9 de janeiro de 2012
Jane Austen e o espírito de sua época
Fui convidada a escrever um texto para o blog da editora Martin Claret, tendo em vista as novas traduções austenianas deles. Esse artigo é na verdade um resumo do especial que escrevi em 2010, quando apresentei uma palestra sobre o contexto histórico da vida e obra da autora. Para quem ficar mais curioso, recomendo ler a íntegra da série, dividida em seis partes.
Jane Austen é considerada por muitos críticos uma das maiores autoras da língua inglesa. Apesar de ter escrito relativamente pouco – foram apenas seis romances completos, além da obra epistolar Lady Susan e alguns contos que compõem o que chamamos de Juvenilia – Austen conseguiu criar um monumento literário que ecoa ainda nos dias de hoje, duzentos anos após suas primeiras publicações.
Além de estilo, enredo e prazer, estes livros também nos rendem alguns interessantes vislumbres da época e da sociedade em que a autora viveu: a Inglaterra da Era Regencial, dividida entre a grandiosidade do Império Britânico (o Act Union que criou a Grã-Bretanha foi assinado em 1801) e as Guerras Napoleônicas.
O mundo – e, por mundo, devemos aqui entender especialmente a Europa – estava em convulsão. Entre 1789 e 1848, passamos por três grandes revoluções: a Francesa, de 1789, que derrubou o Absolutismo; a Liberal, de 1830, retratada por Victor Hugo em Os Miseráveis e a Primavera das Nações, de 1848, com as revoltas do proletariado.
Especificamente no período de vida de Jane Austen – de 1775 a 1817 – temos a revolta das colônias americanas (que viriam a se tornar os Estados Unidos da América em 1783), a queda da Bastilha, o Terror, a ascensão de Napoleão e a guerra quase ininterrupta entre França e Inglaterra (com uma única trégua de dezoito meses, entre 1801 e 1803).
Internamente, a Inglaterra também enfrentava crises. Em 1788, George III teve um dos primeiros ataques do que, mais tarde, se viria a ser considerado porfiria – uma doença genética – dirigindo-se a árvores como se estas fossem colegas de coroa, ameaçando e desconhecendo adversários e aliados.
O Príncipe de Gales, George, assumiu o reino enquanto o pai esteve impossibilitado (houve, inclusive, boatos de que o rei teria sido envenenado), enquanto o Parlamento discutia se tal regência seria temporária ou definitiva – constitucionalmente falando, a loucura de George III o fazia morto para o trono.
Enquanto se discutia sua sucessão (ou não), o rei voltava a si, no final 1789, e ainda viria a reinar até 1811, quando aceitaria a necessidade de um Regency Act. No final desse ano, ele voltou a adoecer, sendo recolhido no Castelo de Windsor até sua morte, em 1820, quando o regente foi coroado, passando a ser o rei George IV.
Este período da história da Inglaterra é por isso chamado de Regência e é considerado uma era de transição entre a Era Georgiana e a Era Vitoriana.
Apesar das incertezas desse período, a sociedade inglesa da Regência caracterizou-se por um ambiente amplamente favorável às artes – a literatura, a música, a arquitetura – tendo entre seus patronos o próprio Príncipe Regente e a Duquesa Georgiana de Devonshire, ambos lideranças não apenas políticas e sociais, mas também de estilo e moda.
A bem da verdade, essa foi uma época bastante liberal – e liberal, inclusive, nos excessos; o estilo glamoroso da aristocracia em contraste com a pobreza que imperava nos estratos inferiores da sociedade renderia posteriormente a matéria-prima dos romances de Dickens e Elizabeth Gaskell.
A valsa é trazida do Continente para os salões ingleses, escandalizando as matronas da sociedade. As lamparinas a gás são introduzidas nas ruas de Londres. A escravidão começa a ser questionada, até ser banida definitivamente. Começa a Revolução Industrial. Mary Shelley escreve Frankenstein, enquanto Byron escandaliza a todos com seus poemas e seu modo de vida e Sir Walter Scott publica Ivanhoé. Na França, Balzac trabalha em sua Comédia Humana e na Alemanha, Goethe publica Fausto. Mozart, Bach, Beethoven, Paganini, Rossini, Schubert são todos também dessa época.
Se vocês lembram alguma coisa das aulas de história e literatura nos tempos de colégio, pelos personagens citados, já devem ter percebido o óbvio: estamos precisamente no auge do Período do Romantismo.
É nessa época de efervescência cultural e social que Austen viveu, embora, à primeira vista, tais mudanças não pareçam ter se infiltrado em sua obra – muitos críticos dizem (erroneamente) que Austen criou um mundo à parte em sua obra, completamente desvinculado da realidade em que vivia. Aqui, porém, temos de nos lembrar que Jane passou grande parte de sua existência num vilarejo rural; onde pertencia à baixa nobreza, a classe dos gentis. Esse é o mundo que ela retrata porque esse é o mundo que ela conheceu.
Perceba-se que, ainda que não se fale em Napoleão ou na guerra – primeiro contra as colônias, depois contra o império francês – os militares estão quase que onipresentes em seus livros: a milícia em Meryton e nas figuras de Wickham e do Coronel Fitzwilliam em Orgulho e Preconceito; Sir John Middleton e Coronel Brandon em Razão e Sensibilidade, o general Tilney e seu filho, capitão Tilney na Abadia de Northanger; e a Marinha Real Britânica, representada por Capitão Wentworth e demais companheiros de Persuasão.
Persuasão é, de todos os títulos, aquele que mais referências históricas faz – ainda que elas sejam quase invisíveis para nós, porque são menções muito rápidas, de passagem e que não chamam tanto a atenção do leitor. É também a única história que traz uma data certa, que abre com o exato ano em que a história se desenvolve.
A história desse livro começa por volta de junho para julho de 1814. Em abril desse ano, Napoleão abdicou do trono, sendo exilado para a Ilha de Elba, terminando assim, para todos os efeitos, a guerra – como se depreende do discurso de Mr. Shepherd, no início do capítulo 03, tentando convencer Mr. Elliot a alugar Kellynch Hall:
– Peço autorização para observar, Sir Walter – disse o Dr. Shepherd uma manhã no Solar de Kellynch, pousando o jornal -, que a conjuntura atual nos é muito favorável. A paz fará desembarcar os nossos oficiais da Marinha, ricos. Vão todos querer casa. Não podia haver melhor altura, Sir Walter, para escolher inquilinos, inquilinos muito responsáveis. Fizeram-se muitas fortunas respeitáveis durante a guerra. Se um almirante rico nos aparecesse, Sir Walter…
O ano, aliás, é pista bastante para entendermos como, exatamente, veio o capitão Frederick Wentworth a fazer sua fortuna – à época, cada navio aprisionado gerava um prêmio em dinheiro, uma percentagem para cada membro da tripulação.
Frederick já era capitão quando veio a conhecer Anne, no verão de 1806, tendo sido promovido “em sequência de uma batalha ao largo de São Domingos”. As ilhas São Domingos, nas Américas, eram colônias da Inglaterra, França e Espanha, servindo como base para a produção de açúcar, no regime de escravidão. Espanha e Inglaterra abandonaram essa colônia ainda no século XVIII, deixando tudo para França. Aos poucos, a coisa toda foi degringolando para uma guerra racial entre os escravos e grande senhores de engenho, com uma manobra de invasão liderada pelo cunhado de Napoleão em 1802, na tentativa de restabelecer o controle francês sobre a colônia.
Resumo rápido da história: os escravos se aliaram aos ingleses para expulsar de vez os franceses da ilha, culminando assim com a independência da ilha, que se tornaria o que conhecemos hoje como Haiti.
1806, aliás, é também o ano em que Napoleão decreta o Bloqueio Continental, o qual ordenava que os portos dos países submetidos ao Império Francês fossem fechados para navios da Grã-Bretanha.
Estamos por volta de fevereiro de 1815 quando chegamos ao final do livro, época em que Napoleão decidiu que o clima de Elba não casava muito bem com ele e fugiu de volta para França, junto com um exército, reconquistando o poder e iniciando o “Governo dos Cem Dias”, até ser definitivamente derrotado pela coalizão anglo-prussiana na famosa Batalha de Waterloo, em 15 de julho. Provavelmente, se o livro tivesse continuado até depois do casamento de Frederick e Anne, teríamos visto o capitão ser convocado para se apresentar, uma vez que os tempos de paz teriam acabaram.
A determinada altura, Anne diz, sobre o almirante Croft, cunhado do Capitão Wentworth, “esteve na batalha de Trafalgar e, desde então, tem estado nas Índias Ocidentais; foi destacado para lá, creio, há vários anos”, o que se refere à batalha naval de 21 de outubro de 1805, ao largo do cabo de Trafalgar, na costa espanhola, com a esquadra inglesa comandada pelo herói nacional Almirante Nelson (que morreu após os combates, antes de chegar à Inglaterra), batalha esta em que Napoleão perdeu o controle do Atlântico, possibilitando inclusive a retirada estratégica da família real portuguesa para o Brasil.
E pensar que tem autores que dizem que Jane Austen não escreveu absolutamente nada sobre o que estava acontecendo à época… O fato de ela não falar abertamente sobre a guerra com Napoleão não significa que ela era alienada do que estava acontecendo no mundo ao seu redor.
Curiosamente, é de se observar que os personagens de Austen – ou de romances de época de uma forma geral – pareçam mais ou menos desocupado; tudo o que se fala é sobre casamentos, bailes, piqueniques, caminhadas, chapéus e “ai, meu Deus, a milícia está em Meryton!”.
Sabemos que a fortuna de Bingley veio do comércio e que sir Thomas Bertram tem uma plantação em Antígua, para onde tem de viajar a certa altura de Mansfield Park porque os negócios não vão lá muito bem. Sabemos que Mr. Darcy tem uma renda de dez mil libras por ano e que volta e meia ele se encontra com seu administrador em Pemberley para cuidar de negócios.
Nenhum destes cavalheiros, contudo, tem uma profissão.
A sociedade à época de Austen, nestes termos, lembra um pouco Atenas na era clássica, onde os homens livres, a casta superior em sua hierarquia, não trabalhava, uma vez que o trabalho era coisa de escravos – eles administravam e lucravam com o trabalho dos escravos e de resto, passavam seus dias a filosofar (ou o que quer que achassem interessante fazer).
Aliás, sobre a escravidão, por causa de uma única linha em Mansfield Park, acadêmicos dedicaram páginas e páginas a discutir se Austen era contra ou a favor da abolição.
— Mas eu falo com ele mais do que costumava. Não ouviu eu o interrogar ontem à noite sobre o tráfico de escravos?
— Ouvi — e tive esperança de que à pergunta fosse seguida de outras. Seu tio havia de gostar que lhe tivesse pedido outras informações.
— E eu queria muito fazer outras perguntas — mas estava um silêncio tão pavoroso! E enquanto meus primos estavam ali sentados sem dizer uma palavra, parecendo não se interessar absolutamente pelo assunto, eu não quis… — parecia que eu queria me exibir à custa do silêncio deles, mostrando uma curiosidade e um prazer pelas informações que ele decerto desejaria fossem manifestados pelas suas próprias filhas.
Não acho que se possa chegar a uma decisão definitiva acerca do assunto apenas com essa passagem, mas, a se considerar que é Fanny que questiona Sir Thomas e conhecendo seu próprio histórico e seu lugar na casa dos Bertram, eu não acredito que ela teria perguntado nada ao tio com ideias de elogiar o regime escravocrata.
Mesmo porque, quando Austen escreve esse livro, entre 1812 e 1814, a Inglaterra já editara o Ato contra o Comércio de Escravos de 1807 (que aboliu o comércio de escravos no Império Britânico, mas não a escravidão propriamente dita; que teve de esperar pelo Ato de Abolição da Escravatura de 1833).
De toda forma, o trabalho não era considerado lá muito dignificante na Inglaterra da virada do século XVIII para o XIX. Um cavalheiro vivia de renda – investia sua fortuna em títulos (fundos do governo, das Companhias das Índias, etc.) e passava o resto da vida recebendo as rendas desses investimentos.
Para investir, claro, primeiro você precisa de dinheiro, e é daí que vem a questão das heranças, um problema diversas vezes abordado nas obras de Austen.
Então… se você é o primeiro filho homem de um cavalheiro, você está feito na vida: vai receber sua herança, aplicá-la, e passar o resto da vida passeando, frequentando a sociedade, jogando cartas e caçando faisões, tudo isso pago com as rendas que você recebe da sua fortuna aplicada em títulos.
Se você não é o primogênito… bem, você terá então de abrir caminho por si mesmo. Você tem, basicamente, três opções: casar-se com uma herdeira (como pretendia o capitão Fitzwilliam), fazer carreira militar (preciso falar de Wentworth e cia?) ou virar clérigo (como Edmund Bertram, Henry Tilney e Edward Ferrars).
Já tendo tratado dos militares, falemos sobre os clérigos. Antes de mais nada, temos de lembrar que a Inglaterra de Austen é anglicana e que a Igreja Anglicana tem regras diferentes da Católica em relação à vida de seus ministros. Para começar, eles não precisam ser celibatários.
Na verdade, ser um clérigo era como outra profissão qualquer, para a qual você não precisava ter particular vocação, recebia uma paga, além de uma casa na paróquia de que fosse cuidar.
É bom lembrar que cada paróquia tinha seu patrono – geralmente o grande senhor de terras do lugar, o cavalheiro que tivesse o maior ranking entre seus companheiros – e que era esse patrono o responsável pela designação ou indicação do vigário de seu gosto para sua paróquia.
Assim é que se explica como Darcy poderia ter feito a fortuna de Wickham; ou a ajuda que o Coronel Brandon representa para Edward e ainda porque Mr. Collins é tão ansioso por agradar Lady Catherine.
Agora, se você é uma mulher à época de Austen… bem, se você for uma herdeira, ótimo. Você pode viver como Georgiana Darcy, Caroline Bingley ou Emma Woodhouse.
No geral, contudo, a situação feminina não era das melhores, especialmente a se considerar o chamado “direito de primogenitura”, pelo qual as mulheres eram sempre preteridas em prol do parente homem mais próximo – e servem como exemplos aqui a propriedade de Mr. Bennet (Orgulho e Preconceito) e o título de baronete e as propriedades de Sir Elliot (Persuasão), que, na falta de um filho varão, iriam para as mãos de outros parentes, deixando as filhas dos respectivos cavalheiros numa situação precária.
Não bastasse isso, uma vez casadas, as mulheres, no sentido legal, tinham sua existência suspensa. Em outras palavras, ela se tornava o marido. No sistema legal britânico da época, se você quisesse processar uma mulher, tinha de processar o marido dela. E, se ela quisesse processar você, ela teria que convencer o marido a fazê-lo. Se o marido quisesse fazer a doação de uma propriedade para o nome da esposa, ele não podia fazê-lo porque… bem, porque era o equivalente a fazer uma doação para si mesmo. Se a mulher fosse uma autora e ganhasse dinheiro com isso… o dinheiro era do marido. E por aí vão as consequências dessa interpretação legislativa.
O homem tinha o direito pleno de manter a esposa em cárcere privado; se a esposa decidisse sair de casa, ele poderia forçá-la a retornar e trancá-la. Tinha também o direito de bater nela – e não havia para quem recorrer disso. Legalmente falando, a mulher tinha o mesmo nível de capacidade civil das crianças, dos fora da lei e dos loucos – ou seja, nenhuma.
O divórcio era outra questão complicada. Considerando que a Igreja Anglicana surgiu por uma necessidade prática de Henrique VIII – separar-se – o processo não era exatamente fácil. Além de ser caríssimo, havia o detalhe de que até 1857, as mulheres não podiam ser as autoras da ação. Isso mudou graças aos esforços de Caroline Norton, que começou seu calvário uns dez anos depois da morte de Austen. Caroline era bonita, inteligente e perspicaz e, para melhorar os prospectos da família, teve de se casar com o filho mais novo de um nobre, George Norton.
Norton era ambicioso, conservador e político na Câmara dos Lordes. E também batia na esposa. Diz-se que mais de uma vez os empregados tiveram de intervir para protegê-la da fúria do marido.
Para completar, Caroline era próxima de Lorde Melbourne – que viria a ser posteriormente primeiro-ministro. A princípio, Norton achou que tal ligação o favoreceria, mas quando percebeu que não, processou Lorde Melbourne por… adultério.
Não havia evidências para tal processo, de forma que a coisa foi logo arquivada… E, uma vez que não podia fazer nada contra Melbourne, Norton voltou-se então para o segundo alvo: expulsou Caroline de casa e a proibiu de se aproximar dos filhos.
Com a ajuda de membros do próprio Parlamento, Caroline iniciou uma campanha para reconhecer o direito de custódia dos filhos para a mulher – porque até mesmo isso lhes era negado antes; os filhos pertenciam (e estamos aqui falando realmente de posse de um objeto) ao pai.
Em 1857, foi aprovado o Matrimonial Causes Act, que transferiu a jurisdição para causas de divórcio da Igreja (que fazia de tudo para dificultar as coisas) para cortes civis (que também não facilitavam tanto assim), permitindo que as mulheres se separassem caso houvesse adultério por parte do marido cumulado com violência, estupro, sodomia e variantes.
Não foi um passo muito grande, mas foi um primeiro passo, inclusive por permitir que as mulheres tivessem algum controle sobre seu próprio dinheiro – uma questão que perpassa a realidade de muitas das heroínas de Austen, em um mundo que apenas o casamento representava alguma segurança e relativa independência.
A Coruja
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