27 de setembro de 2019
O Diário de Nisha: uma história de silêncios e identidade
Papai diz que está todo mundo matando todo mundo agora, hindus, muçulmanos, sikhs. Todo mundo tem culpa. Ele diz que quando as pessoas são separadas em grupos, elas começam a acreditar que um grupo é melhor que o outro. Penso nos livros de medicina do papai e em como todos temos o mesmo sangue, órgãos e ossos dentro do corpo, qualquer que seja a religião de cada um.
A primeira coisa que me chamou a atenção quando O Diário de Nisha foi lançado foi o projeto gráfico. Se tem uma coisa que a Darkside sabe fazer muito bem, é trabalhar a apresentação de seus títulos, na melhor acepção da velha premissa de comprar um livro pela capa: a beleza aliada a excelente conteúdo. No caso, o que me pescou primeiro foi a lombada desenhada, com a impressão do fecho do diário, e então li a sinopse e estava (para continuar nas metáforas de pescaria) fisgada.
O ano é 1947. Nisha é uma garota de doze anos, filha de pai hindu e mãe muçulmana numa Índia que acaba de se tornar independente do Império Britânico - e que está num processo de divisão interna levada por segregações religiosas, o que levará à criação do Paquistão. Tenho certeza que qualquer um que esteja em dia com os noticiários sabe bem que as relações entre Índia e Paquistão ainda hoje são bastante tensas - o conflito sobre a região da Caxemira se arrasta há mais de setenta anos, incluindo a China e ameaças de armas atômicas -, então não é uma surpresa que tal divisão esteja no centro da ação narrada no livro.
A mãe de Nisha faleceu no parto dela e de seu irmão gêmeo, Amil. Seu pai é médico no hospital da cidade em que moram e a família - formada ainda pela avó paterna e Kazi, o criado muçulmano - vive razoavelmente bem. Há conflitos entre o pai e Amil pelas dificuldades que o filho tem de ler (não se fala em diagnósticos, mas pela descrição que Nisha faz do irmão, tive a impressão de que ele é disléxico) e Nisha é dolorosamente tímida e introspectiva, mas nada que represente o fim do mundo. Em seu aniversário de 12 anos, ela ganha um diário de Kazi, no qual começa a escrever dirigindo-se a mãe ausente, encontrando com isso uma maneira de interagir mais com o mundo que a cerca. As coisas parecem caminhar bem, pelo menos até que notícias sobre a independência e divisão de estados começam a aparecer nos jornais.
A família mora numa vila dentro do futuro território do Paquistão, de maioria muçulmana. Se, até então, tudo parecia em paz com os vizinhos, a Partição faz explodir ressentimentos ocultos e eles se tornam alvo na revolta. Ao final, a família tem de fugir a pé, por milhares de quilômetros até a fronteira, passando por todo tipo de riscos - da falta de água ao assassinato por gente que perdeu tudo no caminho.
A escrita consegue passar a linguagem e inocência de Nisha, que pouco a pouco vai entendendo o que significam todas aquelas divisões, e como elas se relacionam a sua própria identidade - afinal, como a própria Índia antes da divisão, Nisha é parte hindu e parte muçulmana, ainda que não tenha sido criada na religião da mãe. É difícil tentar justificar uma guerra, mas é algo ainda mais complicado entendê-la quando se vê suas consequências do ponto de vista de uma criança. Hiranandani consegue fazer isso muito bem, com uma escrita que é tanto lírica quanto incisiva.
O livro tem momentos de extrema angústia - a viagem de trem e os acontecimentos que Nisha presencia; o silêncio a que ela se força após colocar a família numa situação de risco -, mas também de união e força, em especial quando a família se junta em torno das refeições: a partilha do alimento é algo importante para Nisha, que aprendeu a cozinhar com Kazi e há muitos momentos em que alívio e conforto vêm acompanhados de um sabor.
O Diário de Nisha faz parte de uma tradição de jovens protagonistas-escritoras em tempos de conflito - ela pode ser uma personagem de ficção, mas sua experiência é baseada em fatos muito reais (e dolorosos), da mesma maneira que Anne Frank ou, mais recentemente, Myriam Rawick (também publicado aqui no Brasil pela Darkside). Hiranandani mergulhou nas memórias da família - seu pai teve de fazer o mesmo percurso que a família de Nisha, embora de forma menos dramática - e entende do que está falando. Livros como esses são uma forma fantástica de ensinar e entender História, o tipo de livro que deveria estar em bibliotecas escolares e ser indicado por professores em sala de aula. Envolvente, necessário e tristemente atual, é um livro para ler, partilhar e refletir.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: O Diário de Nisha
Autor: Veera Hiranandani
Tradução: Débora Isidoro
Editora: Darkside
Ano: 2019
A Coruja
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