30 de outubro de 2020
All Hallow's Read: O Labirinto do Fauno
“Raramente o mal se mostra de imediato. A princípio, é pouco mais que um sussurro. Um olhar. Uma traição. Mas logo cresce e cria raízes, mesmo que imperceptível, despercebido. Só os contos de fada dão uma forma adequada ao mal. Os lobos maus, os vilões, os demônios, o diabo…”
O caminho, normalmente, é de um livro para uma adaptação nos cinemas. No caso de O Labirinto do Fauno, o inverso aconteceu: foi o filme que inspirou a escrita do livro, expandindo o roteiro nos espaços e entrelinhas. Sendo um dos meus livros favoritos, claro que fiquei de olho grande assim que o livro foi anunciado e devo dizer que a edição fez jus ao universo quimérico do filme, especialmente pelas ilustrações do Allen Williams que pontuam a passagem dos capítulos.
À primeira vista, o enredo é essencialmente o mesmo, transportando o roteiro para a prosa típica do romance. Na Espanha do período de Franco, a mãe viúva de Ofélia acaba de se casar de novo com o cruel capitão Vidal e as duas têm de seguir para a companhia dele, numa vila cercada por uma floresta sombria e membros da resistência. Lá, Ofélia descobre que é a princesa perdida do Reino Subterrâneo e precisa passar por três provas, com a ajuda do Fauno e das fadas, para recuperar seu lugar de direito. O que há de novo são os contos fechados que se intercalam entre capítulos, e que esclarecem pontos-chave da história: como a princesa veio parar no mundo dos humanos, quem construiu o labirinto, quem são o sapo e o Homem Pálido, o passado do relógio.
Esses interlúdios costuram detalhes que pareceriam irrelevantes, não fosse o foco ser puxado para eles. Os objetos que vão passando pelas mãos de Ofélia e dos outros personagens ganham assim novos significados e profundidade. A fantasia serve tanto para contrastar como para destacar o que acontece no “mundo real”: a guerra, o governo fascista do qual Vidal é representante, a violência sem sentido, o desespero da Resistência e o papel das mulheres nesse contexto essencialmente masculino.
Vidal governa com mão de ferro sua estação, tem poder de vida e morte sobre a vila - como se vê da tortura e assassinato de pai e filho caçadores ou do controle sobre os mantimentos e remédios que são entregues aos moradores. Seu controle opressivo é particularmente sentido pelas mulheres de sua casa, numa tríade formada por Ofélia, a mãe da garota e Mercedes, a governanta. O livro amplia essa interpretação ao nos permitir o vislumbre dos pensamentos de cada um desses personagens.
A viúva se enxerga num conto de fadas, resgatada da pobreza e da solidão por Vidal. Completamente cega para as crueldades do novo marido e submissa às suas ordens, ela identifica o capitão com segurança - enquanto ele a vê apenas como uma incubadora para o filho que deseja. Ofélia, habituada a se perder entre as páginas dos livros, sempre com um pé entre o real e a fantasia, pode não entender de todo o caráter do padrasto, mas sabe que ele é semelhante ao Lobo de seus contos. Ela sabe que, não importa o que a mãe diga, ele nunca será um segundo pai para ela. Mercedes, por fim, que não apenas já presenciou as explosões de violência do homem, como vive em constante tensão pelos segredos que tem de esconder, entende todos os riscos e o caráter de Vidal.
A Cornelia Funke conseguiu desenvolver muito bem os temas que estavam presentes no filme e expandir a partir deles. A prosa simples, embora às vezes possa soar repetitiva, guarda algumas imagens cativantes em sua delicadeza. Ao terminar, fiquei com vontade de reler Coração de Tinta, que foi um livro que me conquistou muito na minha primeira leitura (embora eu não tenha gostado da continuação).
O Labirinto do Fauno é, enfim, uma obra curiosa, dividida entre uma realidade histórica tirânica e uma fantasia que é também bastante sombria. É uma história sobre como ações têm consequências, sobre resistir, sobre a culpa dos crimes de nossos antepassados, sobre justiça e o que é moralmente certo. Não é um livro de finais felizes de contos de fadas, com criaturas diminutas e iluminadas voando por aí, ainda que haja o verniz do “era uma vez” em suas linhas. É mais sutil e mais perigoso que isso. Entre por sua conta e risco no labirinto e veja o que encontrará por lá...
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: O Labirinto do Fauno
Autor: Cornelia Funke e Guillermo del Toro
Tradução: Bruna Beber
Ilustrações: Allen Williams
Editora: Intrínseca
Ano: 2019
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