1 de fevereiro de 2018

Desafio Corujesco 2018 - Uma Aventura no Mar || Nós, os Afogados

As nuvens acima do mar congelado mudavam, mas ele já as conhecia todas. Havia muito com que os olhos se refestelassem, mas nada para a alma. Albert tinha fome de algo que o céu não era capaz de satisfazer. Em algum lugar do planeta, precisava existir um tipo diferente de luz. Um mar que espelhasse novas constelações. Uma lua maior. Um sol mais quente.
Embora seja escrito em prosa, não tenho dúvidas de que o romance dinamarquês Nós, os Afogados mereça a classificação de epopéia - no sentido de ‘uma extensa narrativa heróica que faz referência a temas históricos, mitológicos e lendários’. No espaço de um século, acompanhamos a história de três homens - Laurids Madsen, seu filho, Albert e Knud Erik, um órfão que Albert acaba ajudando a criar -, confundidas com a história da cidade de Marstal, na Dinamarca, e dos conflitos em que os homens de Marstal se envolvem, incluindo as duas guerras mundiais. Sendo Marstal uma terra de portos e navegadores, essa é também uma narrativa de marinheiros, da evolução dos veleiros para os barcos a vapor e, claro, de ‘histórias de pescador’ - um pé, pois, no realismo fantástico.

O livro é dividido em três partes, cada qual acompanhando um desses personagens em suas jornadas. Tudo começa com Laurids Madsen, que teria ido ao céu após a explosão do seu navio, num conflito entre Dinamarca e Alemanha em 1848. São Pedro lhe nega entrada no Paraíso e ele cai em pé, salvando-se graças ao peso de suas botas. Os primeiros capítulos nos mostram os dinamarqueses capturados na batalha, prisioneiros enquanto aguardam um acordo entre seus governos. Laurids, que pode até não ter visto os portões do paraíso, mas certamente sobreviveu milagrosamente ao combate que acabou com o navio em que era tripulante, muda com a experiência, e um dia embarca num navio para os extremos do mundo e nunca mais retorna.

O foco muda então para Albert, o filho de Laurids. Primeiro assistimos o conflito das crianças com o violento professor da única escola de Marstal, Isager, que não se contenta com a palmatória, somando ao seu repertório socos, chutes e a corda. Esse é um conflito de gerações mas que, segundo alguns dos meninos que já foram para o mar, é necessário, visto que, ao se tornar adulto e marinheiro, as surras apenas aumentam. A violência com que eles precisam se acostumar está presente desde muito cedo, é parte de sua experiência de vida. Passado esse primeiro aprendizado, Albert se torna marinheiro, passando por diversos navios, vivendo a lei do mar e a lei da terra e, após alguns anos, sai em busca do pai, indo parar em ilhas de canibais e cabeças encolhidas. Aqui temos as primeiras referências diretas à Odisséia, com Albert identificando-se com Telêmaco à espera e em busca do pai.

Já velho, Albert tem sonhos premonitórios nos quais enxerga Marstal como uma cidade de navios e marinheiros fantasmas. São os primeiros dias da Primeira Guerra Mundial e, embora a Dinamarca tenha se mantido neutra, seus barcos caíram muitas vezes vítima de submarinos alemães. É dessa maneira que entra em cena o terceiro protagonista do romance: Knud Erik, que ainda menino, perde o pai num desses navios. Albert, que nunca se casou ou teve filhos, acaba se aproximando do garoto, tornando-se a figura paterna na vida dele - e envolvendo-se também com a viúva, Klara Friis.

Albert acaba deixando a fortuna que fez em sua carreira como capitão e corretor de navios para os Friis… e assim temos a terceira parte do romance, que se divide entre o amadurecimento de Knud Erik, sua partida para o mar, e seu envolvimento na Segunda Guerra Mundial; com a história de sua mãe, cujas perdas para o mar fazem com que ela o enxergue como um inimigo e cuja fortuna herdada permite a ela encontrar meios de se vingar.

Todos esses personagens passam por processos de desumanização e depois de reencontro com a própria humanidade, através da violência, de suas buscas pessoais, e do aprendizado que tiram do mar. Klara serve como um interessante contraponto colocado a todos esses homens - ela é a mulher sempre deixada no porto, para quem o mar é uma ameaça, representante do outro lado desse mundo de sacrifícios e imensidões.

O enredo é quase todo em primeira pessoa, mas não enxergamos o narrador (exceto por alguns capítulos em que Albert conta sua jornada) - ele é um dos homens de Marstal, uma das testemunhas daqueles acontecimentos, ele é um homem adulto e é uma das crianças e é também um dos marinheiros nos diferentes barcos por onde passamos; ele é um e muitos e por isso está sempre falando “nós, os homens”, “nós, os meninos”, “nós, os marinheiros”, "nós, os afogados". Não me lembro de ter visto antes essa técnica narrativa, mas embora tenha estranhado de início, foi uma escolha que fez sentido, especialmente a se considerar o coletivo do título. Há também um elemento de universalidade nessa forma de narrar, de abarcar o mundo naquela cidadezinha da costa dinamarquesa; num tom que nos faz pensar em História e Tradições Orais, algo bem presente no fim do livro.

Curiosamente, minha jornada com Nós, os Afogados é também uma pequena odisséia. A primeira vez em que ouvi falar desse livro, foi numa indicação numa revista de avião; em algum ponto sobre o mar entre Recife e Lisboa - e a capa da edição portuguesa foi o que realmente me chamou a atenção. Anotei o título, coloquei na minha lista de ‘querências’ e deixei lá por um tempo. Não sei exatamente quando foi que descobri que o livro também tinha sido publicado no Brasil, mas sei que o encontrei para troca no Skoob e foi assim que ele chegou na minha estante. Foram dois anos até que eu me decidisse por começá-lo - quatro, desde que o descobri naquela viagem - mas, bem, aqui estamos.

Terminando… Nós, os Afogados é um livro intenso, ambicioso, mas que faz jus a essa ambição. Ele me fez viajar, e me deixou com vontade de colocar os pés na areia, de navegar e olhar as estrelas no meio do mar, sem terra à vista. É uma bela e poderosa narrativa, uma boa aventura, repleta de momentos de ‘história de pescador’, sem deixar de ser realista, especialmente em suas perdas e na forma como apresenta a guerra. Mas é também um livro denso, complexo, que se recomenda degustar aos poucos.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Nós, os Afogados
Autor: Carsten Jensen
Tradução: Ana Ban
Editora: Tordesilhas
Ano: 2015

Onde Comprar

Amazon || Cultura || Folha


A Coruja


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