3 de maio de 2011

Desafio Literário 2011: Maio - Livro-Reportagem || O Queijo e os Vermes



Ao pesquisar julgamentos inquisitoriais, o historiador Carlo Ginzburg deparou-se com um excepcionalmente detalhado. Tratava-se do depoimento de um moleiro do norte da Itália, que no século XVI ousara afirmar que o mundo tinha origem na putrefação. Graças ao fascínio dos inquisidores pelas crenças desse moleiro, Ginzburg pôde reconstituir a trajetória de Menocchio num texto claro e atraente, e desembocar em uma hipótese geral sobre a cultura popular da Europa pré-industrial.

E começamos mais um mês e mais um tema do Desafio Literário 2011. Os livros que escolhi dessa vez passam todos pelo mesmo tema e, claro, não se trata de uma coincidência: investigações históricas.

Iniciamos então com o pé direito, com o absolutamente delicioso O Queijo e os Vermes de Carlo Ginzburg. Esse livro está na minha lista de leituras desde a época do colégio, continuou lá durante a faculdade e esperou ainda mais um pouco até que um belo dia chega um pacote da Régis com ele no meio. Ia começá-lo no final do ano passado, mas aí apareceu a lista de temas do DL e me segurei até agora. Quando finalmente comecei, não consegui mais largá-lo, emendei com a leitura do Os Andarilhos do Bem do mesmo autor e estou neste exato instante pesquisando o preço de outros livros dele.

O Queijo e os Vermes é um livro curioso, sobre um personagem mais curioso ainda. O moleiro Menocchio é um indivíduo do povo que sabe ler, escrever e interpretar - o que era algo quase impensável numa região rural da Itália em plena Idade Média.

Não estou sendo preconceituosa ou elitista. Tenho plena consciência de que a Idade Média não foi a Era de Trevas e Ignorância que nos foi impingida no colégio – isso foi intriga da oposição, digo, dos renascentistas. Mas viver nesse tempo também não era nenhum passeio no parque, e se educação não era uma coisa comum nem mesmo entre a elite, que dirá de um moleiro numa aldeia minúscula de uma região inteiramente agrícola.

É difícil, assim, de entender como Menocchio teve acesso aos livros e idéias que o levaram a criar uma cosmogonia própria, que ecoa panteísmo, mitologia hindu, princípios filosóficos, tolerância religiosa e morais e sociais totalmente deslocados numa sociedade feudal.

É pela capacidade de usar um arcabouço principiológico muito além de sua posição social que Menocchio chamou a atenção do Tribunal do Santo Ofício em 1583 e, quatro séculos depois, o porquê desse processo ter chamado a atenção de Ginzburg.

Tenho uma amiga que é estudante de História. Um belo dia, estávamos conversando não sei bem sobre o quê quando surgiu o assunto desse livro. Ela observou que não entendia porque O Queijo e os Vermes fazia tanto sucesso fora do círculo de ‘iniciados’ – estudantes e historiadores de uma forma geral. Afinal, trata-se de uma investigação histórica que analisa dois processos jurídicos realizados pela Inquisição, não sobre sabás demoníacos, mas simplesmente sobre o caráter herético ou não de uma série de afirmações feitas por um moleiro.

À época, não o tinha lido ainda, de forma que nada pude argumentar. Agora, contudo, tenho uma boa razão para esse gosto – que de certa forma me foi inspirado pela própria investigação feita no livro -: a história de Menocchio se conforma a muitas leituras, da mesma forma que Menocchio conformava tudo o que lia à sua visão, ultrapassando inclusive todos os limites de interpretação destes textos.

Aliás, é uma referência cruzada interessante relacionar esse livro ao Superinterpretação e Interpretação de Eco, porque essa questão dos limites interpretativos e até onde Menocchio vai para fazer com que os livros a que teve acesso – a Bíblia em vulgata, ou seja, no vernáculo local e não em latim; o Decamerão numa edição não censurada, as viagens de sir John Mandeville, uma coletânea de evangelhos apócrifos, tratados teológico-filosóficos e até, acredita-se, um Alcorão – se adaptem a um conjunto de crenças pré-cristãs que permeia ainda a cultura e a sociedade da qual faz parte, junto às suas próprias deduções.

A bem da verdade, houve momentos em que quase rolei de rir com a obstinação de Menocchio, que simplesmente descarta aquilo que não interessa à sua ‘doutrina’, não importa quão óbvio ou quão necessário aquele detalhe seja para a completude das teorias apresentadas nesses livros. É quase como se ele brincasse de cortar palavras a esmo de uma página escrita, de forma a montar frases que sejam o exato oposto do sentido geral da folha de onde foram tiradas.

No meio dessa confusão hermenêutica, contudo, a grande verdade é que não importa tanto assim como Menocchio chegou às suas conclusões – que é o objetivo confesso do livro e o interesse dos historiadores. O que importa é que a despeito de seu isolamento – professar idéias diferentes daquelas da maioria, especialmente numa época em que você pode virar churrasquinho se o fizer, não é exatamente a melhor maneira de se tornar popular em sua vila – e do risco que corria frente às acusações pelas quais foi investigado, Menocchio teve coragem de expor suas idéias.

Mais que isso: ele ansiava quase desesperadamente por uma oportunidade como essa, em que poderia falar diante de pessoas que pudessem ouvi-lo e compreendê-lo.

Lemos amplamente O Queijo e os Vermes não para compreender e interpretar uma determinada época, mas porque seu protagonista tem traços de uma verdadeiro herói. Porque ele faz algo impensável, difícil mesmo nos dias de hoje: eleva-se acima de seu status e daquilo que era esperado dele para chocar e quebrar dogmas. Porque ele questiona. E porque é um dos homens mais corajosos – ou loucos – com que você já cruzou.

Ginzburg, a despeito de estar escrevendo um estudo profundo para um público específico, jamais cai na armadilha dos tecnicismos. Pelo contrário, ele acha que essa é uma história que vale à pena ser contada, e deixa óbvio ao longo de todo o livro sua surpresa, seu prazer, sua curiosidade em relação à figura do nosso bom moleiro.

Ele compartilha conosco sua admiração.

Eis porque O Queijo e os Vermes não é um livro exclusivamente para iniciados, porque vale à pena ler a história de Menocchio frente aos seus consternados inquisidores.

Nota: 5
(de 1 a 5, sendo: 1 – Péssimo; 2 – Ruim; 3 – Regular; 4 – Bom; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: O Queijo e os Vermes
Autor: Carlo Ginzburg
Tradução: Maria Betânia Amoroso
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2006
Número de páginas: 256



A Coruja


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3 comentários:

  1. Puxa, adorei!!!
    Já tinha visto este livro, cheguei, varias vezes, a segurá-lo um pouco na livraria, mas depois .. ele ficava na prateleira ( numa estante especifica da coleção ) Na próxima compra vou incluí-lo. Muito linda sua resenha.Adorei!!!
    Beijos

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  2. Resenhaço!!! O livro ganhou nota máxima, hein? Pareceu-me realmente uma leitura enriquecedora. Dica anotada!

    Bjs

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