21 de setembro de 2020

Conversas Sobre o Tempo: Viagem ao Redor do Meu Quarto


Interessante são as coincidências que chamam nossa atenção: uma coisa vai puxando a outra e quando menos se espera você tem uma série de pensamentos aleatórios nascidos de uma série de referências cruzadas sobre os quais tagarelar numa crônica. A de hoje começou assim: tenho costume de duas vezes ao mês sair em busca dos livros que estão em pré-venda por aí para saber se tem algo que me interessa e assim colocá-lo na lista (porque não basta ser Sísifo: é preciso procurar mais pedras para rolar). Um título me chamou atenção brevemente - o mesmo que dá título a essa crônica -, mas não parei para ler a sinopse - foi só a curiosidade de um título diferente mesmo.

À mesma ocasião, estava às voltas com a leitura de A Biblioteca à Noite do Manguel (tenho mais dois livros do autor para resenhar por aqui depois) e, ora, a coincidência: o mesmo título foi lá citado. Voltei à internet agora para ver a sinopse. Descobri que não se tratava exatamente de um livro novo a despeito da pré-venda - contemporâneo da Revolução Francesa, na verdade -, e saí pescando referências aqui e ali até descobrir que o bendito servira de inspiração a nada menos que às memórias de Brás Cubas, que o cita (falo do Brás, não do Machado) por nome e sobrenome.

Assim, Xavier de Maistre foi para a lista. Como o autor já está em domínio público, achei a obra em francês e inglês no Project Gutenberg. Já estou com Voyage autour de ma chambre (o título em francês é de encher a boca!) aqui para ler, mas antes de começá-lo, decidi seguir o caminho apontado pelas coincidências para desaguar aqui. Em outras palavras, farei minha própria viagem ao redor do meu quarto, porque, sério, como fugir a essa possibilidade, especialmente em tempos de confinamento? Pelo título e pela sinopse, o livro de Maistre parece até ter sido escrito sob medida para nossos dias de confinamento. Acho que isso entrou no cálculo da editora para relançá-lo justo agora.

Completei por esses dias seis meses de quarentena. Continuo trabalhando de casa, mas aos poucos, começo a sair para resolver uma coisa ou outra que precisa ser presencial mas não é necessariamente essencial, sempre muito rápido e em alto estado de paranóia. Não boto o pé para fora de casa (nem para levar o lixo lá embaixo) sem máscara, fico me policiando para não levar a mão ao rosto, e álcool gel nunca está muito fora do alcance. Toda vez que vejo imagens de aglomeração no noticiário, sinto como se estivesse assistindo um filme de horror e fico ainda mais paranóica quando preciso sair.

Aqui em casa, até onde saibamos, ninguém pegou (mas sem fazer sorológico, difícil ter certeza). Mas tive vários parentes que se contaminaram. Considerando a quantidade de gente da família na área de saúde, isso não é exatamente surpresa. Meus primos enfermeiros todos tiveram; uma das primas médicas teve, o tio veterinário também. Perdi uma tia logo no começo da pandemia - estava em tratamento oncológico, fazendo quimioterapia no hospital e pegou lá dentro. Não pude ir ao enterro dela, embora fosse uma tia muito querida.

A mãe dos meus irmãos mais velhos também faleceu. Quando isso aconteceu, a quarentena mais rígida já tinha acabado, e viajei com meu pai para o enterro, no interior. Ao voltar, tive sintomas de gripe - imagino que pela chuva que levei e pela diferença de temperatura subindo a serra. Tranquei-me no meu quarto, saindo apenas no dia marcado para fazer o PCR, que deu negativo. Seja como for, até sair o resultado, foram vários dias andando de um lado para o outro dentro do meu quarto e procurando ocupar a cabeça.

Eis então a história da minha viagem pelo meu quarto, dos meus dias trancadas nele.

Minha primeira parada é o guarda-roupa, claro. Desconfio que terei de lavar todas as roupas quando voltar ao escritório, porque está tudo com aquele cheiro de guardado, não importa quantos sachês perfumados eu enfie pelas gavetas. Seja como for, é um guarda-roupa grande, repleto de tesouros - um excelente lugar para gastar algumas horas do confinamento, arrumando e rearrumando tudo. A caixa de chapéus, a caixinha de música; baús, caixas e latinhas decorativas guardando papéis variados, prendedores de cabelo coloridos, chaveiros e outras miudezas são das nostálgicas paradas que fazemos pelo caminho.

A conclusão: arrumar guarda-roupa, separar o que não usa mais para doar, limpar tudo, é uma fantástica terapia ocupacional.

Passando o guarda-roupa e caso não se demore diante do espelho fazendo caras e bocas (o que sempre pode ser um divertimento), vamos às paredes. Numa delas tenho dois quadros de papiro - uma ilustração da deusa Ísis (anterior a fazer uma amizade com alguém chamado Ísis) e outra de um casal caçando -, resquício da época em que estava obcecada pela série Ramsés. Dá para sentar na cama e ficar observando os detalhes, refletir sobre o que me lembro de história egípcia, gastar algum tempo admirando a textura do papiro. Em outra parede, há um painel de fotos, muitas das quais tiradas em viagens. Gasto mais algum tempo olhando foto por foto e lembrando dos detalhes de quando cada uma delas foi tirada.

Minha cama é, como toda cama, o lugar onde passo ao menos metade da vida. É também o lugar onde costumo ficar lendo quando não posso usar a poltrona ou a cadeira de balanço no quarto dos meus pais. Uma poltrona no meu quarto é uma das poucas coisas que acho que sinto falta, mas o espaço que tenho não dá para trazer uma sem atrapalhar a circulação. Enfim, gosto da minha cama. Ela não é macia demais, não afunda, dá apoio para as costas na medida certa. Na casa dos três ursos, se eu fosse Cachinhos Dourados, escolheria a ela.

E aí chegamos a minha escrivaninha. É provavelmente o lugar em que passo mais tempo - e que tem mais coisas com que me ocupar e assim não endoidar. Tem as gavetas repletas de papel, que sempre podem ser rearrumadas, o armário com caixas de documentos e cartas - tenho cartões de natal de trinta anos atrás, quando minha mãe me escreveu para dizer que eu não sentisse ciúmes do irmão que ganharia em breve. Reler cartas antigas é uma jornada por si mesmo, pelo tempo. É uma boa pedida manter lenços de papel à mão ao fazer esse tipo de viagem, seja pelas lágrimas nostálgicas, seja pela rinite alérgica.

Cá está o computador e não preciso dizer que entre trabalho e lazer, dá para gastar várias horas nesse ponto da viagem. Cá está também alguns livros - a maior parte da biblioteca fica na estante grande do corredor, mas mantenho alguns perto da cabeceira. Cá está minha coleção de marcadores e, como as fotos, eles também me fazem mergulhar em memórias, já que muitos são souvenires de viagem ou foram presente de alguém.

Claro, não posso esquecer da janela e de todas as paisagens que posso ver através dela. Da minha janela consigo enxergar a cozinha aqui de casa, e ver a movimentação de dona mãe e até trocar palavras com o pai. Observar o céu, especialmente o poente. E a área comum do prédio, que tem bastante verde também.



Este é um relato curto da minha jornada pelo meu quarto, em meus dias de confinamento mais rigoroso. Devo dizer que quando pude sair pelo resto da casa, foi quase como o abrir de fronteiras para outro país. Mês que vez estarei de férias e continuarei minha viagem da varanda para os quartos, da cozinha para a sala, de uma janela a outra - até que seja realmente seguro e tranquilo sair para o mundo. Não direi que não tive alguns ataques de ansiedade e melancolia nesses meses todos de quarentena, mas ficar dentro de casa não me deixou surtada. Sempre gostei de ficar no meu canto, ou como diz papai, “boa romaria faz quem em sua casa está em paz”. Não estou desesperada para voltar a passear no shopping ou em ir para a praia (bem, considerando que não sou fã de praia, essa não é uma comparação muito justa...). Sinto falta do convívio - com o pessoal do escritório, com meus amigos, a turma do clube do livro… -, mas vamos nos virando.

Por fim, um comentário aleatório: estando a viver em tempos históricos, daqueles que entrarão nos livros e que serão estudados no futuro, entendi afinal porque o dito “que você viva em tempos interessantes” é considerado uma maldição... Nunca mais reclamarei do tédio de viver uma rotina.


A Coruja


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