20 de março de 2019
Desafio Corujesco 2019 - Um Livro sobre Música || Dreams Underfoot
I don't think the world is the way we like to think it is. I don't think it's one solid world, but many, thousands upon thousands of them--as many as there are people--because each person perceives the world in his or her own way; each lives in his or her own world. Sometimes they connect, for a moment, or more rarely, for a lifetime, but mostly we are alone, each living in our own world, suffering our small deaths.
Quando decidimos por esse tema no Desafio Corujesco, pensei com meus botões que não fazia nem ideia que título escolher para ele… e, logo em seguida, lembrei do Charles de Lint e da minha promessa pessoal de ler mais da bibliografia do autor. Como muitos dos seus personagens trabalham com música, imaginei que seria simples encontrar um título que coubesse para o desafio. De fato, lendo as sinopses, havia várias possibilidades… Então, decidi-me por Dreams Underfoot, o primeiro volume da série Newford, que é a obra mais famosa do Lint.
Essa é uma antologia de contos e vários deles já me eram familiares de uma outra coletânea, The Very Best of Charles de Lint. As histórias se passam todas na cidade ficcional de Newford, especialmente seu centro histórico e as “tumbas” - um cemitério de carros onde vivem as pessoas às margens da sociedade; não apenas os moradores de rua, usuários de drogas, mas também criaturas extraordinárias: aqui é possível encontrar goblins, tropeçar no Pé Grande e lutar com criaturas que usam uma casca humana mas alimentam-se de almas.
Os personagens que protagonizam as histórias de Dreams Underfoot são pessoas que ou caem sem querer nesse mundo paralelo que só pode ser enxergado com o canto dos olhos; ou então que fazem parte da comunidade sobrenatural da cidade. Curiosamente, uma boa parte desses protagonistas são pessoas ligadas às artes: escritores, escultores, pintores, fotógrafos e, claro, músicos. Há goblins tocando tambores, bardos com suas rabecas, dríades flautistas e sereias. Há bandas tocando em inferninhos, canções no rádio, músicas citadas aqui e ali. Praticamente todos os contos da antologia fazem alguma referência musical, então, nesse aspecto, caiu como uma luva para o Desafio Corujesco desse mês.
O que é interessante é como o extraordinário e o cotidiano convivem aqui. Aqui há um garoto que fugiu de casa e está vivendo nas ruas após entrar em conflito com os pais e, no fôlego seguinte descobrimos que ele é seguido de lá pra cá por um bicho-papão particular. Ali há uma cantora preocupada em pagar as contas ao final do mês, mas que graças à descendência cigana, é capaz de enxergar caminhos para outros mundos por trás de becos escuros. Misturar-se com o lado sobrenatural de Newford não impede preocupações mais prosaicas.
Uma das coisas importantes que se há de falar sobre Charles de Lint é que ele foi um dos autores a popularizar o gênero da fantasia urbana. Engraçado que, quando penso nesse nicho, penso num cenário sujo, sombrio, mais pesado que livros de alta fantasia - acho que é uma questão de falta de árvores? - e, embora realmente existam muitas obras do gênero desse tipo, não é isso que acontece com de Lint. Por mais que as histórias lidem com subúrbios perigosos e personagens que vivem nas periferias da sociedade -, pessoas que, na vida real, são invisíveis, nos passam despercebidas - de Lint tem uma extraordinária capacidade de ‘iluminar’ sua Newford.
Tal se deve especialmente pelo senso de comunidade com que o autor imbui seus personagens. Solidariedade é uma palavra que resume muito bem os acontecimentos das histórias aqui apresentadas: esse senso de comunidade leva as pessoas a tratarem as outras com gentileza, a se sentirem responsáveis pela outra. Não que tudo termine sempre bem, pois há várias tragédias e perdas e até alguns contos de horror espalhados pelo livro. Abuso infantil, prostituição, doenças mentais são temas de algumas das histórias. Finais felizes nem sempre são possíveis, mas, pelo menos, houve quem tentasse ajudar e há quem se importe o suficiente para lembrar. No final, as conexões humanas são o que fica.
Há certa romantização aqui, mas isso é característica inclusive da linguagem do autor: os livros que li do Charles de Lint até hoje todos eles são excelentes na forma como utilizam ritmo. Ele constrói frases e imagens poéticas que te fazem sentir a melodia, e são sob medida para ler em voz alta. Existe um elemento de oralidade nesses contos que faz muito sentido, porque de Lint bebe muito do folclore, do mito, da tradição popular. Em Dreams Underfoot, ele se baseia especialmente em mitos de raízes célticas; mas já andei vendo que em livros mais recentemente lançados, ele passou a se inspirar na mitologia dos nativos americanos. São tantas referências se misturando que pesquisei um pouco da biografia do autor para entender de que lado ele estava vindo… Descobri que ele nasceu na Holanda, mas a família emigrou para o Canadá quando ele ainda era um bebê. Ele cresceu indo e voltando entre dois continentes e, vejam só, até tocou numa banda de música celta! Toca vários instrumentos, canta, compõe músicas... Explicada está a musicalidade do homem.
Dito tudo isso… estou feliz que o desafio me tenha feito reencontrar Charles de Lint. Gosto da esperança com que ele costura suas histórias, desse senso de fraternidade que ele traz com seus personagens. Gostaria muito de ver esse autor traduzido aqui no Brasil - os contos de fadas que ele escreveu, ilustrados pelo Charles Vess, são lindos demais -, mas enquanto isso não acontece… lemos em inglês mesmo.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Dreams Underfoot
Autor: Charles de Lint
Editora: Orb Books
Ano: 2003
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A Coruja
Arquivado em
Charles de Lint
contos
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fantasia
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música
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