3 de setembro de 2009

Terry Pratchett (Parte I) - O Homem por Trás do Chapéu





Começarei esse artigo contando uma historinha sobre minha juventude (oh, céus, como estou velha...).

O ano era 2003. Estando no terceiro ano, em cima do vestibular, tinha aula quase sempre em período integral e, ao menos umas três vezes por semana, tinha de almoçar por perto do colégio, porque não dava tempo de ir para casa.

Havia uma livraria por ali por perto, umas duas ou três quadras de distância da escola. Ficava do lado de uma delicatessen e, volta e meia, eu decidia ir lanchar lá em vez de almoçar mesmo. Não, obviamente, que eu estivesse muito preocupada com a comida... Meu negócio era engolir qualquer que fosse o especial do dia com a maior presteza possível e, depois disso, dirigir-me à livraria, onde permanecia até a hora de voltar para a aula.


Eu passava tanto tempo nessa livraria que acabei por conhecer os sócios e todos os funcionários; volta e meia ganhava um desconto especial e meus amigos viviam tirando uma com a minha cara dizendo que eu era a princesinha da tal livraria.

Em todo caso... em uma das minhas várias e dolorosamente curtas (para mim) visitas, dei de cara com um livro de capa colorida - esquisita e hilariante ao mesmo tempo. O título era A Cor da Magia e seu autor era um tal de Terry Pratchett.

Para não enrolar muito, o resumo da ópera é o seguinte: perdi aula de física, química e biologia, esqueci de almoçar (porque tinha ido à livraria primeiro que na delicatessen) e já quase anoitecia quando me lembrei de que precisava ir para casa.

Mas terminei o livro... e minha lista de "autores favoritos de todos os tempos" ganhou um novo nome.

No dia seguinte, eu estava de volta para ler A Luz Fantástica. Terminado o segundo volume, descobri que não havia mais nada daquele autor para eu ler, ao menos, não na livraria. E, em casa, eu tinha internet discada...

Bem, eu já estava na faculdade quando voltei a ter contato com Pratchett - um amigo me deu de presente o box com os três primeiros volumes e, depois de Direitos iguais, ritos iguais, não consegui mais resistir. A primeira providência a ser tomada era ir à caça no sebo, de onde, num único dia, voltei com quatro volumes (incluindo Belas Maldições). Depois, toda vez que eu ia comprar livros da faculdade - pagos por papai - eu dava um jeito de enfiar um dos volumes novos de Discworld no meio.

Mas quem cargas d'água é Terry Pratchett afinal? O que é Discworld? E octarina? Quem é o Patrício? Cenoura é o rei????

Vamos começar do começo, ok? Pelo homem atrás do chapéu...




Sir Terence David John Pratchett - ou, como conhecido pelo grande público, Terry Pratchett - nasceu na Inglaterra em 1948. Formou-se jornalista e, aos 13 anos, publicou seu primeiro trabalho The Hades Business (aliás, se alguém encontrar esse conto, por favor, me mande! Com um título desses, certamente chama a atenção...).

Enfim, uma criança precoce...

Nesse começo de carreira, Pratchett escreveu alguns livros de ficção científica, mas seu grande estouro viria mesmo com a publicação do primeiro volume da série Discworld: A Cor da Magia, em 1983.

À época, eu nem era nascida ainda...

Não me alongarei muito na bibliografia dele - não acho realmente que vocês queiram saber com quem ele se casou, quando, quantos filhos tem, cachorro, passarinho, papagaio e plantas carnívoras (sim, ele coleciona plantas carnívoras - e essa é uma informação pertinente e importante). Em vez disso, tratarei das minhas próprias impressões em diversas e repetidas leituras.

Porque, é claro, Pratchett é o tipo de autor que você degusta várias vezes e que, a cada releitura, você descobre novos recônditos escondidos.

Há algumas características bem marcantes nele que fazem com que você seja capaz de reconhecer seus textos quase que imediatamente, mesmo que não haja nenhum outro indicativo de autoria.

São verdadeiras marcas registradas de Pratchett as notas de rodapé com conteúdo científico/histórico/comentário-sem-noção-sobre-determinado-elemento-da-narrativa. Se você tiver vontade de rir sozinho e tiver pouco tempo para fazê-lo, abra a esmo uma das notas de rodapé de Pratchett e logo estará às gargalhadas.

Jamais me esquecerei da história de Santa Beryl... Mas essa ficará para quando eu escrever a parte de Belas Maldições.

Além das notas de rodapé, as obras de Pratchett também se caracterizam por seu um gigantesco "caça-palavras". Sempre gostei de referências cruzadas e nosso amigo de chapéu tem um rol quase infinito delas, nas mais diversas áreas de conhecimento possíveis e imagináveis.

Biologia, literatura, física, astronomia, história humana e natural, mitologia e religião... - o cara é um verdadeiro "bombril", mil e uma utilidades. Aliás, Pratchett seria a resposta para qualquer imbecil que viesse dizer que ficção fantástica é alienadora ou coisa do tipo (manda Tolkien na cabeça deles!) - a vastidão cultural que o autor demonstra mesmo quando distorce toda e qualquer verdade e moral é impressiva.

De cabeça, eu posso relacionar ao menos Estranhas Irmãs (um dos meus favoritos) como releitura de Hamlet e Macbeth; Eric sendo o Fausto de Goethe (com Rincewind fazendo um Mefistófeles para lá de atrapalhado); As bruxas viajam com todas as obras dos irmãos Grimm e Carpe Jugulum que vai de Drácula.

Não obstante, embora o mundo do disco seja fundamentalmente medieval – dentro da tradição da fantasia, que tem em das e D&D exemplos clássicos – Pratchett faz uma releitura interessante de muitos institutos bastante atuais, ironizando-os até dizer chega.

Cinema, imprensa, a burocracia governamental do melhor dos Patrícios (eu votaria em Lorde Vetinari), a guarda municipal, o turismo (inesquecível Duasflor, primeiro turista do Disco), ônibus espaciais (é, né... assim... bem... os quelonautas do Disco realmente fazem as vezes de astronautas, ainda que seus objetos de estudo sejam diferentes...) – todos esses temas são deliciosamente desenvolvidos com o humor que é característico de Pratchett.

Humor é um dos gêneros mais difíceis de escrever, porque, primeiro, é muito fácil cair no mau gosto e na escatologia e, segundo, nem tudo o que me faz rir faz os outros rirem. Nesse aspecto, Pratchett é incomparável. E brilhante, absolutamente brilhante.

Por esse e outros motivos, a notícia do Alzheimer de Pratchett em 2007 foi um duro golpe não apenas para aqueles que são seus fãs, mas também para qualquer um que goste de um entretenimento inteligente (algo um tanto raro nos dias atuais...).

A idéia de que alguém do porte intelectual de Pratchett esteja caminhando para a senilidade é triste – na verdade, acho que Alzheimer é ma das doenças mais tristes e deprimentes que existem.

Numa entrevista ao jornal The Telegraph, Pratchett constatou que, antes que a doença o faça perder a consciência de si mesmo, ele preferiria o "suicídio assistido":

Eu estou aproveitando minha vida ao máximo, e espero continuar assim por algum tempo. Mas eu também pretendo, antes que comece a pairar o final do jogo, morrer sentado numa cadeira no meu próprio jardim, com uma taça de brandy em minhas mãos e Thomas Tallis no iPod - este último porque a música de Thomas pode levar até um ateu um pouco mais perto do céu -, e talvez um segundo brandy, se houver tempo.

Oh, e como estamos na Inglaterra, é melhor que eu acrescente: 'se molhado, na livraria'.

Terry Pratchett é, enfim, bem mais que um tio de chapéu engraçado... Mas agora que já tratamos da pessoa, vamos começar com a obra...

(continua em "um mundo, uma tartaruga e quatro elefantes"...)


A Coruja


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2 comentários:

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