11 de setembro de 2010
Memória: meu espírito é minha igreja
Naquele dia, eu teria de passar até de tarde na escola: estávamos ensaiando no coral para o Festival de Setembro, e tinha aula de redação também, de forma que, ao terminarem as aulas da manhã, eu saí para almoçar num restaurante há algumas quadras do colégio.
Estranhei de cara quando entrei no restaurante – o silêncio e a atenção quase exagerada de todo mundo na televisão. Por alguns instantes, pensei que era algum filme ou coisa do tipo: a cena do avião chocando-se contra o edifício era surreal demais para se encaixar no termo de “realidade”.
Então notei as legendas no canto inferior da tela.
Mesmo depois disso, era difícil compreender; mais difícil ainda acreditar.
Nove anos se passaram desde aquele 11 de setembro, e quanto podemos realmente dizer, mudou desde então? Bin Laden continua solto, o mundo continua cheio de gente intolerante – seja no Ocidente ou no Oriente – e, de uma maneira geral, a raça humana continua fazendo de tudo para assegurar sua destruição.
Temos hoje nos Estados Unidos aquele simpático pastor que pensa promover um churrasco de Alcorão para marcar a data; no Irã suspenderam a sentença de apedrejamento de Sakineh Mohammadi, mas isso não significa, claro, que ela esteja completamente fora de perigo.
Nosso magnânimo presidente até chegou a oferecer asilo a Sakineh, a fim de ajudar o companheiro Mahmoud Ahmadinejad a se livrar do “incômodo” – depois, é claro, de defender que, no interesse da legalidade e da soberania, ele não poderia se pronunciar contra a violação dos direitos humanos pelo governo de Teerã.
Em 1993, Samuel Huntington publicou um artigo na revista Foreign Affairs, chamado The Clash of Civilizations?, no qual desenvolvia o tema de que a principal fonte de conflito no novo século não seria primariamente ideológica ou econômica, mas sim que as grandes divisões da humanidade e a principal fonte de conflito seria cultural. Os conflitos, dizia ele, não ocorreriam mais entre Estados Nacionais, mas entre nações e grupos de diferentes civilizações.
Mais tarde, Huntington desenvolveu o tema do artigo em um livro, no qual tratou das questões em torno das quais divergem o Ocidente e as outras civilizações – notadamente, o continente asiático e o bloco islâmico: universalidade versus relativismo cultural com respeito a direitos humanos, a relativa prioridade dos direitos econômicos e sociais versus os direitos políticos e civis e a tendência a condicionar politicamente a salvaguarda destes direitos à assistência econômica.
Se cada cultura e civilização possui o seu próprio discurso acerca dos direitos humanos, de acordo com suas circunstâncias histórico-sociais; isso significa que estes direitos variam de acordo com os padrões morais e culturais de cada sociedade.
Sob a teoria do relativismo dos direitos humanos, faz perfeito sentido que o Irã decida que morte por apedrejamento é uma boa pena institucional... como é perfeitamente desculpável e compreensível a mutilação de mulheres na África, o desrespeito às liberdades fundamentais na China e assim por diante.
A questão não é de simples resolução. Há que se lembrar que na tradição de tais civilizações – África, China, Oriente Médio – a comunidade e as obrigações têm precedência sobre o indivíduo. A ética deles está fundamentada numa idéia de coletividade, diferente do Ocidente, que desde os tempos do Iluminismo, colocou o indivíduo como a pessoa a que os direitos são dirigidos.
Então a ética também é relativa? Qual o real valor do princípio da dignidade humana?
Queimar livros (como apedrejar pessoas) não é uma idéia nova. Tampouco a intolerância. E essas são características de todos os povos e de todas as religiões, e não exclusiva de apenas um hemisfério do globo. Como tão bem diz Thomas Paine em Idade da Razão,
O que fazermos então? Virarmos todos ateus? Banirmos as identidades culturais de cada povo, de forma que sejamos todos iguais, todos saídos de uma mesma fôrma, quase que apenas esperando os códigos de barra que atestam nossa produção em massa? Cultivar a tolerância mesmo diante de ações e atitudes que atingem aquilo que faz de nós humanos? Mas o que somos, humanos? O que significa ser humano? O que nos torna especiais, melhores que os animais, quando somos a única espécie que mata a seus semelhantes por motivos além de sobrevivência, alimentação, abrigo?
Somos o que somos e não há muito mais que possamos fazer além de tentar cumprir a nossa parte e torcer para que o resto do mundo se mostre um pouco mais racional do que se tem mostrado.
Talvez seja isso que nos torne humanos, ao final: a capacidade de ainda ter esperança em nós mesmos, apesar de tudo.
Que essa esperança seja recompensada um dia.
Estranhei de cara quando entrei no restaurante – o silêncio e a atenção quase exagerada de todo mundo na televisão. Por alguns instantes, pensei que era algum filme ou coisa do tipo: a cena do avião chocando-se contra o edifício era surreal demais para se encaixar no termo de “realidade”.
Então notei as legendas no canto inferior da tela.
Mesmo depois disso, era difícil compreender; mais difícil ainda acreditar.
Nove anos se passaram desde aquele 11 de setembro, e quanto podemos realmente dizer, mudou desde então? Bin Laden continua solto, o mundo continua cheio de gente intolerante – seja no Ocidente ou no Oriente – e, de uma maneira geral, a raça humana continua fazendo de tudo para assegurar sua destruição.
Temos hoje nos Estados Unidos aquele simpático pastor que pensa promover um churrasco de Alcorão para marcar a data; no Irã suspenderam a sentença de apedrejamento de Sakineh Mohammadi, mas isso não significa, claro, que ela esteja completamente fora de perigo.
Nosso magnânimo presidente até chegou a oferecer asilo a Sakineh, a fim de ajudar o companheiro Mahmoud Ahmadinejad a se livrar do “incômodo” – depois, é claro, de defender que, no interesse da legalidade e da soberania, ele não poderia se pronunciar contra a violação dos direitos humanos pelo governo de Teerã.
Em 1993, Samuel Huntington publicou um artigo na revista Foreign Affairs, chamado The Clash of Civilizations?, no qual desenvolvia o tema de que a principal fonte de conflito no novo século não seria primariamente ideológica ou econômica, mas sim que as grandes divisões da humanidade e a principal fonte de conflito seria cultural. Os conflitos, dizia ele, não ocorreriam mais entre Estados Nacionais, mas entre nações e grupos de diferentes civilizações.
Mais tarde, Huntington desenvolveu o tema do artigo em um livro, no qual tratou das questões em torno das quais divergem o Ocidente e as outras civilizações – notadamente, o continente asiático e o bloco islâmico: universalidade versus relativismo cultural com respeito a direitos humanos, a relativa prioridade dos direitos econômicos e sociais versus os direitos políticos e civis e a tendência a condicionar politicamente a salvaguarda destes direitos à assistência econômica.
Se cada cultura e civilização possui o seu próprio discurso acerca dos direitos humanos, de acordo com suas circunstâncias histórico-sociais; isso significa que estes direitos variam de acordo com os padrões morais e culturais de cada sociedade.
Sob a teoria do relativismo dos direitos humanos, faz perfeito sentido que o Irã decida que morte por apedrejamento é uma boa pena institucional... como é perfeitamente desculpável e compreensível a mutilação de mulheres na África, o desrespeito às liberdades fundamentais na China e assim por diante.
A questão não é de simples resolução. Há que se lembrar que na tradição de tais civilizações – África, China, Oriente Médio – a comunidade e as obrigações têm precedência sobre o indivíduo. A ética deles está fundamentada numa idéia de coletividade, diferente do Ocidente, que desde os tempos do Iluminismo, colocou o indivíduo como a pessoa a que os direitos são dirigidos.
Então a ética também é relativa? Qual o real valor do princípio da dignidade humana?
Queimar livros (como apedrejar pessoas) não é uma idéia nova. Tampouco a intolerância. E essas são características de todos os povos e de todas as religiões, e não exclusiva de apenas um hemisfério do globo. Como tão bem diz Thomas Paine em Idade da Razão,
Eu não acredito no credo professado pela igreja judaica, pela igreja romana, pela igreja turca, pela igreja protestante, nem por nenhuma igreja que conheço. Meu espírito é minha igreja. Todas as instituições eclesiásticas nacionais, quer sejam judaicas, cristãs ou turcas, não me parecem outra coisa senão invenções humanas, criadas para aterrorizar e escravizar a humanidade e monopolizar poder e vantagem.
O que fazermos então? Virarmos todos ateus? Banirmos as identidades culturais de cada povo, de forma que sejamos todos iguais, todos saídos de uma mesma fôrma, quase que apenas esperando os códigos de barra que atestam nossa produção em massa? Cultivar a tolerância mesmo diante de ações e atitudes que atingem aquilo que faz de nós humanos? Mas o que somos, humanos? O que significa ser humano? O que nos torna especiais, melhores que os animais, quando somos a única espécie que mata a seus semelhantes por motivos além de sobrevivência, alimentação, abrigo?
Somos o que somos e não há muito mais que possamos fazer além de tentar cumprir a nossa parte e torcer para que o resto do mundo se mostre um pouco mais racional do que se tem mostrado.
Talvez seja isso que nos torne humanos, ao final: a capacidade de ainda ter esperança em nós mesmos, apesar de tudo.
Que essa esperança seja recompensada um dia.
A Coruja
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Sobre
Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Nossa, já são 9 anos? O tempo realmente voa...
ResponderExcluirDeixando meu lado de teórico da conspiração de lado, vou dizer o que mudou no mundo após os atentados ao WTC, no meu ponto de vista: a intolerância venceu.
Intolerância religiosa, étnica, social. Guerra, sanções econômicas, paranóia... tudo se multiplicou.
As pessoas não mais se entendem.
E a causa de tudo? As próprias pessoas. Enquanto os humanos existirem, o mundo será assim. Para haver um desentendimento, basta que existam 2 pontos de vista, e o que acontece quando se existem uns 6 bilhões de pontos de vista diferentes?
Esta é toda ela uma situação difícil de ultrapassar, e ainda mais difícil de entender na totalidade.
ResponderExcluirLembro-me de ter uma professora de Filosofia que dizia que a paz mundial tornaria os seres humanos em formigas, num gigantesco formigueiro. Mas um bom bocado de tolerância a mais melhorava muitos aspectos (se isso não fosse tão utópico).
Eu estava na 1ª ou 2ª série, tinha faltado à aula (acho) e queria assistir os desenhos da TV Globinho.
ResponderExcluirMorri de tédio aquela manhã, pq só passava as imagens daqueles prédios soltando fumaça.
No fim das contas zapeei os canais até achar um que não estivesse mostrando aquilo.
Eu ainda era muito pequeno para entender o quão grande era aquilo, e ouso dizer q até hoje não entendi direito.
Só pra constar, sou o Diego, mas meu navegador não está deixando colocar nome e url --'
ResponderExcluirMinha pequena coruja, o melhor caminho é sempre o do meio.
ResponderExcluirNão é ficar em cima do muro, mas nenhum extremo lhe dá a visão do todo ;)