31 de outubro de 2010

Clube do Livro (Outubro) - Frankenstein

Incapaz de suportar aquela visão apavorante, precipitei-me pela porta e corri para o meu dormitório, onde fiquei, por longo tempo, a andar de um lado para o outro, incapaz de controlar-me e deitar-me para tentar o esquecimento pelo sono. Por fim, o cansaço prevaleceu sobre meu tumulto interior, e atirei-me à cama mesmo vestido. Acabei por adormecer, mas antes não o fizesse, tais os pesadelos que me assaltaram.
No mês das bruxas, não podíamos nos furtar a ler algum clássico de horror e sobrenatural. Após uma votação acirrada, o escolhi do Clube do Livro foi Frankenstein e assim que nos debruçamos sobre a história do bom doutor que brinca com os poderes da criação. Eu gostaria de começar dizendo que não vejo a história como um conto de terror, de medos e fobias; que “falasse aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse um espantoso horror”, conforme a autora desejava.

Frankenstein pode ser interpretado sob diversos prismas, especialmente à luz da ética e da moral, com Victor tentando assumir o papel de Deus – e recebendo o castigo pela sua soberba, com a Criatura, incapaz de encontrar conforto ou companheirismo, fruto de sua convivência com o gênero humano.

Considerando todas as decepções pelas quais passou, a total solidão, privado de qualquer interação social, será que podemos realmente condenar a Criatura, o Monstro, demônio, fantasma – os muitos epítetos que Victor lhe transmitiu em vez de um nome, uma identidade própria? Quem é mais digno de compaixão nesse conto, Criador ou Criatura? Apesar de todas as perdas que Victor sofreu ao longo da história, não seria ele mais reprovável? Como a Criatura mesmo diz, a princípio, seu espírito estava voltado para o bem; foram as circunstâncias que o transformaram num assassino, num monstro.

Se Victor não tivesse fugido, se tivesse perseverado, se houvesse tido paciência, ensinado, lhe dado um nome; se tivesse demonstrado alguma centelha de bondade pela sua criação, a história não teria sido outra? Victor deixou a Criatura sem sequer tentar qualquer comunicação – em vez disso fugiu apenas à imagem de seu monstro.

No meio das discussões do clube, surgiu a questão da aparência da Criatura, que evoluiu ainda para um comparativo literário bem interessante (do qual falo mais adiante). Então, se a Victor preocupava tanto uma boa aparência, então porque não se esforçou por lhe dar o aspecto desejado? Talvez tenha ocorrido que, inflamado pelo desejo da descoberta, exauriu-se até quase arruinar a própria saúde – nesse estado febril, ansioso por ver o produto pronto e acabado, não deu tanta atenção aos detalhes até que fosse tarde demais... Entre a soberba de ter descoberto a centelha da vida, e a vaidade, não sei dizer qual seria o maior defeito de nosso bom doutor.

De modo geral, contudo, não consigo atinar como Victor podia esperar algo mais de uma criatura feita de pedaços de cadáveres humanos. A não ser que ele usasse cadáveres embalsamados – e mesmo assim não haveria grandes garantias. De qualquer forma, também não acho que seria possível usar cadáveres embalsamados, afinal, ele precisava de órgãos e no processo de embalsamamento são usadas substâncias químicas e processos de extirpação de vísceras, pouco provável que esse fosse o tipo certo de cadáveres para reanimar.

Eu, particularmente, preferiria corpos frescos.

Também podemos analisar o livro sob um ponto de vista histórico. Temos de lembrar que à época em que Mary Shelley escreveu seu conto, as pesquisas e conclusões de Darwin acerca da evolução humana estavam sendo amplamente discutidas – e havia um debate acirrado entre os partidários das novas teorias e os criacionistas, que atacavam a idéia da evolução como fruto do orgulho e soberba humanos.

É importante lembrar ainda que Shelley deu um subtítulo a sua obra: o Prometeu Moderno. Lembremos aqui que Prometeu, de acordo com a mitologia grega, criou a humanidade – por ordem dos deuses – mas desejando que sua criação progredisse, roubou do Olimpo o fogo, entregando-o ao homem.

Por castigo, Prometeu foi acorrentado a uma montanha e lá, todos os dias, vinha uma águia bicar-lhe o fígado, que à noite crescia para no dia seguinte ser devorado novamente.

Victor aqui se coloca na figura do Prometeu. Ele está cheio de boas intenções, mas ao usurpar uma das atribuições dos deuses – a conquista da centelha da vida, aquela coisa que anima um corpo, que a faz um ser pensante – é castigado com um exílio de si mesmo: primeiro perde, um a um, os entes que ama, depois, a pátria, a própria saúde e sanidade, perseguindo sua criação por todo o mundo, até seu próprio aniquilamento.

A Criatura, muitas vezes, demonstra muito mais sensibilidade que Victor, constantemente admirando a natureza, surpreendendo-se com o mundo. É mesmo interessante a escolha que Shelley fez de leituras para a ele – em especial o épico de John Milton, O Paraíso Perdido.

Não haveria como não identificar-se a Criatura, abandonada pelo Criador, vagando sem ter um igual, disposto a vingar-se em toda a criação humana com o Lúcifer que arremessado do Paraíso, decide levar Adão e Eva à Queda, e, ao mesmo tempo em que planeja sua derrocada, lhes inveja o mundo.

E, se a Criatura é o Anjo Caído, Victor pode ser visto como a imagem do Doutor Fausto, que vende sua alma em troca de conhecimento.
Acabou! Palavra tola! Acabou por quê?
Acabou e depois nada, a indiferença plena!
De que serve o eterno criar,
Se a criação em nada acabar?
"Acabou" o que ler desse verbo?
é como se não tivesse existido
E ainda assim gira em círculos, tivesse ele sido.
Pois o eterno vácuo eu teria preferido!
Ambos os personagens perseguiram quase que a vida inteira um ideal: o conhecimento e por isso, pagaram um preço: a própria alma. Desejaram o conhecimento pelo conhecimento, ainda que com o intuito de fazer o bem e terminam subjugados por sua soberba, pela ambição desmedida.

E é interessante perceber que essa ambição deles não se equivale propriamente à poder; eles não procuram governar outros homens, usar seu intelecto para colocar-se numa posição elevada, de mando... tanto Fausto quanto Frankenstein procuram o conhecimento, mas também brincam de Deus, com o destino de criaturas humanas. Fausto seduz Margarida e isso a leva à morte - tem a parte que ele traz Helena de volta dos mortos, mas, francamente, essa é a parte mais fraca do livro de Goethe; Frankenstein cria uma Criatura, brinca com a centelha divina e por isso também é levado à morte - bem como todos aqueles que ama.

Frankenstein, enfim, não é uma leitura simples, superficial, ainda que muitos teimem em fazê-la assim. Quando olhamos o abismo, às vezes o abismo nos olha de volta. E é isso que representa essa história: um olhar para o abismo da condição humana, do que representam nossos atos e escolhas e as conseqüências que elas podem nos trazer.


A Coruja


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