4 de setembro de 2009

Terry Pratchett (Parte II) - Um mundo, uma tartaruga e quatro elefantes...





O mundo criado por Pratchett é certamente peculiar, cheio de detalhes meio malucos e ainda assim inteiramente lógicos. Há muito que se poderia falar dele, mas, em vez de começar a destrinchar a coisa toda como se todo mundo aqui fosse um grande entendido no assunto, acho que a melhor maneira de começar seria deixando o próprio Pratchett explicar o Discworld.


Se eu tivesse recebido uma moeda de um penny para cada uma das vezes em que alguém me perguntou de onde tirei a idéia do Discworld, eu teria – espere um pouco – 4,67 libras.

Enfim, a resposta é que a idéia estava rodando por aí e não parecia ter dono.

O mundo avança pelo espaço sobre a carapaça de uma tartaruga. É um dos grandes mitos antigos, encontrado onde quer que homens e tartarugas interajam; os quatro elefantes foram um requinte indo-europeu. Fazia séculos que a idéia pairava no quarto de despejo das lendas. Tudo que precisei fazer foi pegá-la e sair correndo antes que os alarmes disparassem.

(...)

O Discworld não é um universo fantástico coerente. A geografia é imprecisa; a cronologia, duvidosa. Um pequeno círculo de luz viajando no gelado infinito acabou virando a morada de piadas rebeldes e dos últimos acasos.
(A Cor da Magia - Terry Pratchett)


Eis então que nos vemos diante da grande A'Tuin, a Tartaruga, "num distante conjunto de dimensões de segunda mão”. Mas de qual raios mitologia terá Pratchett arranjado este astronômico quelônio?

Ele mesmo dá a pista em seu prefácio. A mitologia hindu possui nada menos que duas tartarugas ancestrais: Akupara e Chukwa. A primeira carregaria a terra e o mar em sua carapaça. A segunda era sua ancestral: a primeira e mais velha das tartarugas, suportando um elefante, Maha-pudma que, por sua vez, carrega a Terra enquanto Chukwa nada no oceano primordial de leite, o Ksheera Sagara.

Sendo o mundo tão diferente do nosso, em termos de astronomia, física e ciências naturais de uma maneira geral, Discworld rege-se por suas próprias leis da física... que, por sua feita, estão muito mais vinculados ao poder da crença e da causalidade narrativa que da gravidade.

Em suma... o fã absoluto de Tolkien aprende quenya. E o fã absoluto de Pratchett tem que voltar para a escola fundamental para estudar todo tipo de efeito quântico...

Só para ficar no óbvio... Se o mundo do Disco está em cima de uma tartaruga que navega pelo universo, a primeira conseqüência lógica disso e que nunca as estrelas permanecem tempo suficiente em um mesmo lugar para que façam algum sentido. Os mapas astronômicos de Discworld variam de acordo com o tempo e o rumo da Grande A’Tuin.

Enfim, Pratchett criou toda uma terminologia e uma ciência próprias para o equilíbrio de seu mundo e todas elas têm suas explicações e fundamentos na ciência real (se é que podemos taxar isto ou aquilo de real ou irreal. Quem sabe? Podemos viver sob a ditadura de um programa de computador...).

Essa qualidade é um os trunfos de sua série, sem dúvida alguma. E bem gostaria eu de passar as próximas horas discutindo todos os conceitos mais absurdos do Disco com vocês (como a velocidade quase parando da luz ou a oitava cor do arco-íris, a octarina). Contudo, reproduzir tudo aqui seria não apenas complicado, como também estragaria a leitura para aqueles que nunca leram Pratchett, mas que depois deste artigo, decidiram experimentar (e nada me faria mais feliz que receber um comentário dizendo que comprou o primeiro livro dele depois de ler essa minha imensa propaganda institucionalizada... e essa é apenas a parte 2 de 5...).

Há, porém, algumas entradas que eu gostaria de discutir com vocês. Começando por...

1. Onde tudo começou?

Existem duas teorias no Disco acerca das origens de seu mundo. A primeira, do “Big-Bang” passa pela importante questão do sexo da grande A’Tuin – questão esta que divide os astrozoológos mais respeitados -: A’Tuin rastejaria de O Lugar da Origem até A Época do Acasalamento, assim como todas as outras estrelas que também são carregadas por tartarugas gigantes, onde (e quando) ela acasalaria com outra de sua espécie “com enorme paixão e por pouco tempo, pela primeira e última vez”. Deste encontro nasceriam novas tartarugas e, com elas, novos mundos.

Essa é a teoria preferida pelos religiosos e os eventos finais de A Luz Fantástica parecem concordar com ela.

A segunda teoria afirma que A’Tuin veio de lugar nenhum e continuará a se arrastar de maneira regular, em marcha constante, rumo a lugar nenhum para todo o sempre. Os acadêmicos preferem esta teoria (alguém mais percebeu a ironia?) e no livro Eric há pistas que levam a esse entendimento.

O que nos faz chegar à conclusão de uma espécie de teoria mista: houve uma Tartaruga Primordial que surgiu do nada pelas mãos do Criador, que estava se sentindo num humor particularmente bizarro naquele dia da criação. Talvez o Criador tenha criado duas, um macho e uma fêmea; talvez a primeira Tartaruga fosse uma fêmea capaz de colocar ovos por partenogênese e depois que os irmãos nasceram na primeira ninhada, iniciou-se o ritual do Big-Bang.

Claro que é especular sobre isso é como especular sobre o sexo dos anjos ou se Adão e Eva tinham umbigo... Cada um tem sua teoria...

2. A força gravitacional da magia

Se na Terra temos a lei da gravidade a reger todos os corpos dentro de nossa atmosfera, no Discworld, temos as leis da magia, tão elemental quanto aquela para o funcionamento e a própria essência do Disco.

É a barreira de magia – que faz as vezes de estratosfera, camada de ozônio e o diabo a quatro – que permite a quebra da realidade responsável pela existência de um planeta em forma de pizza no casco de uma tartaruga. Em suma, magia é uma relativa ‘ausência de realidade’.

Dentro do mundo de Pratchett, a magia tem muito mais a ver com teorias atômicas que com qualquer tipo de varinha de condão – a magia é formada de partículas, sendo sua partícula fundamental um thaum, que, por sua vez, pode ser quebrado em outras partículas em processos que desenvolvem grande energia.

Alguém aí pensou em fusão do átomo?

A idéia de teletransporte passa pelo princípio da incerteza, que consiste num enunciado de física quântica dado por Heisenberg. Cara, é algo incrível que eu esteja me lembrando dessas coisas que aprendi no primeiro ano por contra de Pratchett. Estou tentando descobrir qual de nós dois é mais nerd... Se ele, por criar isso ou se eu, por lembrar com quase reverência literária algo que eu detestava...

Mas a questão da magia não acaba por aqui, pois ela se desdobra em dois outros importantes conceitos: o poder da crença e da causalidade narrativa.

3. O poder da crença e a causalidade narrativa

O véu de realidade é tão fino no Disco que os eventos e as pessoas acabam por ser fortemente afetadas pela crença.

A ‘cabeçologia’ das bruxas, por exemplo, que Vovó Cera do Tempo tanto gosta, é um reflexo deste fato. Mais que dar poções e remédios, é preciso convencer o indivíduo, num nível bastante profundo, que aquilo funcionará (mesmo que o ‘aquilo’ seja apenas e unicamente água de chuva). É algo como o feito placebo, com a diferença de que a da pessoa é que faz a magia.

Podemos ver esse princípio funcionando a todo vapor no livro Hogfather - que ainda não foi lançado no Brasil -: a crença está se acumulando de tal forma que, no momento em que alguém pensa em alguma criatura absurda e mitológica, como o anão que rouba unhas dos pés, elas passam imediatamente a existir.

É a crença também que dá aos deuses seus poderes (algo que podemos ver em Small Gods e Hogfather - inesquecível é o surgimento do Deus das Ressacas...) e que faz com que determinados entes mitológicos que simbolizam conceitos abstratos – tais como Morte – assumam personificações antropomórficas.

Em suma, se as pessoas acreditam o suficiente, aquilo no que acreditam existirá.

A causalidade narrativa, por sua vez, significa que tudo acontece porque está numa história – e isso está brilhantemente relatado em Quando as Bruxas Viajam. Histórias têm poder e, como tal, podem moldar o Destino de seus personagens. Se uma história ou lenda é contada com certa habitualidade e há pessoas suficientes que acreditem nela, ela se tornará então realidade e está é a Lei da Causalidade Narrativa.

4. Outras dimensões

Existem diversas dimensões paralelas ao Disco – afinal, Discworld está num ponto do universo em que o tecido da realidade é muito fino e frágil e não é difícil que, puxando o suficiente, arranjemos buracos nessa textura, abrindo passagens para outros domínios não muito... agradáveis.

Se há algo de inominável, terrível, tenebroso e absolutamente assustador é o Calabouço das Dimensões. Não foi uma única vez que as criaturas do Calabouço das Dimensões, inspiradas em Lovecraft (e só por aí você já pode começar a ficar arrepiado), tentaram atravessar para o Mundo do Disco – em Direitos Iguais, Ritos Iguais temos alguns momentos de terrível expectativa e, mais para frente, salvo engano, em O Oitavo Mago, o coitado do Rincewind acaba indo parar lá.

Há, é claro, alguns diversos Infernos, com detalhes emprestados de Dante e Milton, além dos Domínios de Morte, onde vivem Morte e Albert (além de, por algum tempo, a filha e o aprendi de Morte, que depois decidem ir embora, se casam e, em algum ponto mais à frente, têm uma filha, Susan, que será protagonista de várias histórias).

Mas o meu favorito é o Espaço L, uma dimensão que conecta cada livraria e depósito de livros do universo, uma conseqüência da equação “conhecimento = poder = energia = matéria = massa” e massa altera o espaço de forma que livrarias são lugares muito perigosos para os não-iniciados...

(Continua...)


A Coruja



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2 comentários:

  1. Aaaah, tá ficando ótimo! Adoro esses conceitos físicos e extra-meta-zeta-físicos do Pratchett...a versão dele pra teoria do "Big Bang" é infame, mas genial!
    Meus conceitos favoritos são o do poder da crença e a lei da causalidade narrativa, que aparecem sempre com força nos livros das bruxas e da Morte. Aquilo que a Morte explica pra Susan no meio do Hogfather, que os humanos precisam de fantasia para serem humanos e que precisamos das pequenas mentiras para acreditar nas mentiras maiores, eu acredito que é fundamentalmente e essencialmente correto (e demonstrado por tanta gente como Jung, Joseph Campbell, etc). Histórias tem poder...tanto aquelas que lemos, quanto aquelas que decidimos viver.
    E o Espaço L é uma idéia genial, e eu havia me esquecido dela! O bibliotecário nunca me perdoaria..Ook?
    Quando você falou das outras dimensões eu lembrei imediatamente das fadas e elfos que aparecem em Lords and Ladies e no Wee Free Men. Acho que esses são meus dois livros favoritos, justamente por causa da maneira como o Terry retrata os elfos como criaturas vazias e irreais, constrastando com a cabeçologia pé-no-chão das bruxas e mostrando que a realidade seca e cruel é sempre melhor que a fantasia vazia e irreal. Se tem uma lição que eu preciso aprender, é essa :)
    E enquanto eu digitava isso, lembrei de Small Gods, que também fala sobre crenças, deuses que precisam de fiéis, fiéis que não precisam de deuses e várias outras coisas legais.
    E esse comentário deve ter ficado enorme oO
    Abraços, Lulu, e fico aguardando os próximos posts!

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  2. Adorei os seus comentários sobre o Mundo do Disco, Terry e tudo o mais... uma delicia... Gosto de dizer que atualmente o meu autor favorito é Terry Pratchett e sempre que leio ele me lembro de todas as discursões infinitamente chatas do mundo dos historiadores, não lembro de física e derivativos pq não é meu dominio, mas filosofia e o diabo a quatro eu lembro muito e adoro a forma debochada como ele aborda temas que mechem com a cabeça dos acadêmicos... E vc tira onda falando dele... Ah, estou adorando conhecer seu blog... muito show...

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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

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