30 de maio de 2011

Para ler: Direitos Iguais, Rituais Iguais

ESTA É UMA HISTÓRIA SOBRE MAGIA, O LUGAR para onde ela vai e, talvez principalmente, de onde vem e por que, embora o livro não pretenda responder nem a todas, nem a qualquer uma dessas questões.

Pode, no entanto, ajudar a explicar o motivo de Gandalf nunca ter se casado e de Merlin ser homem. Porque também é uma história sobre sexo, embora muito provavelmente não no sentido atlético e acrobático em que se contam as pernas para dividir por dois, a menos que os personagens fujam ao controle do autor. Pode acontecer.

Seja lá como for, é, em essência, a história de um mundo. Ali vem ele. Observe com atenção, os efeitos especiais são bem caros.

Um som grave se faz ouvir. Trata-se de um acorde vibrante e profundo sugerindo que a qualquer momento os metais podem desatar numa fanfarra para o cosmo. O cenário é a escuridão retinta do espaço com algumas estrelas brilhando feita caspa nos ombros de Deus.

Então, ainda maior e mais terrivelmente armado do que o maior cruzador estelar saído da imaginação de um cineasta lunático, ela surge acima: uma tartaruga com 16 mil quilômetros de comprimento. É Grande A'Tuin - um dos raros astroquelônios de um universo em que as coisas são menos como são e mais como as pessoas imaginam — e ela traz na carapaça marcada por crateras quatro elefantes gigantescos que, por sua vez, sustentam no lombo a imensa roda do Discworld.

Quando mudamos o ponto de vista, um mundo inteiro pode ser visto à luz do minúsculo sol. Há continentes, arquipélagos, oceanos, desertos, cordilheiras e até uma calota glacial central. É evidente que os habitantes desse lugar não querem nem saber de teorias sobre globos. O mundo deles, limitado por um mar circundante que não pára de desaguar no espaço através de uma imensa queda-d’água, é redondo e plano como uma pizza geológica, embora sem anchovas.
Este é o terceiro volume da série Discworld – e foi precisamente depois dele que Pratchett subiu ao meu panteão de autores favoritos. A Cor da Magia e A Luz Fantástica eram divertidos, claro, mas faltava a eles uma coisa muito importante: faltava a eles uma protagonista feminina.

Direitos Iguais, Rituais Iguais me deu muito mais que uma protagonista feminina: ele me deu Eskarina Smith... e a vovó Cera do Tempo.

Mas, como diria meu estimado Jack, “vamos por partes”.

Algum tempo atrás, estava pesquisando sobre Pratchett para escrever um longo artigo sobre o homem por trás do chapéu (ou por debaixo dele), quando dei de cara com um artigo do próprio baseado numa palestra que ele fez em 1985, intitulado Why Gandalf Never Married.

A primeira conclusão a que cheguei após ler esse artigo foi: “puta merda, tenho de dar um jeito de assistir uma apresentação desse cara antes de morrer”. A segunda foi “ah, então foi por isso que ele escreveu Direitos Iguais, Rituais Iguais”.

Basicamente, o artigo fala como Pratchett descobriu o mundo da fantasia e como, ao começar a escrever a série Discworld, ele percebeu alguns curiosos clichês. Nas palavras dele (e perdoem-me a tradução apressada):
"“É claro que o universo fantástico como conhecemos é cheio de clichês, quase por definição. Elfos são altos e belos e usam arcos; anões são pequenos e sombrios e votam trabalhista. E mágica funciona.

(...)

De qualquer forma, se você está no mercado pelo riso fácil, você aprende que há duas distintas maneiras de fazê-lo: é ou tropeçar nos clichês ou entender as coisas de forma completamente literal. Assim, na seqüência de
A Cor da Magia, que está saindo da gráfica com a velocidade de uma placa tectônica, vocês descobrirão o que acontece, por exemplo, quando alguém como eu dá de cara com a idéia de que círculos de pedra megalíticos são na verdade complexos computadores. O que você consegue são druidas caminhando por aí, conversando numa espécie de jargão tecnológico e se referindo a Stonehenge como o milagre do Vale do Silício.

Quando eu estava pilhando o mundo da fantasia, à procura do próximo clichê do qual tiraria mais alguns risos, encontrei um que está tão profundamente entranhado nele que você quase não percebe que está lá. Na verdade, ele me chocou tão vivamente, que cheguei até a encarar a idéia de forma séria.

Trata-se da geralmente muito clara divisão entre magia praticada por mulheres e magia praticada por homens.”
Nessa passagem, você é capaz de perceber como Pratchett desenvolve suas histórias, os mecanismos (não tão) ocultos que regem seu processo criativo... e também enxergamos o que viria a ser a idéia, o núcleo narrativo do terceiro livro da série, lançado dois anos após essa conferência.

O grande tema do livro – que será resgatado diversas vezes, sempre que as bruxas aparecem – é o contraste entre a magia das bruxas, ligada à natureza, às ervas e, obviamente, à cabeçologia; e a magia dos magos, com seus paramentos, pentagramas e matemática.

O que ele desenvolve no artigo é exatamente isso e resume bem a história: um mago está à procura de um sucessor, de alguém para passar seu bastão, símbolo de seu poder. Ele sabe que sua hora está próxima e precisa encontrar o dito cujo o quanto antes. Tal sucessor será o oitavo filho de um oitavo filho – número cabalístico que determina ser esta criatura alguém de grande poder. Finalmente, quando a ampulheta já está quase no final, ele encontra quem estava procurando. Só há tempo de fazer o recém-nascido segurar o bastão, passando o poder para ele... e o mago morre em seguida.

O problema é que o recém-nascido não é um ‘ele’... mas sim um ‘ela’: contemplem assim Eskarina Smith, a primeira maga do Disco.

Claro que esse pequeno detalhe não seria o único problema a aparecer na vida de nossa jovem protagonista. Não, ser a única maga num mundo dominado por magos, não será o único problema com que Esk terá de lidar. Afinal, nossa heroína nasceu nas Ramtops, as montanhas em que as Bruxas são as maiorais...

E são as bruxas, nesses lugares, que assistem os aldeões em todas as dificuldades... incluindo partos. De forma que Eskarina, a primeira maga, vem ao mundo pelas mãos de vovó Cera do Tempo – que vamos encontrar em livros posteriores como a mais poderosa bruxa do Disco.

A princípio, vovó Cera do Tempo tentará fazer de Esk uma bruxa – afinal, ela é mulher, e quem já ouviu falar de mulheres se metendo com magia de magos? Mas há aquele detestável bastão, que a despeito de qualquer tentativa de descartá-lo, acaba sempre voltando.

E também não vai demorar muito para que a vovó perceba que, a despeito de seus esforços, Esk é uma maga - e precisa, portanto, aprender a ser uma maga antes que as coisas realmente saiam de controle. E onde mais poderia nossa jovem heroína aprender a ser uma maga, se não na famosa e conceituada Universidade Invisível?

O grande problema – depois, claro, de percorrer todo o caminho das Ramtops até Ankh-Morpork em vários meios de transporte, incluindo uma hesitante vassoura voadora – é que, a despeito da Universidade aceitar humanos e primatas de forma bastante acolhedora, eles não dispensam a mesma cortesia às garotas.

Claro que eles não contavam com a teimosia de Eskarina... ou a astúcia de Vovó Cera do Tempo (e eu sou o Chapolin Colorado!). Afinal, se você não pode entrar pela porta da frente... entre pela porta de trás.

Assim começam os estudos de Esk, que com seu bastão disfarçado de vassoura, lê quadros-negros ao final das aulas enquanto limpa as salas (ou melhor, enquanto o bastão as limpa); conversa com as paredes da Universidade e a certa altura, salva o mundo de um evento tenebroso. Afinal, não demorará muito para que o caos se desencadeie, e as criaturas simpaticíssimas do Calabouço das Dimensões tentem passar para o mundo ‘real’.

Ao se ver de cara com a idéia de enfrentar tais criaturas, combinado ao desaparecimento dos torrões de açúcar, mesmo o mais tradicional dos magos não terá escrúpulos em dispensar todas as suas noções pré-concebidas de gênero e deixar que a bruxa de plantão decida o que fazer.

Para que queimar sutiãs em praça pública quando o apocalipse está a apenas uma mente de distância?

Há muito mais por trás da idéia de Pratchett de pegar um clichê e virá-lo de ponta-cabeça. Sendo um dos primeiros livros dele, o refinamento irônico de livros como The Truth ainda está em seus primeiros passos. Especialmente, comparar a figura da Vovó Cera do Tempo nesse livro, com a majestade com quem ela encarna em A Hat Full of Sky, por exemplo, faz saltar às vistas essa evolução.

Independente disso, Direitos Iguais, Rituais Iguais te dá muito o que pensar. Não à toa, mais de seis anos e vinte livros depois, ele continua a ser um dos meus favoritos na série.
- Vejo a coisa assim - começou ele. - Antes de Simon, eu era como todo mundo. Entende o que quero dizer? Estava confuso e incerto sobre todos os aspectos da vida. Mas agora - alegrou-se ele -, embora eu ainda esteja confuso e incerto, é num plano muito mais elevado, entende? E pelo menos sei que estou inseguro em relação aos fatos verdadeiramente importantes e fundamentais do universo.

Treatle assentiu.

- Eu não tinha pensado no assunto dessa maneira - admitiu -, mas você tem toda razão. Ele realmente alargou as raias da ignorância. Existe tanto no universo que não conhecemos!

Ambos os magos provaram o estranho ardor de serem mais ignorantes do que as pessoas comuns — que só eram ignorantes em relação a coisas comuns.


A Coruja


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