22 de fevereiro de 2021

A Tirania do Mérito: o que aconteceu com o bem comum?


“Vale a pena notar que o regime do mérito exerce sua tirania em duas direções ao mesmo tempo. Nas pessoas que chegam ao topo induz à ansiedade, a um debilitante perfeccionismo e à arrogância meritocrática que se esforça para esconder uma autoestima frágil. Nas pessoas que deixa para trás, ela impõe um desmoralizante, até mesmo humilhante, senso de fracasso. Essas duas tiranias compartilham de uma fonte moral comum: a permanente fé meritocrática de que somos, como indivíduos, totalmente responsáveis por nosso destino; se formos bem-sucedidos, é graças a nossas próprias ações, e se fracassarmos, não podemos culpar ninguém, a não ser nós mesmos. Apesar de soar inspirador, essa dura noção de responsabilidade individual faz com que seja difícil usar do senso de solidariedade e obrigação mútua que poderia nos suprir para enfrentarmos a crescente desigualdade de nosso tempo.”

Ganhei esse livro final do ano passado. O autor já estava no meu radar desde que eu vira críticas sobre o seu Justiça - o que é fazer a coisa certa. Nesse título, ele é excelente na forma didática e repleta de exemplos com que explica seus conceitos e teorias. Mais um daqueles muitos livros que gostaria de ter lido nos anos de faculdade.

Enfim, tendo me envolvido com seu estilo, emendei a leitura de A Tirania do Mérito - o que aconteceu com o bem comum?, e, embora tenha lido até rápido, passei dias para digerir as ideias apresentadas. Algumas das questões que Sandel levanta sobre a meritocracia já tinham me passado pela cabeça, mas o desenvolvimento que ele faz aqui, suas ligações com ideias de livre-arbítrio e, sobretudo, a ideia de que a cultura do mérito está na base para a onda de ressentimento que levou a eleição do Trump, deixaram-me estupefata. Não foi um ângulo no qual eu pensara anteriormente.

Em poucas linhas, a concepção de que cada um é dono do próprio destino, responsável por suas escolhas (livre-arbítrio) e que, dando o melhor de si mesmo, será “alguém na vida” (vencendo com base no mérito) tem pelo outro lado da moeda o corolário de que se você é um fracassado, a culpa é sua, que não se esforçou o bastante. Nos Estados Unidos, essa correlação se fundamenta também na certeza de ser uma sociedade com alta mobilidade social - outro tópico que Sandel não hesita em desmistificar.

O sucesso, consubstanciado no imaginário social como um diploma no ensino superior, acarreta um orgulho classicista, em que, mesmo quando você entra numa universidade com base nos privilégios de boas escolas, tutores, e todo um leque de recursos, você crê que tal conquista é fruto do seu esforço e se os outros não se esforçaram o suficiente, problema deles. Essa arrogância cega os indivíduos para o bem comum - para a necessidade de políticas de distribuição de renda, de valorização do trabalho - e contribui para a animosidade daqueles que são humilhados por tal sistema.

Políticas afirmativas para minorias entram como tempero nesse caldeirão de mágoas, que explode então num conservadorismo preconceituoso Para uma classe média baixa e branca, saber que havia outros em situação social mais vulnerável servia como um consolo; mas, de repente, essas minorias foram contempladas pelo governo e eles continuaram esquecidos. Abre-se assim caminho para a intensa polarização, a retórica do ‘nós e eles’, a desconfiança do governo (formada em grande parte pelos filhos da meritocracia, uma aristocracia de diplomas universitários) e, claro, o populismo.

Sandel foca especificamente na sociedade americana - e, em menor grau, na britânica -, mas há muito aqui que pode ser aplicado à situação no Brasil. Não é difícil identificar algo desse ressentimento no discurso da direita, extremista ou não - basta ver suas opiniões sobre o bolsa família e as cotas para universidade. Ironicamente, por aqui, não se trata de uma reclamação daqueles que foram “deixados para trás”, mas de estratos mais altos, misturados ao preconceito de homem cordial bastante típico de brasileiro (como esquecer o ministro da economia observando o dólar alto era algo bom, porque até as empregadas domésticas estavam viajando para a Disney?).

Resolver todo esse imbróglio não é fácil, considerando o fato de que a meritocracia é um paradigma fundamental de nossa sociedade moderna. Para o autor, é algo que passa pela necessidade de valorização do trabalho e do indivíduo, quando ele passa a se enxergar - e aquilo que faz - como contribuição importante para o bem comum, parte produtiva da comunidade. É uma completa mudança de foco, necessária para que alcancemos, de fato, uma sociedade mais justa. Ao final, A Tirania do Mérito é um livro que merece reflexão e debate, que oferece perspectivas relevantes e alternativas para o momento que vivemos.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: A Tirania do Mérito: o que aconteceu com o bem comum?
Autor: Michael J. Sandel
Tradução: Bhuvi Libanio
Editora: Civilização Brasileira
Ano: 2020

Onde Comprar

Amazon


A Coruja


____________________________________

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog