14 de setembro de 2017

Desafio Corujesco 2017 - Um Livro de um Autor que Você Nunca Leu || O Aprendiz de Assassino

Você é um bastardo, garoto. Somos sempre um risco e uma vulnerabilidade. Somos sempre dispensáveis. Exceto quando nos tornamos uma necessidade absoluta para a segurança deles. Eu te ensinei bastante durante os últimos anos. Mas mantenha esta lição mais próxima de você e mais presente do que qualquer outra na sua vida. Porque se alguma vez você fizer algo que os leve a não precisarem mais de você, eles vão te matar.
Fitz é filho bastardo do herdeiro do trono do reino de Seis Ducados. A revelação de sua existência fez com que o príncipe Cavalaria abdicasse e deixasse a corte e assim, o garoto, que foi abandonado pela família da mãe e é considerado um estorvo pela família do pai, é criado pelo mestre-cavalariço dos estábulos reais - até o rei Sagaz se interessar pela sua existência e decidir que o jovem deve ser treinado na arte do assassinato. Entre intrigas palacianas, ameaças de além-mar e poderes desconhecidos, Fitz tem muito a aprender e superar.

Robin Hobb, pseudônimo de Margaret Astrid Lindholm Ogden, estava há tempos no meu radar, desde que me deparei pela primeira vez com aquela famosa lista 100 Melhores Livros de Fantasia e Ficção Científica da NPR. Ganhei ele de presente de uma amiga (com uma das mais hilariantes dedicatórias que já recebi até hoje, mas não vou mostrar pelo potencial de embaraço), e ele ficou na estante por um tempo, já que andava evitando começar histórias que fossem parte de séries… Aí esse ano, a autora ofereceu por seu site bookplates autografados que vinham num papel adesivado para você colocar no seu livro. Achei uma iniciativa tão simpática que, além de pedir meu autógrafo, decidi, finalmente, aventurar-me pelo universo que ela criou.


E que universo! Uma das melhores coisas no trabalho da Hobb é como ela sabe fazer uma boa construção de mundo. Fazia algum tempo que eu não tinha tanto prazer com um livro de fantasia no estilo de O Aprendiz de Assassino. O sistema de magia, a forma como os personagens utilizam seu poder, o uso da geografia do reino - que não é apenas um mapa bonito, mas que faz sentido, que vai de uma ponta, na costa marítima, até as fronteiras montanhosas. Hobb usa o espaço que cria, sabe dar culturas diferentes para povos que vivem de maneiras diferentes, nomes, comportamentos, até arquitetura.

Claro que um mundo bem construído não seria o suficiente sem bons personagens… e os personagens que aparecem em O Aprendiz de Assassino são excelentes. Fitz, que narra sua história em primeira pessoa, não é exatamente o herói com que estamos acostumados - ele é um marginalizado, sem uma posição certa na hierarquia da corte, atuando nas sombras sob uma moral bem cinzenta. Ele é um assassino, e isso significa subterfúgio e mentira em vez de um herói que saca a espada e enfrenta o vilão com honra.

Ao mesmo tempo… ele é um menino. Cresceu rápido demais devido a sua situação, mas é apenas um garoto ao longo de boa parte da ação - e alguém que está sedento de afeto, apegado aos animais que o cercam não apenas por sua capacidade de dividir com eles pensamentos (!), mas porque os humanos ao seu redor estão sempre o abandonando.

Aliás, isso abre um parênteses interessante: cada capítulo se inicia com um trecho do que entendemos ser as memórias escritas de Fitz já idoso. O livro todo é narrado em primeira pessoa, mas esses vislumbres me passaram um peso maior do que ia acontecendo: Fitz julga suas ações, sua história, sob o peso de suas experiências e isso fazia com que eu nunca me esquecesse de que ele era um aprendiz: o título do livro é perfeito nesse sentido, porque nunca está muito longe da sua mente que estamos justamente acompanhando o treinamento dele.

Além disso, o fato de mergulhar na história através das memórias de Fitz torna bem mais crível a narrativa em primeira pessoa. Acho difícil histórias escritas em primeira pessoa porque, muitas vezes, o que você lê é a voz do autor, e não do personagem - maneirismos de linguagem, estilo, gírias. E não é isso que acontece aqui: Fitz tem uma voz clara, distinta e reconhecível em todo o livro.

Mas não é só o protagonista que me cativou. Todos os personagens com que Fitz interage - e até alguns que aparecem apenas no nome - me conquistaram. Eu queria muito ter visto mais de Cavalaria e seu casamento com a Dama Paciência; Bronco e Breu, os dois mestres e verdadeiras figuras paternas de Fitz, assim como o príncipe Veracidade. Amei odiar o príncipe Majestoso e Galeno, o mestre do Talento (uma das formas que a magia assume na história). Disseram-me que o Bobo aparece mais, inclusive em outros livros do mesmo universo fora dessa trilogia. Quero ver mais do Bobo. E quero que alguém o abrace também, porque, caramba, se tem alguém mais dolorosamente sozinho que Fitz nessa história, é o Bobo...

Aliás, posso dizer que adorei essa tradição de batizar os membros da família real com adjetivos que traduzam as qualidades que se esperam deles? Parece algo tão simples, mas nomes são importantes e não é tão óbvio quanto aparenta aquilo que eles dizem de seus donos. Além disso, aquilo que enxergamos como qualidades pode esconder outros lados da história. Hobb vai bem além do sentido absoluto desses nomes (Majestoso, Sagaz, Cavalaria, Veracidade…).

Os relacionamentos entre todos esses personagens são complexos, tanto atendendo a interesses quanto a afetos sinceros.

Para além de tudo isso, há uma ameaça bastante real vinda do mar. Os ataques dos Navios Vermelhos, capturando pessoas dos vilarejos costeiros e, por alguma magia desconhecida, transformando-os em seres feitos apenas dos piores instintos, incapazes de reconhecer vínculos com outros seres humanos - os forjados - me deu mais calafrios do que a simples ideia de zumbificar alguém. Por que os forjados são essencialmente zumbis, mas não estão mortos e sim transformados na pior versão de si mesmos.

Muita coisa acontece em O Aprendiz de Assassino e pouco chega a ser realmente solucionado e, no entanto… terminei o livro satisfeita. Não estou enlouquecida atrás de ler o próximo volume, embora esteja, claro, curiosa para ver como os acontecimentos vão se desdobrar - porque mesmo sem soluções, há certa sensação de resolução quando nos damos conta de que Fitz encontrou seu lugar no mundo. Ele ainda precisa crescer, mas ele sabe seu caminho. E ele tem pessoas ao seu redor, pessoas com quem se importa e que se importam com ele.
Cresci sem pai nem mãe, numa corte onde todos me conheciam como um divisor de águas. E um divisor de águas me tornei.
Ao final, Fitz, o reino de Seis Ducados e a escrita de Robin Hobb definitivamente me conquistaram. Foi uma leitura gostosa, imprevisível, um pouco mais sutil do que tenho visto em termos de fantasia, mas talvez por isso mesmo tenha me fisgado tanto. Vamos ao próximo!

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: O Aprendiz de Assassino
Autor: Robin Hobb
Tradução: Orlando Moreira
Editora: Leya
Ano: 2014

Onde Comprar

Amazon || Cultura || Saraiva


A Coruja


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