3 de novembro de 2010

Desafio Literário 2010 - Novembro: Escritor Português



Quem dá mostras da mais profunda alegria é o jumento. Nascido e criado em terras de sequeiro, alimentado a palha e a cardos, com a água racionada ou quase, a visão que se lhe oferecia tocava o sublime. Pena não haver ali alguém que soubesse interpretar os movimentos das suas orelhas, essa espécie de telégrafo de bandeiras com que a natureza o dotara, sem pensar o afortunado bicho que chegaria o dia em que quereria expressar o inefável, e o inefável, como sabemos, é precisamente o que está para lá de qualquer possibilidade de expressão.


Este foi o segundo livro que li do Saramago (já posso imaginar a Régis dizendo ao fundo *heresia!*). O primeiro foi Intermitências da Morte, com o qual entendi perfeitamente toda a festa feita ao autor (ele é realmente genial) mas onde encrenquei severamente com a falta de vírgulas.

Sério, os períodos do Saramago são gigantescos, dez linhas sem uma vírgula - para ler em voz alta aquilo, é preciso ter muito fôlego (ao menos se quiser respeitar a pontuação original do autor...).

Não notei em Caim, que li para o Desafio Literário, a mesma questão... Ou talvez eu tenha suprido as vírgulas inconscientemente ou ainda, quem sabe, uma vez que já conhecia o autor, isso não veio como uma grande surpresa. Independente da pontuação, o fato é que mantenho o que disse antes.

Saramago é mesmo genial.

Em Caim, ele retoma histórias do Antigo Testamento sob o ponto de vista de Caim, o irmão assassino de Abel. Deus é mostrado como uma criatura falha, que volta e meia recebe lições de moral de Caim, com quem, aliás, gosta muito de debater teologia.

Para mim, os pontos altos do livro são os diálogos de Caim e Deus, ou os raciocínios de Caim sobre a falibilidade de um deus sanguinário, às vezes irracional, que é aquele mostrado no Antigo Testamento.

Não, sério, qualquer um que tenha lido o Antigo Testamento sente dificuldades em casar a idéia de Deus Pai do Novo Testamento com aquele que aparece nos primeiros livros da Bíblia, onde nenhuma falha é perdoada, o sangue corre à toa e você nunca tem certeza se amanhecerá no próximo dia com uma bem-vinda chuva de maná ou se vai se acabar em cinzas e enxofre.

Em seus melhores momentos, Caim me lembrou muito o tom de O Túmulo do Fanatismo e Questões sobre Milagres do Voltaire, especialmente quando vemos o fanatismo cego de personagens como Josué e Noé. Há de se levar em conta, claro, que Saramago era ateu e algumas de suas concepções são, elas também, radicais.

De uma forma ou de outra, apesar do tema religioso, foi um livro fácil e leve, que li de uma sentada só e que me deixou curiosa para dar uma olhada no Evangelho segundo Jesus Cristo; para muitos a obra-prima de Saramago e que cuida, pelo que entendi do que li em alguns lugares, da mesma temática.

No final das contas, acho que superei as vírgulas...

Nota: 5
(de 1 a 5, sendo: 1 – Péssimo; 2 – Ruim; 3 – Regular; 4 – Bom; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Caim
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2009
Número de páginas: 176

____________________________


E aproveitando o ensejo já que estamos por aqui, não deixem de participar da pesquisa de opinião para o balanço de final de ano de D. Lulu!





A Coruja


____________________________________

 

7 comentários:

  1. Muito Boa Resenha.
    Não consigo gostar de Saramago- já li uns quatro livros dele e foi tudo na base do sacrificio. As virgulas me fazem muita falta, sabe?

    ResponderExcluir
  2. Preciso ler Saramago, mas vou comecar por Ensaio sobre a Cegueira, fiquei entusiasmada com seu post .... beijos

    ResponderExcluir
  3. tou com o evangelho segundo jc na reserva pro desafio, mas não sei se terei tempo para ler nesse final de ano.

    depois de ler sua resenha bateu vontade de fazer um esforço extra, hehehehe...

    ResponderExcluir
  4. É engraçado como todos os que já postaram o desafio de novembro escolheram Saramago!!!

    Quanto a Caim, não consigo gostar desse livro, não que eu seja contra releituras da bíblia (muito pelo contrário, até admiro algumas), mas o texto de Caim não e é agradável, não só em conteúdo quanto em técnica. Não consigo acreditar que o escritor de "Ensaio sobre a Cegueira" escreveu esse livro.

    Ainda assim, gostei da sua leitura, e assim como você a ausência de virgulas me incomoda, mas já me acostumei.

    ResponderExcluir
  5. Oi, Luciana!
    Pela temática, eu não o leria com neutralidade e isenção uma vez que sou Cristã.

    Com relação a leitura das obras do autor, concordo. Ler Saramago requer fôlego.

    Beijocas

    ResponderExcluir
  6. Otima resenha, estou bem curiosa a respeito desse livro, mas ainda não me animei a ler. Alias nunca li nenhum obra do autor, um erro que deve ser reparado urgentemente!

    ResponderExcluir
  7. Saramago é sempre uma surpresa num primeiro momento. O estilo do cara é assim mesmo, ele passa por cima da pontuação na buena.
    Mas vc pegou direitinho o espírito: no segundo titulo que vc pega já não confunde tanto. Questão de assimilar o ritmo...
    Gêeeeenio.
    Bjssss

    ResponderExcluir

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog