21 de fevereiro de 2018
Dando a Volta ao Mundo em 80 Dias
Quando completei dez anos, D. Mãe me levou para conhecer a famosa ‘Livro 7’, livraria no centro do Recife que foi um marco cultural da cidade e, entre as décadas de 70 e 80, a maior da América Latina (de acordo com o Guinness). Nós tínhamos nos mudado para Pernambuco naquele ano e essa foi a primeira e última vez que visitei o espaço. A Livro 7 já estava em declínio à época, mas lembro de ter me apaixonado de cara assim que entrei na loja.Tipicamente inglês, Phileas Fogg talvez não fosse londrino. Nunca foi visto na Bolsa, nem no Banco, nem em nenhuma das repartições da City. Tampouco as marinas ou as docas de Londres haviam recebido navio cujo armador fosse Phileas Fogg. Esse gentleman não figurava em nenhum conselho de administração. Seu nome nunca ecoara numa banca de advogados, nem no Temple, nem em Lincoln’s Inn, nem em Gray’s Inn. Nunca sofrera nenhum processo nem no Tribunal do Chanceler, nem no da Rainha, nem no Exchequer, ou qualquer tribunal eclesiástico. Não era nem industrial, nem negociante, nem comerciante, nem agricultor. Não fazia parte nem do Instituto Real da Grã-Bretanha, nem do Instituto de Londres, nem do Instituto dos Manufatureiros, nem do Instituto Russell, nem do Instituto Literário do Ocidente, nem do Instituto dos Advogados, nem tampouco do Instituto de Artes e Ciências Reunidas, patrocinado diretamente por Sua Graciosa Majestade. Não pertencia enfim a nenhuma das incontáveis agremiações que pululam na capital da Inglaterra, desde a Sociedade de l’Armonica até a Sociedade Entomológica, criada com a finalidade precípua de dar cabo dos insetos nocivos.
Phileas Fogg era membro do Reform Club, ponto-final.
D. Mãe disse que eu podia escolher qualquer livro como presente de aniversário. Eu já sabia exatamente o que queria: os dois volumes de Dom Quixote de La Mancha, história que tinha me enfeitiçado quando li a adaptação feita por Monteiro Lobato (sempre ele…). Não lembro em que momento o senhor de cabeça branca entabulou conversa, nem o que foi que eu disse… Mas certamente contei que era meu aniversário e devo ter me desfiado em explicações sobre meus motivos para estar levando o cavaleiro da triste figura comigo.
Para surpresa minha e de D. Mãe, o senhor de cabeça branca por fim se apresentou como dono da livraria. Ele me levou a uma prateleira e disse que eu poderia escolher qualquer título dela, porque ele também queria me dar um presente de aniversário. Escolhi Da Terra à Lua, de Jules Verne.
Como era um livro mais curto, comecei por Verne, sabendo que Cervantes, por mais empolgada que eu estivesse, seria um desafio. Foi uma leitura rápida, da qual não consegui me despregar até chegar ao final e quando terminei, cheguei à conclusão de que precisava de mais livros daquele autor.
Mais ou menos por essa mesma época, ‘herdei’ de uma vizinha da minha avó uma coleção de clássicos adaptados - Obras Célebres, da Melhoramentos -, livros que já então tinham o triplo da minha idade. Foi aqui que eu descobri Robinson Crusoé, Gulliver, Marco Polo, D’Artagnan e, claro, o Capitão Nemo.
Quando fecho os olhos, ainda consigo ver as ilustrações coloridas dessa edição de 20.000 Léguas Submarinas. Nemo - junto com Aramis de Os Três Mosqueteiros - foi minha primeira paixonite literária. Seguimos em frente, eu e Verne, após ir e voltar da lua e explorar os sete mares, para viajar cinco semanas num balão e, depois, enfiar-se por um vulcão extinto para descobrir o que havia no centro da Terra e, é claro, para dar a volta ao mundo em oitenta dias. Ao final dessa jornada, eu queria desesperadamente ser Phileas Fogg, o protagonista do meu livro favorito do autor.
Ano passado, comprei a edição comentada da Zahar de A Volta ao Mundo em 80 Dias - uma edição que é um verdadeiro banquete para os olhos, por sinal -, e aproveitei o carnaval desse ano para puxá-lo da estante. E a primeira coisa que tenho a dizer é que a história continua tão empolgante quanto quando a li pela primeira vez.
Originalmente publicado em folhetim ao longo de 1873, A Volta ao Mundo em 80 Dias provocou verdadeiro furor à época. Verne soube aliar humor, exotismo e aventura com um timing brilhante para escolher o momento de gancho entre cada capítulo e prender a atenção do leitor - algo que ele provavelmente aprendeu quando trabalhou no teatro. Só podemos imaginar com que ansiedade cada novo episódio era esperado então...
Assim como ocorria no enredo, os leitores acompanhavam cada passo de Fogg e seus companheiros, apostando se ele seria ou não capaz de chegar dentro do tempo estipulado ou mesmo se ele era, de fato, o ladrão de Fix. Verne também inspirou aventureiros da vida real a imitar a façanha de seu herói: em 1889, a jornalista americana Nelly Bly fez a volta ao mundo em 72 dias, tendo visitado o autor quando passou pela França.
Jules Verne é hoje considerado um dos pais da ficção científica, tendo tido um impacto extraordinário não apenas pela qualidade de sua obra (bom lembrar que ele é o segundo autor mais traduzido no mundo, atrás apenas de Agatha Christie e imediatamente à frente de Shakespeare!), mas também pelas maneiras como foi capaz de ‘prever’ o futuro. Em suas histórias, ele inventou submarinos movidos a eletricidade, foguetes impulsionados pela luz solar, bem como módulos lunares capazes de carregar passageiros, entre outros. Interessante observar que A Volta ao Mundo em 80 Dias, embora seja um de seus livros mais famosos, é um dos mais realistas frente à tecnologia da época, explorando a ideia de que o mundo e suas distâncias tinham ‘diminuído’ em razão de invenções como o barco a vapor e os trens.
Aos que ainda não tiveram o prazer de descobrir esse livro, o enredo é o seguinte: Phileas Fogg, cavalheiro britânico que é tanto metódico quanto misterioso, faz uma aposta com alguns colegas de que é capaz de dar a volta ao mundo em 80 dias, independente de quaisquer obstáculos, atrasos de trens e navios e outros imprevistos. Acompanhado de seu criado francês Passepartout e perseguido pelo detetive Fix, que acredita ser ele o ladrão por trás de um audacioso furto, Fogg segue por todos os meios de transporte disponíveis, tendo tempo até de salvar donzelas em perigo pelo caminho, tudo isso com extremo sangue-frio e racionalidade.
Tendo conhecido Fogg e sua trupe ainda criança, minhas impressões nessa releitura são bem diferentes daquelas que tive então. A aventura era meu interesse principal, seguida da possibilidade de conhecer lugares distantes e exóticos, completamente diferentes da minha realidade. Empolgação, ansiedade para saber o que aconteceria ao final, como tudo aquilo poderia se resolver, como era possível que Fogg conseguisse chegar a tempo diante de tantas dificuldades que iam se somando ao caminho - tudo isso estava presente naquela primeira leitura.
O tempo alterou um pouco dessa compreensão. A história continua a ser uma vívida aventura, mas há outras questões que saltam aos olhos agora.
A primeira coisa que me chama a atenção é a forma como ele utiliza um fraseado grandiloquente, repleto de estrangeirismos - e palmas para a tradução da Zahar, que manteve os termos que Verne decidiu grafar em inglês quando escrevia em francês, preservando o tom original -, algo que vai para além do contexto histórico, mas me parece um estilo consciente que mimetiza a forma de se expressar de um cavalheiro. E isso é interessante, porque, ainda que Phileas Fogg seja o herói do romance, ele é o personagem a que menos temos acesso. Conhecemos os sentimentos, as alegrias e decepções de Passepartout, de Fix, da bela Alda, mas Fogg é uma esfinge. Os fiascos se sucedem, a aposta - e com ela a própria fortuna do homem - parece perdida inúmeras vezes, mas, ainda assim, ele não se desespera, não levanta a voz, mantém impassível.
A Volta ao Mundo em 80 Dias é, de forma óbvia, uma narrativa em terceira pessoa, com um narrador quase onisciente de tudo o que se passa no âmago de seus personagens. Ao mesmo tempo, é uma história narrada numa voz que muito mais se assemelha a do cavalheiro inglês que a de seu expansivo criado Passepartout. Isso nos ajuda a ter um vislumbre de quem seja Fogg por trás da carapaça: um homem que acha perfeitamente aceitável apostar metade do tem e usar a outra metade para correr o mundo sem realmente se preocupar em visitar os lugares por onde passa; que se arrisca a salvar uma jovem desconhecida e, mais tarde, seu criado, tendo plena consciência de que qualquer mínimo atraso de seu itinerário poderia representar sua miséria; capaz de roubar um navio e dar um elefante de presente como se essas fossem ações corriqueiras.
É um vocabulário que poderia ser considerada pedante. Mas Verne sabe dar o tom, sabe até mesmo usar esse eventual pedantismo como gancho para um alívio cômico, para surpreender o leitor, para valorizar o efeito do que o estranho, o estrangeiro tem sobre nossa imaginação.
De outro turno, numa história em que o tempo é mercadoria incalculável, e a chegada, mais que a jornada, é a prioridade, é surpreendente perceber que existe algo ainda mais importante para esses personagens: sua reputação, honra e dever. E isso vai para além dos momentos em que ocorrem heróicos resgates; vai dos pequenos gestos, da generosidade com que Fogg trata todos que o servem ou que simplesmente cruzam seu caminho. E a surpresa advém do fato de que, quando conhecemos o cavalheiro, ele é um metódico e pernóstico cavalheiro, capaz de despedir o criado anterior a Passepartout por lhe ter servido a água para barbear a uma temperatura alguns graus abaixo do estabelecido em suas regras.
O que faz um homem como esse decidir apostar sua fortuna num empreendimento que não lhe trará maiores vantagens? Vício em jogos de azar? Tédio? É difícil dizer com certeza, mas acredito que a razão seja no final das contas, a mais prosaica de todas: buscar aquilo que te faz feliz. A existência metódica de Fogg, a qual somos apresentados nos primeiros capítulos, revela-nos um homem sem raízes, sem amigos ou parentes próximos, sem nada que realmente lhe prenda o interesse além de seus jogos e apostas. Pelo que vislumbramos dele ao longo da história, razoável seria afirmar que antes de se refugiar na rotina, Fogg foi um homem de ação e provavelmente assim fez sua fortuna: ele conhece bem armas de fogo, não hesita em participar de conflitos, tem até uma breve encarnação como pirata, sabendo navegar muito bem. Afinal, estamos no período de ouro do Império Britânico: chances de enriquecer e conflitos nas colônias são abundantes.
Uma crítica à crítica: se eu quisesse analisar Verne num contexto sociopolítico, até poderia dizer que toda a relação de Fogg com a bela mrs. Alda, jóia indiana polida com a educação inglesa, seria uma metáfora para o imperialismo britânico, mas acho que com todos os seus preconceitos velados quanto ao ‘estrangeiro’ (e sim, eles também estão lá para quem quiser esmiuçar o romance e acusar o autor de colonialista, racista, machista e outras ideologias), a preocupação de Verne não é fazer política. Ele escreve uma aventura, uma viagem cheia de perigos e façanhas, e aquilo que é sua realidade, seu contexto social, aquilo que era aceito na sociedade da época, escorrega para o texto. Podemos criticar à luz das nossas sensibilidades, mas não acho que Verne mereça julgamento por ideias que eram amplamente aceitas então.
Feito esse adendo, gostaria de concluir dizendo que há um motivo para os livros de Jules Verne serem considerados clássicos. Lembro de Calvino definir clássicos como “um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Nós os lemos em diferentes momentos de nossas vidas e sempre encontramos algo novo sobre o que refletir; é uma faísca que nos encanta, uma centelha que inspira. Verne foi capaz de sonhar o futuro e outros construíram aquele futuro sonhado; ele foi capaz de divertir, de envolver, de nos fazer torcer com seus personagens, de nos fascinar com seus mistérios, de levar nossas imaginações ao limite. Aos dez, aos trinta, aos setenta, ele continua um autor amado, cujas páginas nos fazem mergulhar em nostalgia e prazer.
Para meu eu criança: adulta, Verne continua a ser um favorito...
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: A Volta ao Mundo em 80 Dias
Autor: Jules Verne
Tradução: André Telles
Editora: Zahar
Ano: 2017
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