9 de março de 2022

Circe: uma resposta a silenciamentos e violências


“Eu escuto sua respiração, morna no ar noturno, e de alguma forma isso me consola. Ele não está dizendo que não dói. Ele não está dizendo que não sentimos medo. Só que estamos aqui. É isso que significa nadar na maré, caminhar na terra e senti-la tocar seus pés. É isso que significa estar vivo.”

Quando estive em Londres em 2018, quase comprei esse livro na Waterstones. Havia uma mesa inteira com edições diferentes dele, além de informações sobre prêmios a que fora indicado ou que já vencera. Problema é que ainda nem chegara na última etapa da viagem e já estava me preocupando com a possibilidade de excesso de peso na bagagem… Mas, enfim, Circe foi um dos mais comentados livros no ano de seu lançamento, e não me surpreendeu muito que se anunciasse sua publicação em português rapidamente.

Comprei o livro pouco depois do lançamento da tradução e, ironicamente, após todo o hype em torno dele, em vez de começá-lo imediatamente, eu o deixei maturando na estante. Outros títulos ganharam prioridade, por uma razão ou por outra, e foi só agora - mais de três anos após aquele primeiro encontro na Waterstones - que dei conta de Circe, quando ele foi indicado para abrir a agenda de 2022 no clube do livro de que participo.

Enfim... Circe. O título nos diz tudo sobre do que se trata a história - ou, ao menos, diz ao leitor familiarizado com a personagem mitológica. Em primeira pessoa, ela nos conta de seu nascimento; de sua existência nos salões de Hélios, o titã solar; da descoberta de seus poderes de bruxa, o exílio, seus amantes, suas dores e, claro, seu encontro com Odisseu, algo que vai operar uma profunda transformação em sua existência.

Interessante é que, indo para os textos clássicos, não há tanto para saber sobre ela. Circe nos aparece de relance na Odisséia: a feiticeira capaz de transformar homens em porcos, amante de Ulisses, filha do Sol. Em outras versões, sua mãe é Hécate, a deusa da magia e ela é irmã de Medéia. Em sucessivas releituras avançando pelo Romantismo - em pinturas, poemas e romances - a figura poderosa e solitária da bruxa da ilha de Eana vai diminuindo, diminuindo, até se tornar a dona de um bordel na versão pós-moderna de James Joyce, que completou um século esse ano.

Não é curioso como uma mulher capaz de confrontar heróis e tomá-los por amantes acabe sendo identificada como uma prostituta? Considere que a principal fonte que temos sobre ela é basicamente como um porto na jornada de Odisseu/Ulisses, e algumas poucas informações a mais nas Metamorfoses de Ovídio. A independência que ela demonstra nessas breves pinceladas, contudo, são suficientes para intimidar e, assim, sucessivas gerações de artistas acham necessário colocá-la no lugar de vilã cercada por seus animais selvagens e cortesã que escolhe amantes dentre os pobres marinheiros que vão parar em sua ilha e, se contrariada, enfeitiça-os. Afinal, que outras razões ela teria para ficar transformando homens em porcos em sua ilha mágica?

“Eu não fiquei surpresa com o retrato que a canção pintava de mim: a bruxa orgulhosa desfeita diante da espada do herói, ajoelhando-se e pedindo misericórdia. Humilhar mulheres parece ser um dos passatempos preferidos dos poetas. Como se não pudesse haver uma história se não rastejarmos e choramingarmos.”

A grande sacada da Madeline Miller é dar voz a essa personagem, retirá-la das sombras e das notas de rodapé em que muitas figuras femininas mitológicas terminam. Para entender o tamanho dessa empreitada, parece-me menos importante conhecer o material original da Odisséia, mas necessário refletir sobre o lugar das mulheres nesses mitos. Um bom começo para isso passa por uma canção: Mulheres de Atenas, de Chico Buarque, nos diz muito sobre os papéis femininos na sociedade grega e a perda de sua voz.

Para cada Antígona ou Medéia, protagonista de sua própria tragédia, há uma Helena - joguete de vaidade divina, dada como prêmio a Páris, responsabilizada pela Guerra de Tróia, entrando muda e saindo calada em todas as suas cenas -, uma Cassandra - que por ousar dizer não a Apolo, recebe como maldição a capacidade de prever claramente o futuro, mas nunca ser acreditada -, e uma Medusa - estuprada num altar de Atena, é ela a castigada pela profanação; e quando ela se retira do mundo para ficar em paz, lá vai um herói degolá-la em seu sono; afinal, nada diz mais sobre monstros e atos de coragem que um homem matar uma mulher adormecida que não fez nada contra ele.

Mesmo as deusas estão submissas a suas contrapartes masculinas. Hera é sempre lembrada pelos ciúmes e pelas vinganças que tenta impor aos filhos mortais de Zeus - mas em certa ocasião foi casualmente suspensa nos céus, agrilhoada de cabeça para baixo, punida com chibatadas pelo marido que ousara enfrentar. Deméter, enquanto buscava desesperadamente por notícias de Cora/Perséfone, é violentada pelo irmão Poseidon. A lista de violências e silenciamentos se estende ad nauseam por diferentes versões de uma miríade de narrativas.

Ao deslocar o protagonismo da história para Circe, Miller pretende dar uma resposta a essas versões - mas também fazer um comentário sobre questões atuais. Não me parece coincidência que o sucesso do livro tenha ocorrido junto com a viralização do movimento #MeToo, contra o assédio e a violência sexual; duas questões com que a bruxa de Eana (e a maioria das mulheres dos mitos gregos, mortais ou divinas) tem de se confrontar ao longo de sua jornada.

Há muitas boas reflexões para extrair da leitura. Esse diálogo com temas e julgamentos contemporâneos, contudo, é também a fraqueza do livro. O discurso de Circe - narradora em primeira pessoa do livro - é moderno, tanto em conteúdo como em vocabulário. Tendo o tom épico das tragédias teatrais e da poesia homérica como ruído de fundo durante a leitura, eu estranhei muito o ritmo da prosa de Miller, que me lembrou algo mais Jovem Adulto. Nada contra um bom YA, mas esse foi um daqueles casos em que minhas expectativas e comparações jogaram contra mim.

Circe é também uma personagem pouco simpática, especialmente na primeira parte da história. Ela é ingênua quase ao ponto da estupidez, mendigando migalhas de atenção do pai, do irmão, de Glauco, capaz de revelar sua própria culpa porque ao menos se estiver sendo castigada, alguém está olhando para ela. No meio do cinismo sádico de seus outros parentes, ela é quase masoquista… Milênios se passam e ela não tem qualquer evolução - sua única ação positiva nesse tempo é a cena em que demonstra um mínimo de compaixão e curiosidade por Prometeu.

As coisas começam a andar quando ela é exilada - não apenas no enredo como na leitura: levei quase dois meses para me arrastar pelas primeiras cinquentas páginas e dois dias para devorar as trezentas seguintes. Retirada do ambiente de estagnação em que vivia, Circe desabrocha. Cresce em poderes. Finalmente, ao passar pela maternidade, ela nos mostra sua faceta mais forte e determinada, capaz então de se contrapor mesmo aos deuses que antes a tinham abominado.

É interessante, aliás, como a imortalidade dos deuses é colocada como um ponto contra eles, parte dessa estagnação. Eles parecem ser incapazes de evoluir, mudar, amadurecer. Como muito bem resume a narradora:

“No passado, já pensei que os deuses eram o contrário da morte, mas agora vejo que estão mais mortos que tudo, pois são imutáveis e não conseguem segurar nada nas mãos”.

Circe é ela mesma uma deusa menor, de forma que essa realização é ainda mais importante, um deslocar do foco do divino para o humano.

Retorno aqui para o contexto original desses mitos. O drama grego costuma trazer o ser humano como preso aos desígnios e caprichos dos deuses - e tantos humanos e deuses como governados pelo Destino. Quando todas as suas escolhas te levam inexoravelmente ao caminho predeterminado pelas Moiras (oi, Édipo!), pode existir livre-arbítrio? Você é realmente responsável pelas escolhas que faz?

Ao perceber o divino como algo fundamentalmente falho, “que não conseguem segurar nada nas mãos”, e colocar a humanidade como modelo e aspiração por sua capacidade de se transformar - algo feito por Prometeu e, depois, pela própria Circe - esses personagens parecem retomar sua autonomia, o controle sobre suas escolhas e seu próprio destino.

Esse debate foi um dos melhores trazidos pelo livro para mim, pessoalmente. Leitores do blog vão se lembrar de quantas vezes já tratei sobre livre-arbítrio e seu peso sobre a forma como interpretamos certas histórias. É sempre algo que me fisga a atenção numa leitura.

Circe, por Wright Barker, pintado em 1889

De outro turno, há de se considerar se Circe é, realmente, uma leitura feminista do mito. Tenho minhas ressalvas, especialmente pela maneira como a personagem trata outras mulheres ao longo da história, ainda que seja compreensível seu desdém quando boa parte de sua vida foi passada tendo de lidar com as zombarias das outras ninfas, inclusive sua mãe e irmã.

Mesmo que você enxergue a coisa como uma defesa que Circe precisou desenvolver no ambiente extremamente tóxico de seus primeiros séculos, há limites. Ela nunca tenta encontrar algo que possa uni-la com as outras mulheres. Ressente-se da maneira como é tratada em várias situações, mas não no contexto de seu sexo e sim de sua natureza como divindade - em sua cabeça, ela merece respeito por ser uma deusa e ponto final. Mesmo seu arrependimento quanto a transformação de Cila é menos pela condição monstruosa da outra ninfa e mais pelos marinheiros que ela devora.

Quando Circe busca companheirismo e diálogo, são sempre os homens que ela procura. Prometeu, Glauco, Aietes, Hermes, Dédalo, Odisseu, Telêmaco. Na verdade, a única mulher que Circe vê com algum respeito, que pode até em certa medida considerar sua igual, é Penélope, a esposa de seu amante e, portanto, sua rival. Há uma promessa de compreensão no espelho dessa rainha, mas aí o livro termina e os poucos momentos em que elas realmente conversam têm mais a ver com seus filhos que com elas mesmas.

Circe é, em suma, uma leitura intrigante, com várias questões para levar ao debate. Seu tom é intimista, voltado para dentro da protagonista, num típico romance de amadurecimento. É uma costura curiosa de mito e discurso contemporâneo, parte de uma tendência de releituras (já dei de cara com Briseis, Ariadne, Jocasta, Helena e tantas outras) que se preocupam em dar voz a personagens marginalizados nos clássicos que serviram de pedra fundamental da cultura ocidental - nos apresentando novos pontos de vista e transformando nossas concepções.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Circe
Autor: Madeline Miller
Tradução: Isadora Prospero
Editora: Planeta Minotauro
Ano: 2019

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