4 de fevereiro de 2021
Projeto Agatha Christie: Um Mistério no Caribe
– E a senhorita não concorda?
A prática de longa data fizera de Miss Marple uma perita nessa específica situação:
– Não sinto realmente que eu tenha suficiente experiência para julgar. Receio ter levado uma vida um tanto resguardada.
– E fez muito bem, minha cara dama, fez muito bem – o major Palgrave exclamou galantemente.
– O senhor teve uma vida tão diversificada – prosseguiu Miss Marple, determinando-se a reparar a prazerosa desatenção anterior.
– Não foi das piores – disse o major Palgrave complacente. – Não foi das piores mesmo. – Ele lançou em volta um gesto apreciativo. – Um lugar adorável este aqui.
– Sim, sem dúvida – Miss Marple retrucou.
E então ela foi incapaz de se deter:
– Será que alguma coisa jamais acontece por aqui?
O major Palgrave arregalou os olhos.
– Ah, e como... Escândalos de sobra... hã, será? Ora, eu poderia lhe contar...
Pensei inicialmente em seguir a ordem de publicação para meu Projeto Agatha Christie, mas acabei decidindo priorizar os que eu tinha em formato físico cá na estante - incluindo alguns que já li, mas não cheguei a resenhar. Foi assim que Um Mistério no Caribe pulou à frente da lista, embora tenha sido publicado em 1964, mais perto do fim que do começo da carreira da autora. Mas, enfim, ganhei esse de natal ano passado, estava aqui aguardando na estante e o resto é história.
Raymond West, sobrinho de Miss Marple, presenteia a velha senhora com uma viagem a St. Honoré, ilha caribenha, para fugir do inverno inglês e cuidar de seu reumatismo. Tudo parece estar indo bem - se não um pouco entediante em toda essa paz e clima tropical (oh, como faz falta a imprevisibilidade do clima inglês…), até que uma conversa aparentemente sem importância com um militar aposentado termina em uma morte suspeita.
E, depois da primeira, várias outras se seguem. Temos envenenamentos, esfaqueamentos, enforcamentos… Há para todos os gostos aqui.
De repente, não mais que de repente, lembrei-me de uma citação bem pertinente do Pratchett, em Snuff: “É uma verdade universalmente aceita que um detetive de férias mal terá tempo de desfazer as malas antes de encontrar seu primeiro cadáver.” Isso é particularmente verdade dos detetives de Christie, que volta e meia estão viajando de férias ou decididos a se aposentar e quando menos esperam, tropeçam num corpo.
Enfim, o que acontece aqui é que o Major Palgrave, hóspede no mesmo hotel em que nossa detetive se encontra, tem em seu repertório de anedotas e causos para quebrar o gelo a história de um assassino serial de esposas - incluindo uma foto para melhor impressionar sua plateia. Miss Marple, acostumada com tipos como o Major, quase não presta atenção, não fosse a súbita e inesperada interrupção do mesmo ao ver alguém chegar por cima de seu ombro.
No dia seguinte, o major é encontrado morto, aparentemente um ataque cardíaco fulminante. Todo mundo aparentemente sabia que o homem sofria do coração e até é encontrada medicação em seu quarto. Não fosse uma ligeira desconfiança de Miss Marple e o sumiço da foto que ele pretendia mostrar, as coisas teriam ficado por isso mesmo… E aí começa uma corrida contra o tempo, afinal, estamos falando de um serial killer que, muito possivelmente, está planejando seu próximo crime.
Um Mistério no Caribe é um livro bem divertido para um romance policial. Acho que normalmente pensamos no gênero como algo mais solene, dramático, chocante, violento - afinal, estamos falando muitas vezes de mortes e criminosos, explorando o que há de mais cruel e mesquinho na natureza humana. Mas há um subgênero aqui que se aplica particularmente bem aos romances da Christie: em inglês eles são chamados de cozy mystery ou cozies, numa tradução literal, “mistérios aconchegantes”.
Nesse tipo de história temos, normalmente, crimes que ocorrem fora do palco, não particularmente gráficos; um detetive amador em um cenário social mais fechado e intimista (uma casa no campo, um pequeno vilarejo em que todos se conhecem, um hotel…), e uma investigação que poderia ser confundida com troca de fofocas - algo em que Miss Marple é excelente. A ênfase fica no desenvolvimento do roteiro e dos personagens, e tudo isso junto permite uma injeção de humor enquanto são dadas as peças (com muitas pistas falsas) para resolver o quebra-cabeça.
Nesse livro em específico, temos a própria figura de Miss Marple, que está longe de ser o que qualquer um poderia imaginar de um detetive, o que torna a situação inadvertidamente cômica - inclusive pela forma como os outros personagens interagem com ela, achando-a uma velhinha adorável ou intrometida. O contraste dela com o senhor Rafiel, um velho e rabugento milionário que acaba lhe servindo de auxílio na investigação, rendem os melhores momentos da história.
Há que se abrir um adendo para algumas expressões e referências racistas. Um dos tópicos que sempre acaba surgindo quando debato Agatha Christie - ela já foi tema de dois encontros do clube do livro de que participo e de várias conversas com outros amigos leitores - é seu casual classismo e xenofobia, e reconhecer isso em vez de passar panos quentes é importante quando se faz uma crítica da autora. Essa questão é particularmente importante nos livros que exploram visões do oriente e que trazem um forte componente colonial-imperialista. Enfim, não é uma surpresa, considerando a época e o local em que as histórias foram escritas, mas é algo sobre o que se refletir na leitura.
Por fim… estou orgulhosa em dizer que, dessa vez, eu acertei a solução! Ao contrário de Miss Marple, prestei muita atenção no que o major estava falando - e, não sendo eu uma personagem do livro, tenho a possibilidade de voltar à cena, reler tudo e notar os detalhes. Há as habituais pistas falsas, inclusive indícios de pelo menos outro crime passado que nada teria a ver com a morte do Major. Mas, se você se concentrar na ideia de que o Major morreu porque outro assassinato já estava planejado, por um assassino que segue um determinado padrão - e prestar atenção onde, exatamente, esse padrão está sendo repetido - então, não tem muito para onde correr.
Mais que isso não posso dizer sobre o assunto sem estragar a brincadeira para quem quiser ler e tentar desvendar por si o mistério. Vale à pena tentar. E, mesmo se não seguir corretamente as pistas, há sempre a satisfação de mais uma boa história daquela que, merecidamente, recebeu o título de Rainha do Crime.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Um Mistério no Caribe
Autor: Agatha Christie
Tradução: Samir Maria de Machado
Editora: HarperCollins
Ano: 2020
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