20 de setembro de 2022

Projeto Agatha Christie: Um Destino Ignorado


O homem sentado atrás da mesa moveu um pesa-papéis em vidro alguns centímetros para a direita. Seu semblante parecia mais sem expressão do que pensativo ou disperso. Tinha a tez pálida de quem passa a maior parte do dia sob luz artificial. Dava para ver que vivia enfurnado entre mesas e arquivos. Parecia natural que, para chegar à sua sala, fosse necessário atravessar longos corredores subterrâneos. Seria difícil precisar sua idade. Não parecia nem velho nem novo. No rosto liso e sem rugas, os olhos denotavam um grande cansaço.

O outro homem na sala era mais velho. Moreno, com um pequeno bigode militar, emanava vivacidade e energia. Não conseguia ficar parado. Andava de um lado para o outro, soltando observações bruscas aqui e ali.

– Relatórios! – exclamou de modo explosivo. – Relatórios e mais relatórios para quê?

O homem sentado à mesa olhou para os papéis à sua frente. Sobre eles havia um cartão oficial onde se lia “Betterton, Thomas Charles”. Depois do nome havia um ponto de interrogação.

Um Destino Ignorado é um dos romances isolados de Christie - menos história de detetives e mais thriller político mergulhado no contexto da Guerra Fria. Publicado originalmente em 1954, começa com uma série de cientistas desaparecendo misteriosamente na Europa Ocidental, para então nos apresentar Hilary Craven, uma mulher que não tem nada a perder, anseia pela morte, e é convidada a uma missão potencialmente suicida que talvez ajude a identificar quem está por trás dos sumiços.

Sem Poirot, Miss Marple, os Beresford, ou quaisquer dos outros personagens emblemáticos da autora, dá até para esquecer que se trata de uma obra da Rainha do Crime. E se, a princípio, fiquei comparando mentalmente o roteiro de Um Destino Ignorado com os romances de espionagem de Le Carré; a medida em que avançamos o enredo vai se tornando tão inverossímil que cheguei a conclusão de que a comparação tenderia para o lado Indiana Jones ou os filmes mais rocambolescos da franquia de James Bond.

Temos ruivas convenientes, mais de um acidente de avião, a inserção oficial de uma civil completamente leiga numa investigação altamente sensível de agências de inteligência europeia no auge da Guerra Fria, vilões estereotipados que se escondem por trás das cortinas, uma colônia de leprosos, e até um romance que engrena tão de súbito que dá até para se perguntar se você pulou algumas páginas.

Em resumo, o roteiro das aventuras de Craven é ridículo - e é exatamente esse plot inacreditável que salva o livro. Eu fui me arrastando na leitura até o momento em que Hilary realmente consegue entrar no grupo dos cientistas cooptados, quando então devorei todo o resto de uma sentada, porque eu precisava desesperadamente saber como cargas d’água essa missão impossível conseguiria encontrar uma resolução, enquanto ria de nervoso como cada novo improvável lance.

Um Destino Ignorado não é nem de longe um dos melhores trabalhos da Christie, mas acaba se tornando divertido por partir tão completamente do que se costuma esperar do gênero. Eu recomendo mais a quem se interessa por seguir um projeto de leitura completa da bibliografia da autora do que para quem está começando nos trabalhos da Christie ou para quem prefere um dos seus refinados mistérios em que tudo faz sentido no final. Afinal… sentido é algo tão ignorado quanto o destino neste volume…

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Um Destino Ignorado
Autor: Agatha Christie
Tradução: Bruno Alexander
Editora: L&PM
Ano: 2012

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