiram. Ou, se cheiram, pelo menos é só na descrição literária.

Segundo... por mais apaixonante que Wentworth seja, eu não vou negar que ele é, ao menos no princípio da história, um bastardo egoísta que não sabe o que quer e é deliberadamente cruel.


Se fosse uma história passada no dias de hoje, eu realmente guardaria um imenso rancor da Anne por ter desmanchado o noivado deles. Eu diria que ela se deixava influenciar muito facilmente e que ela tinha a escolha de ficar com ele. À luz da época em que a história se passa, contudo, as coisas não são tão simples.

Eu já disse antes que Anne e Wentworth são o mais passional dos casais austenianos e que irracionalidade daí decorrente – porque agir de forma irracional é um componente da paixão – talvez tenha sido um dos motivos pelos quais Lady Russell aconselhou Anne a deixar Frederick partir. Para além disso, contudo, temos também a questão de classe e de dinheiro. Sejamos sinceros: é muito fácil se deixar levar por noções românticas, de que não importam quais os obstáculos que se estabeleçam, o amor supera tudo. Mas não é assim que as coisas acontecem na vida real.

Há vários cenários possíveis resultando do que teria acontecido se Anne continuado com o compromisso. Vamos ver... Primeiro, considerando que ela mesma não tinha uma herança ou um dote; e que Frederick muito menos tinha onde cair morto, não havia como eles se casarem de imediato. Se ainda assim eles tivessem decidido que iam sobreviver de beijos e abraços, o que aconteceria quando Anne se visse sozinha, em terra, enquanto Frederick ia para a guerra? E isso numa época em que o transporte era feito por cavalos e carruagens, o sistema de correios era precário, às vezes os navios passavam meses estacionados no mar e incomunicáveis por causa de uma calmaria. Sério, como vocês acham que ela ia se virar?

Alguém pode talvez argumentar que Sofia Croft, a irmã de Frederick, seguiu seu marido à bordo. Mas aí está: o próprio Wentworth diz que “nunca admitiria, de bom grado, senhoras a bordo de um navio seu, exceto para um baile ou uma visita de algumas horas.” E uma coisa é levar a esposa a bordo quando se está viajando em negócios da Companhia das Índias Ocidentais; outra bem diferente é carregar a esposa no meio de uma guerra (as napoleônicas, para quem não se percebeu da data) para um dos principais campos de combate.

Então, Frederick não levaria Anne para viver com ele num navio. Tudo bem, eles poderiam então postergar o casamento até que ele tivesse juntado dinheiro suficiente para comprar uma casa e instalar a esposa com um mínimo de conforto. Aliás, a essa altura é bom lembrar que Wentworth, quando Anne o conhece, está morando com o irmão porque "não tinha posses. Tivera sorte na profissão, mas, ao gastar com liberalidade o que havia ganhado com igual liberalidade, não acumulara nada". Não posso me deixar de perguntar, considerando a juventude e impetuosidade de Wentworth, com o que ele gastou, de forma tão liberal, tudo o que acumulara até então. Devo confessar que minha imaginação tem algumas opções bem pouco favoráveis a imagem do capitão e, com base nessa incapacidade de se planejar para o futuro, sinto-me obrigada a concordar com Lady Russell.

Já ouviram o ditado “longe dos olhos, longe do coração”? Se já, vocês provavelmente são capazes de entender porque um noivado longo, longuíssimo, sem formas de comunicação entre os dois amantes, dois jovens e bastante inexperientes amantes; sem perspectivas certas além de uma vaga esperança, seria mais um ponto negativo no livro da madrinha de Anne.

Dessa forma, pensando dentro das características da época, a cautela da decisão de nossa heroína talvez tenha sido sua salvação. Bem verdade que Frederick teve uma imensa sorte e quase que em sua primeira missão comissionada, já começou a fazer dinheiro... mas e se ele não tivesse conseguido? Ou se ele tivesse morrido no mar enquanto Anne esperava por ele? Ou se Anne, como Fanny Harville, tivesse morrido enquanto Frederick estava longe? O quão justo é você pedir que uma pessoa o espere por anos a fim, ainda que quase todas as apostas estejam contra você? E o quão justo é você pedir que a pessoa que você supostamente ama escolha entre você e a única outra criatura em todo mundo que parece se importar com ela?

Então, como eu disse, Frederick foi um bastardo egoísta, incapaz de realmente pensar em Anne – na verdade, o tempo todo, ele estava pensando apenas em si mesmo.

É muito fácil para Louisa dizer que seguiria até o fim e uma vez tendo feito uma decisão, ela não arredaria pé. Muito fácil dizer que fazemos isso ou aquilo enquanto o isso e aquilo são apenas hipóteses.

Eu acho que Anne perdoou Frederick muito fácil depois de tudo o que ele aprontou – mais uma vez, a paixão falou mais alto. Todas as vezes em que ele falava besteira sobre o que queria numa esposa, o que queria numa mulher – ou ainda, quando flertava (ou ao menos aceitava o flerte) com as duas irmãs Musgrove, era sempre quando Anne estava por perto.


Se isso não era uma aberta provocação, eu não sei mais o que poderia ser.

O interessante é que Frederick não se decide sobre o que quer. Ele ama Anne, e ama nela suas maneiras, sua gentileza, pela modesta virtude. No entanto, deseja que ela se revolte contra as mesmas tradições que fazem dela ser quem ela é – mas deseja que ela se revolte apenas quando lhe é conveniente (lembrando que ele não quer uma esposa que o siga para o mar). Em resumo, após oito anos, Frederick continua um homem zangado, emocionalmente confuso e que se recusa a ver a razão.

Nenhum dos dois protagonistas é perfeito e, a considerar todas essas “qualidades” de ambos, eu diria que, se tivessem ficado juntos no início de seu conhecimento, provavelmente não teriam sido tão felizes quanto o foram quando se reencontraram oito anos depois. Isso porque, ao longo da história, Frederick começa finalmente a enxergar os erros de seus próprios atos – e isso o faz particularmente irresistível, ao menos, para mim: por mais rígido em seus princípios e orgulhoso que seja nosso caro capitão, ele sabe reconhecer quando errou; ele sabe pedir perdão e, mesmo depois de oito anos de solidão e amargura pela suposta “traição” de Anne, ele ainda é capaz de ter esperança e coragem para se arriscar de novo.

E, se até então eu tivesse conseguido me manter inexpugnável, depois da carta que ele escreve para Anne, o que mais me restava além de cair de amores por esse personagem?

"Já não consigo mais ouvir em silêncio. Tenho de lhe falar pelos meios ao meu alcance. Tu transpassa-me a alma. Sou parte agonia e parte esperança. Não me diga que é demasiado tarde, que sentimentos tão preciosos morreram para sempre. Eu volto a me oferecer a ti, com um coração que é ainda mais teu do que quando o despedaçaste oito anos e meio atrás. Não diga que o homem esquece mais depressa que a mulher, que o amor dele morre mais cedo. Eu não amei ninguém, se não a ti. Posso ter sido injusto, posso ter sido fraco e rancoroso, mas nunca inconstante. Vim a Bath unicamente por tua causa. Os meus pensamentos e planos são todos para ti. Não reparaste nisso? Não percebeste dos meus desejos? Se eu tivesse conseguido ler os teus sentimentos, como creio que deve ter decifrado os meus, não teria esperado estes dez dias. Mal consigo escrever. Estou a cada instante ouvindo coisas que me emocionam. Tu abaixas a voz, mas posso distinguir tons nessa voz que aos outros passariam despercebidos. Criatura demasiada boa, demasiada pura! Faz-nos, de fato, justiça, ao acreditar que os homens são capazes de um verdadeiro afeto e uma verdadeira constância. Creia que tal afeto é mais do que fervoroso e mais do que constante em

F. W.

Tenho de ir, incerto de meu futuro; mas voltarei, ou seguirei o teu grupo, logo que possível. Uma palavra, um olhar será o suficiente para decidir se entrarei na casa de teu pai esta noite, ou nunca.

Ambos os personagens se redimem de suas faltas, oito anos antes da abertura do livro, ao serem capazes de se perdoarem e perdoarem também aqueles envolvidos em sua separação – ainda que eu duvide muito que Wentworth tivesse muita paciência para com o sogro e as cunhadas –, encontrando-se assim no “meio do caminho”: Anne, a doce, gentil, obediente Anne, desafiando convenções e buscando deliberadamente seu capitão em qualquer oportunidade que o destino lhe ofereça; e Frederick, o firme, orgulhoso, o convicto capitão, lutando e aceitando uma segunda chance, estendendo a mão.

Ambos assumem riscos, mas, dessa vez, ambos têm exata noção do que estarão perdendo se deixarem a oportunidade escapar mais uma vez. E apesar de todo o tempo, da decepção e da amargura, os sentimentos que nutriam um pelo outro jamais esmoreceram – mesmo quando parecia tarde demais, eles permaneceram fiéis àquilo que sentiam. E é isso que faz o romance deles ecoar de uma forma tão profunda.


Para arrematar essa análise/ensaio, vamos dar uma olhada nos outros personagens e temas da obra.

Persuasão escancara na crítica - inclusive social -, que, em outros livros, era mais sutil - o preconceito de Orgulho e Preconceito não interfere tanto na relação de Darcy e Elizabeth quanto na de Anne e Frederick.

Aqui nós temos dois personagens em espectros sociais completamente diferentes (e não um cavalheiro rico e a filha de um cavalheiro; ainda que pobre): Anne é filha de um baronete, membro da aristocracia; Frederick... bem, considerando que Frederick e o irmão trabalham (um como oficial naval e outro como clérigo), não acho que eles tenham herdado nada da família: cresceram por seus méritos; fazem parte de uma classe média que começava a despontar na época. Lembrem-se, afinal, que o trabalho não era exatamente uma ocupação de gentis-homens do período.

Eles são separados, bem verdade, não por suas próprias opiniões e preconceitos, mas por uma sociedade arcaica, tradicionalista - representada, especialmente, nas figuras de Sir Walter e Lady Russell. Aliás, interessante é notar que os membros da aristocracia que aparecem nas histórias de Austen - entre os quais podemos citar Lady Catherine, Sir Walter e Mr. Elliot - costumam surgir como caricaturas, seres mesquinhos, cheios de si, preocupados apenas consigo mesmos.

Tenho uma particular teoria que desenvolvi enquanto comentava este livro com algumas pessoas. Não sei se vocês sabem, mas Austen foi meio que "convencida" a dedicar o romance anterior dela, Emma ao príncipe regente, que ficou conhecido exatamente por gostar de lançar moda e se preocupar demasiado com a aparência - diz a História que ele foi nosso primeiro "dândi", ou o "primeiro cavalheiro da Europa" (nas palavras do próprio).

Considerando que Austen escreveu Persuasão logo após terminar Emma, pergunto-me se sir Walter não seria uma cutucada no Príncipe George (futuro George IV).

Teorias da conspiração...

Pois bem, continuemos. Já tratei aqui do fato de que temos de enxergar a história sob o prisma da época em que ela foi escrita. Estes preconceitos são fruto de uma geração, de uma compreensão de mundo - compreensão esta que estava passando por uma mudança que podemos acompanhar no livro.

A Revolução Francesa abrira as feridas da divisão de classes - primeiro, segundo e terceiro estado (nobreza, clero e a plebe 'rude e ignara'...) -, situação esta que, somada ao início da Revolução Industrial e nascimento da burguesia, força outros estados europeus a fazerem mudanças em seus sistemas. São essas mudanças, no espírito da meritocracia - que permitem tanto Frederick quanto seu cunhado e outros oficiais, subirem suas posições - são eles o que chamamos hoje de novos ricos.

Isto se reflete na obra porque, até então, a maior parte das heroínas de Austen tinham encontrado seus finais felizes em homens de sua mesma classe social - ou superiores -, senhores de propriedades e bens, representando assim um elemento de segurança; ao contrário de Anne, que, constante em seu afeto, quase se arruína (pelos padrões de seu tempo, lembrem-se): se ela não tivesse reecontrado o capitão, acredito que, no final das contas, terminaria seus dias solteira (eu não acho que ela teria se casado com Mr. Elliot, mesmo na circunstância de não ter reencontrado Wentworth) e, muito provavelmente, sem recursos, tendo de trabalhar, talvez até como governanta.

Oh, o horror...

Há aqui também a questão da família. Acho que já observei em alguma passagem anterior o quanto Anne é solitária. Sua família, como um todo, é um poço de egoísmos, egos e contradições. Ela é por todos preterida, considerada praticamente insignificante. Aliás, sou a única que sente vontade de quebrar o nariz da Elizabeth toda vez que ela entra em cena? A Mary ainda é mais ou menos engraçada com sua tendência à hipocondria - embora seja tão egocêntrica e preconceituosa quanto o resto da família - mas a mais velha das meninas Elliot é simplesmente insuportável.

Na verdade, todas as pessoas que admiram o valor de Anne são de fora da família: os Musgrove são mil vezes mais atenciosos que qualquer das irmãs; bem como a própria Lady Russell e os Croft. Isso porque, família, para os outros Elliot, é aquela que pode lhes trazer vantagens.. como a viscondessa, Lady Dalrymple; e o grande vilão, o escorregadio Mr. Elliot - outra imagem não muito lisonjeira dessa "grande sociedade" capturada pela obra de Jane Austen.

De um certo ponto de vista, Anne 'desce' a escala social ao se casar com Frederick; mas ganha infinitamente ao entrar para a família e círculo social do capitão. Não apenas porque Wentworth ascendeu no mundo, como um valoroso capitão da marinha veterano das campanhas contra Napoleão (e que, por isso, deve ter amealhado alguma fortuna com os prêmios de captura dos navios franceses), mas porque ela estará, daí por diante, entre pessoas que a admiram e respeitam sua opinião. Ao passo que seu pai está empobrecido, e sua irmã mais velha, considerada a mais bela, tem tudo para se tornar uma solteirona amarga dando-se ares por aí. Que deliciosa ironia.

Ao final dessa análise, não posso deixar de afirmar que Persuasão é a obra-prima de Austen, mesmo sem as revisões e polimentos que iam por trás da obra da autora. É um romance maduro, melancólico, mas ainda assim de uma intensidade apaixonante. Um romance que merece muitas releituras.

E com isso terminamos essa análise, esse retrato de uma época. Como vou viajar amanhã de tarde para o interior, talvez eu já publique a parte final de Na sua estante: um encontro com Austen antes de partir e fechamos o mês Jane Austen no Coruja.

Caramba, eu praticamente só falei dela em junho, não é? Mas a verdade é que a maior parte desses artigos está pronta desde o mês passado e foi só por isso que não sumi de vez esse mês - estou praticamente enforcada de trabalho, entre escritório, pós e outras obrigações...

Mas julho voltamos à programação normal, e falarei mais sobre a vida, o universo e tudo o mais... então... até amanhã, pessoal!



A Coruja


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