13 de junho de 2016

#LendoSandman: Convergência


Segundo uma das definições que procurei no dicionário, convergência é “o que caminha para o mesmo ponto ou objetivo: convergência de opiniões. Qualidade do que é capaz de convergir, dirigir-se para um ponto comum”. Essa é, de fato, uma qualidade intrínseca às histórias desse sétimo arco de Sandman, histórias que falam, sobretudo, sobre a própria arte de contar histórias, nos quais narradores são também personagens de seus contos e onde realidade converge com ficção para encontrar o sonho.


O arco se inicia com A Caçada, em que um avô narra para a neta uma lenda dos tempos de antes da família imigrar para os Estados Unidos, quando ainda viviam em suas terras ancestrais, com suas ‘verdadeiras florestas, verdadeiros ursos, verdadeiros lobos’, sobre um jovem que abandona seu Povo numa jornada para encontrar a jovem filha do Duque, após ver o retrato da moça entre as coisas de uma velha mascate. Em seu caminho, Vassíli, o protagonista do conto, encontrará ladrões, assassinos, outros membros do povo e… um bibliotecário. E, ao final da história, tomará vinho com o Rei dos Sonhos.

A primeira coisa que chama a atenção na história é a ênfase nas ‘imagens verdadeiras’, em contraste com a realidade que cerca o avô narrador e a neta que quer assistir TV, especialmente porque essas ‘imagens da verdade’ são arquetípicas. É a Alegoria da Caverna - talvez o mais importante conceito da filosofia ocidental - a ideia de que seres humanos enxergam a realidade de forma distorcida, filtrada por influências culturais e sociais.

O que Celeste - e nós leitores - conhecemos como uma floresta, um lobo, um urso, não são imagens reais, simplesmente porque nossa experiência desses objetos é filtrada pela nossa realidade. Quem de nós já teve a oportunidade de estar numa floresta - não uma trilha segura e monitorada, mas uma floresta de verdade; ou já esteve diante de um lobo em seu habitat natural? Muitos nunca viram um lobo nem por trás das grades de um zoológico, que dirá livres.

Mais que não saber o que é uma verdadeira floresta, as experiências modernas da neta do narrador impedem que aceite - ou mesmo enxergue - o que está por trás da história e o que significa para ela mesma como um membro do Povo.

Não é difícil chegar à conclusão de que o Povo de Vassíli é um grupo de metamorfos, possivelmente licantropos. Basta olhar para as paredes da casa em que ele e o pai vivem, feitas de crânios e outros ossos. Nos olhos de pupilas verticais e os caninos afiados. Fica implícito que ele matou o comeu o hoteleiro. Há a caçada da corça e, por fim, claro, há o encontro com a loba.

Sabemos que o Vassíli da história é também o narrador do conto. Será que Celeste conhece seu legado? Será que ela sabe quem ela é? Ou ela está prisioneira da caverna, incapaz de enxergar o que é verdadeiro, porque seus pré-conceitos lhe dizem que aquilo é impossível de ser real?

Talvez por isso Vassíli - o avô - alerte “nunca confie no contador de histórias. Confie apenas na história”, o que me faz retornar às aulas de hermenêutica e filosofia dos tempos de faculdade para a questão das intenções do texto e as possibilidade de interpretação.


Umberto Eco, num brilhante trabalho sobre semiótica, fala que todo o texto tem três interpretações ou intenções: a do autor, a do leitor e a do próprio texto. Você interpreta o texto de acordo com as suas experiências, enxergando, por vezes, coisas que o escritor nem sonhava estavam ali inseridas. Essa interpretação tem um limite, que é a intenção do texto.

Juntando a alegoria da caverna à intenção do texto, o que temos é um avô que tenta passar um legado e uma neta que interpreta a história de acordo com sua própria situação - o namoro com um rapaz que não pertence ao Povo. A interpretação que cada um dá à história está de conformidade com sua própria experiência, o que talvez os torna cegos - em especial Celeste - para o que ela realmente significa.

A Caçada é também uma história sobre valor: o valor das coisas está nos olhos de quem vê, na crença de cada um. O coração de esmeralda do Koschei pode ser um engodo para Lucien, mas não é para a Baba Yaga. Os objetos no saco da velha mascate podem ser inestimáveis... ou podem não ter valor algum. Tudo depende do que você acredita, do que você sonha.


A segunda história do arco é Regiões Abstratas. A primeira coisa que quero dizer sobre essa história: curiosamente, pouco antes de começar a escrever essa análise eu estava lendo o artigo The Nature of the Infection: Some Thoughts on Doctor Who, que foi publicado no novo livro de ensaios do Gaiman, e me deparei com a seguinte passagem:
Eu não confundo o que não ocorreu com o que não pode acontecer e, em meu coração, Tempo e Espaço são infinitamente maleáveis, permeáveis, frangíveis.”
O estalo foi imediato, porque essa descrição é basicamente a explicação dada por Fiddler’s Green para o que são as regiões abstratas. Por uma coincidência, ou convergência, descobri uma influência que embora eu tivesse uma vaga noção de que existia, não tinha realmente parado para pensar nela. Gaiman escreveu episódios e alguns contos para a série Doctor Who, mas eu não sabia que ele tinha passado a infância assistindo episódios da série original; tampouco me dera conta do quanto certos conceitos da série se encaixavam no que ele escreveu.


Regiões Abstratas quase se lê como um episódio de Doctor Who, com Fiddler’s Green fazer as vezes do Doutor, encontrando um personagem histórico - no caso, Marco Polo - e virando de pernas para o ar quaisquer barreiras entre espaço e tempo.

Ao se perder no Deserto de Lop, Marco atravessa essas barreiras. Ele cruza com exércitos perdidos a séculos, com um Fiddler’s Green posterior aos eventos de Casa de Bonecas e com o Morpheus de Prelúdios e Noturnos logo após fugir do cativeiro. Passado, presente e futuro convergem a um só tempo, dependendo apenas de qual personagem você toma como paradigma - especialmente entre Marco e seu biógrafo, Rustichello.

Convergências fecha com O Parlamento das Gralhas, quando Daniel Hall, sobre quem já muito falamos em Casa de Bonecas, adentra o Sonhar e é encontrado por Matthew e Eva e levado para visitar Caim e Abel na Casa dos Segredos.

Há algumas revelações muito interessantes nessa história. Eva, Caim e Abel são personagens da mais antiga das histórias - uma história que não se iniciou com os humanos ou com o planeta Terra, a julgar pela fala interrompida de Abel a determinada altura. Na verdade, considerando o que Abel revela, é provável que eles sejam tão antigos quanto os próprios Perpétuos, tendo nascido junto com a própria consciência do Universo. Suas faces humanas são uma conformidade à maneira como sua audiência os enxerga.


O Parlamento das Gralhas traz várias histórias dentro de uma história - Eva, Caim e Abel, como muitos outros personagens do Sonhar, são acima de tudo, narradores. Essa é sua função. E aqui, como nos outros contos deste arco, eles narram seus próprias histórias: são eles os contadores e também os protagonistas.

A história de Caim é na verdade uma explicação para a cena que assistimos com Daniel. As gralhas se reúnem para ouvir uma história e, a depender de como julguem o valor do que lhes foi contado, deixarão o contador vivo… ou o matarão. É o primeiro ato, a organização do palco para o que virá a seguir.

Eva, por sua vez, conta da criação do feminino. Tenho uma vaga lembrança da história das três mulheres de Adão - não sei se a conheci por causa do Dicionário de Mitologia que tenho na estante em algum lugar ou se foi por livros de Vampiro - A Máscara, já que a mitologia de Caim é usada para explicar a existência dos vampiros - mas a versão que ela conta tem um aspecto que não me era familiar, que é o fato de Adão ter tido três mulheres, mas apenas uma esposa.

Lilith, a primeira esposa, aparece na Bíblia, implícita no texto do Gênesis, quando, logo ao primeiro capítulo, se diz que “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”, para entrar em contradição logo em seguida e dizer que Deus fez Adão dormir para lhe tirar uma costela e então criar Eva.

Na prática, o Gênesis é repleto de contradições porque ele é um emaranhado de recortes de mitos mesopotâmicos que foram sendo tomados de outros povos durante os anos de escravidão dos israelitas. Numa tentativa de fazer sentido dessas contradições, os sábios de então criaram personagens e narrativas em paralelo - spin-offs da série original.

Enfim, o que importa é que Lilith, originalmente uma figura demoníaca por vezes associada à Ishtar, deusa do do sexo e da guerra, foi colocada por essas narrativas paralelas como sendo a primeira esposa de Adão, criada, como ele, à imagem e semelhança divina. Estando em pé de igualdade por sua criação, Lilith não demora a começar a se colocar ‘por cima’, de mais maneiras que a óbvia.

O homem não aceita se colocar em posição de inferioridade, então Lilith o abandona. Mais tarde, ela se juntará a diversos demônios e iniciará uma enorme progênie de incubus e sucubus. Essa é uma ligação direta com o Sonhar: incubus e sucubus são demônios que atacavam os humanos em seus sonhos, tirando sua energia do sexo. Imagino se Morpheus os consideraria parasitas ou súditos legítimos de seu reino.

A segunda esposa, a sem nome, foi criada pelo Midrash - a tradição de estudo e interpretação da Torá - para explicar porque houve a necessidade de fazer Adão adormecer para lhe retirar uma costela. Ela não aparece em nenhuma outra narrativa paralela.

Então, há Eva, a única das três mulheres que é realmente citada nos textos clássicos. Três mulheres… então porque apenas uma esposa? Considerando que existe uma identificação delas com a tríade de mãe, donzela e anciã, em paralelo com as Moiras, Lilith, a Sem Nome e Eva são três que são uma. Elas são todas facetas de uma única criatura, o primeiro arquétipo da primeira e mais antiga história.

Abel continua a narrativa de Eva do Gênesis, com seu primeiro assassinato por Abel, após o sacrifício de carne ser preferido pelo Criador. A história de Abel revela que ele teve uma escolha - ele poderia ter seguido com Morte, mas preferiu ir com Sonho e assim continuar parte da tapeçaria da primeira história. Em todas as histórias subsequentes de fratricídio, o que temos é a repetição daquela primeira cena.

Convergência é mais um arco em que Morpheus aparece de forma periférica, mas é importante para explicar a importância do ato de contar histórias, tão caro à própria essência do Sonhar. Todas elas são histórias que convergem narrador e personagem; e em todas há encontros de personagens do mundo acordado com criaturas do Sonhar. A natureza do tempo e o valor dos sonhos - e, por tabela, das histórias - estão na essência de todo o arco.


Na cronologia da história que estamos acompanhando desde o início da série, ela nós dá uma única informação nova: Sonho tomou uma nova amante, uma mulher não particularmente benquista pelos outros habitantes do Sonhar.

Para encerrar a análise de hoje, falemos sobre as duas histórias extras que acompanham os arcos Espelhos Distantes e Convergência.

Medo de Cair é uma história bem curtinha, lançada como uma espécie de propaganda da série Sandman, funcionando mais como um discurso motivacional que parte da narrativa principal. Temos um dramaturgo às vésperas de ver uma de suas peças ir ao palco, querendo desistir de tudo por medo.


Medo de fracassar, mas também medo do sucesso. Medo de não ser o suficiente… até que um estranho encontro em um sonho faz com que ele tome coragem para ir adiante, afinal, “Às vezes, você acorda. às vezes, morre na queda. e às vezes, quando cai, você voa.”. Não consigo deixar de pensar que há um certo tom autobiográfico nessa história. Talvez tenha sido algo que Gaiman escreveu para si mesmo.

Por fim temos A Canção de Orpheus, que segue bem de perto o mito grego original, exceto pela inclusão e influência dos Perpétuos. Nessa história temos a primeira menção ao nome do sétimo Perpétuo, o pródigo: Olethros, cuja tradução é… Destruição. Assim é que temos agora o elenco completo dos irmãos: Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio.

É o dia do casamento de Orfeu com Eurídice e tudo parecia estar indo bem… até que o sátiro Aristeu (uma junção do sátiro genérico do mito original e uma divindade menor na versão escrita por Virgílio), enlouquecido pelo vinho, tenta violentá-la. Fugindo de Aristeu, Eurídice pisa um ninho de víbora, é picada e morre.

Desesperado, Orfeu decide descer ao Mundo Inferior, o reino de Hades, para resgatar a amada ou ficar por lá mesmo se não conseguir fazê-lo. Ele tenta primeiro a ajuda do pai, que o rechaça, lembrando a ele que a morte é natural, que devemos passar pelo luto da perda e então seguir em frente. Orfeu corta relações com o pai e pede ajuda à Morte, após ouvir os conselhos de Destruição. E a Morte lhe concede imortalidade para que ele possa descer ao mundo dos mortos.


A despeito da afirmação de Orfeu de que não considera mais Morpheus seu pai, a verdade é que eles ainda se importam um com o outro. Morpheus retorna ao final desse conto - embora não para liberar o filho do destino que este traçou para si mesmo ao ignorar seus conselhos - e também influencia os acontecimentos de Termidor para salvá-lo.

A história deles continua em aberto e, possivelmente, há um dedo de Desejo em toda a tragédia, especialmente a se considerar a intensidade da paixão e o desespero de Orfeu, que o levam a considerar um caminho atípico para sua dor. Como isso se encaixa no grande plano de Desejo em sua eterna desavença com o irmão mais velho é algo que ainda teremos esperar para ver, mas é fato que Orfeu e seu pai ainda cruzarão caminho na série, para o bem ou para o mal.

Por hoje, ficamos por aqui, mas voltamos com o oitavo arco, Vidas Breves, no início de julho. Até lá, não esqueçam de acompanhar as discussões dessa fase do projeto no Pipoca Musical e também na comunidade All About Gaiman.


A Coruja


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