19 de julho de 2021

Projeto Agatha Christie: Assassinato no Expresso do Oriente


- Minha vida foi ameaçada, sr. Poirot. Agora sou um homem que sabe se cuidar muito bem.

Do bolso do casaco retirou uma pequena pistola automática, mostrando-a por um instante. Ele prosseguiu de modo lúgubre:

- Não acho que sou do tipo de homem que é apanhado dormindo no ponto. Mas, pelo que vejo, posso muito bem redobrar minhas garantias. Imagino que o senhor seja o homem certo para o trabalho, sr. Poirot. E lembre-se... um
bom dinheiro.

Poirot olhou pensativo para ele por alguns minutos. Seu rosto estava totalmente inexpressivo. O outro não obteria nenhum indício de que pensamentos passavam por sua cabeça.

- Lamento monsieur - falou devagar. - Não posso aceitar.

Talvez o mais famoso romance de Agatha Christie, Assassinato no Expresso do Oriente foi publicado primeiro de forma serializada no jornal americano Saturday Evening Post, entre setembro e novembro de 1933. Curiosamente - vez que Graham Greene lançara um livro com o mesmo trem à época -, em sua primeira encarnação, ele apareceu sob o título Assassinato no Vagão Para Calais.

Cá entre nós, ainda bem que ela voltou ao título original no final. Um vagão qualquer para Calais não tem a mesma majestade do Expresso do Oriente.

Resumo do passeio de trem: Poirot está a caminho de casa, após ser chamado a participar de uma investigação na Síria. No icônico e luxuoso Expresso do Oriente, ele pretende seguir de Istambul a Calais, de onde seguirá na barca para a Inglaterra. No meio do caminho, contudo, uma nevasca impede o avanço do trem e um assassinato é cometido a bordo. Convidado a tratar do caso, Poirot usará de toda a capacidade de suas ‘pequenas células cinzentas’ para resolver o caso.

É interessante notar que por mais implausível que possa parecer a resposta do caso, especialmente se você só a escuta sem mergulhar no enredo, Christie fez um trabalho brilhante em nos convidar a resolver o mistério. Cada detalhe foi pensado para costurar a narrativa - incluindo a utilização de estereótipos nacionais para jogar com álibis e suspeitas. Em outras obras eu poderia comentar da casual xenofobia da autora, mas, aqui, mais de um personagem conta com tais preconceitos para construir sua persona. É algo necessário e vital para a história.

Não me lembro mais quando li Assassinato no Expresso do Oriente pela primeira vez (sei que foi em algum momento da minha adolescência); ou se já sabia por osmose a solução do caso (das obras de Christie, nenhuma estão tão presente no imaginário coletivo e muitos leem já sabendo o final), mas posso dizer que ele se tornou um favorito de cara. Continua a ser ainda hoje.

Passei anos sonhando com a possibilidade de fazer a mesma jornada e experimentar a realidade do Orient Express. Infelizmente, a rota original deixou de ser operada em 2009 - retomada depois por companhias privadas, com vagões originais da década de 20 e 30, de forma mais restrita. Ele é hoje o Venice Simplon-Orient-Express e a viagem mais barata, de Paris a Veneza, custa quase três mil libras (mais de vinte mil reais por um único dia no trem!). Bem, sonhar não custa nada: no dia em que ganhar na loteria, marco minhas passagens lá…


Importante observar que o trem em si é quase um personagem da história. Não à toa: Agatha Christie adorava fazer viagens de trem e o Expresso do Oriente exercia um fascínio especial para ela, que o utilizou em mais de uma jornada, incluindo sua lua-de-mel. Ele representa modernidade, e, num veículo quase transcontinental, permite criar um microcosmo de nacionalidades e classes sociais que precisaria de muito mais explicação para funcionar em outro contexto. Ao interromper o trem por conta dos trilhos obstruídos, Christie nos coloca numa espécie de ilha isolada, de onde ninguém pode fugir e todos são suspeitos.

Para além da paixão ferroviária da autora, o enredo tem por influência um crime real da época: o sequestro e morte do filho de Charles Lindbergh em 1932. Lindbergh era uma figura famosa nos Estados Unidos, pioneiro da aviação que, em 1927, realizou o primeiro voo transatlântico, de Nova York a Paris, sem escalas e sozinho em sua aeronave. O assassinato da criança, um bebê de pouco menos de dois anos, foi acompanhado pela mídia com fervor, e o julgamento do acusado, transformado num espetáculo midiático.

Os leitores da época em que o livro foi publicado teriam bem frescas na memória as manchetes do caso. Usando da comoção real do caso, Christie nos coloca então diante de um dilema ético interessante. A vítima do assassinato no trem era ele mesmo um criminoso responsável pelo sequestro e assassinato de uma criança, mas que conseguiu escapar da justiça por um detalhe técnico. Considerando que o sistema falhou em puni-lo, sua morte deve ser considerada uma justiça sendo finalmente feita, ou simplesmente uma questão de vingança?

Já escrevi sobre o assunto aqui no blog, quando tratei de Um Estudo em Vermelho. Doyle, como Christie, apresenta-nos a situações em que o sistema falhou tragicamente - por corrupção de juízes, aproveitando-se de brechas na lei -, colocando então as vítimas de cada caso no papel de justiceiros. Em ambos os casos, estamos diante de situações extremas, mas a realidade de impunidade e ressentimento nos é (infelizmente) bastante familiar.

Pessoalmente, sou contra tomar a justiça nas próprias mãos. Toda ação deve seguir o devido processo: abra exceções e outras injustiças passarão a ocorrer. Ou como teria dito Gandhi, “olho por olho e o mundo acabará cego”. Enquanto lia Assassinato no Expresso do Oriente, assisti alguns capítulos de O Caso Evandro (não tive estômago de chegar ao final) e, mais do que nunca, mantenho minha posição.

Um dos grandes títulos da Era de Ouro do Romance Policial, Assassinato no Expresso do Oriente traz Christie em sua melhor forma, desafiando o leitor com um quebra-cabeças tão magnífico e inesquecível quanto o trem do Orient Express.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Assassinato no Expresso do Oriente
Autor: Agatha Christie
Tradução: Petrucia Finkler
Editora: Folha de São Paulo
Ano: 2019


A Coruja


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2 comentários:

  1. Eu já devia ter lido esse livro, mas, ainda não li :-(
    De qualquer forma, caso você vá a Istambul, vale visitar o hotel onde a escritora se hospedava, além de ser lindo, você pode dar a sorte que eu dei de visitar o quarto onde ela sempre ficava! Dizem que foi lá que ela escreveu esse livro <3

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    Respostas
    1. Uau! Deve ter sido fantástica sua viagem! Anotarei a dica - embora não tenha nem previsão de quando poderei fazer tal viagem. Planos para o futuro...

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