10 de outubro de 2019

Mulheres que Correm com Lobos: Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem


As histórias são bálsamos medicinais. Achei as histórias interessantes desde que ouvi minha primeira. Elas têm uma força! Não exigem que se faça nada, que se seja nada, que se aja de nenhum modo — basta que prestemos atenção. A cura para qualquer dano ou para resgatar algum impulso psíquico perdido está nas histórias. Elas suscitam interesse, tristeza, perguntas, anseios e compreensões que fazem aflorar o arquétipo, nesse caso o da Mulher Selvagem.

Faz muito, muito tempo que esse livro estava na minha lista de leituras. Várias pessoas me indicaram ele, com elogios rasgados, incluindo gente com gostos literários muito próximos do meu. Suspirei de amores quando vi que ele estava sendo relançado numa edição em capa dura, e depois de muito colocá-lo e tirá-lo da cesta de compras, afinal encomendei o bendito esse ano.

Não me arrependo de nada, exceto do tempo que levei para finalmente começar a lê-lo.

Devo começar dizendo, porém, que a despeito da minha empolgação, quando afinal iniciei o processo, também o fiz com algum receio. Ainda tenho vívida na memória meu trauma com o livro do Bettelheim, A Psicanálise dos Contos de Fadas, e a impressão que ele deixou de que interpretar tais histórias sob o ponto de vista da psicanálise resume-se inteiramente a questões de sexualidade - e à ideia de que toda criança é uma psicopata edipiana em potencial.

Como meu interesse inicial na obra de Pinkola era a apresentação de mitos e arquétipos e formas de interpretação - para ser usada como uma ferramenta de crítica e criação literária - esse era um receio válido. Mas, no fim das contas, o que encontrei nas páginas de Mulheres que Correm com Lobos foi muito mais do que eu esperava e, em boa parte, algo que eu estava precisando (re)descobrir. Eu estava na metade do livro e já queria voltar para o começo e ler tudo de novo, e de novo e de novo porque, olha, se tem um livro para você manter na cabeceira e reler sempre que necessário, é esse.

Mas estou me adiantando… Mulheres que Correm com Lobos tira seu título do estereótipo desse animal como vilão dos contos de fadas, uma vilanização que nem sempre foi verdadeira, considerando o caráter do lobo como companheiro de Artemis na mitologia grega ou mãe de heróis - como a loba que amamentou os gêmeos fundadores de Roma. A ideia de Pinkola é que o caráter selvagem e instintivo do lobo - como da mulher - foi transformado em algo maléfico, extirpado de quaisquer significados positivos. Na essência, a tese da autora é que a domesticação do feminino selvagem é a base para todos os problemas e neuroses da mulher moderna. Nesse caso, as mulheres que correm com lobos são aquelas que seguem seus instintos, não se deixam domesticar por aquilo que a sociedade impõe sobre elas.

Há alguns clichês e outras tantas análises me pareceram um pouco forçadas; mas no final eu me curvei a ideia de que teorias de interpretação literária (especificamente, os limites que um texto permite uma interpretação) eram menos importantes que o uso terapêutico dessas histórias. A autora escreve, afinal, com a experiência de quem usou essas histórias na terapia de seus pacientes e conseguiu os resultados que precisava com eles. Os contos não são um fim em si mesmo, mas uma ferramenta; e se posso discutir hermenêutica, não tenho autoridade para discutir psicanálise.

Passando por personagens como Barba Azul, La Llorona, Baba Yaga e outros tantos arquétipos, Pinkola costura um painel profundo da psique feminina. De particular interesse pra mim foi o que ela tinha a dizer sobre processos de criação, mas como um todo, Mulheres que Correm com Lobos é uma sessão bastante intensa de terapia.

De outro turno, embora muitos dos contos de fadas me fossem familiares, os folclóricos me eram desconhecidos e também nisso o livro correspondeu ao que eu queria. Pinkola selecionou histórias de culturas bastante diversas, versões diferentes de narrativas mais famosas, pincelando com detalhes das pessoas que as contaram, o que lhes deu ainda mais sabor. Algumas delas me causaram profunda nostalgia: trouxeram-me à lembrança imagens da calçada da casa da minha avó e de noites ouvindo as ‘estórias de trancoso’ da vizinha, d. Nenê de Tali - e, por esse presente, só tenho a agradecer à autora.

Termino observando que, embora o livro tenha uma evolução narrativa, os capítulos podem ser lidos de forma independente, sem seguir a ordem, consultados diante de eventuais necessidades. Como disse anteriormente, é um livro para se ter na cabeceira, para o qual voltar sempre que o mundo e suas expectativas estão nos pressionando.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Mulheres que Correm com Lobos
Autor: Clarissa Pinkola Estés
Tradução: Waldéa Barcellos
Editora: Rocco
Ano: 2018

Onde Comprar

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A Coruja


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2 comentários:

  1. Olha, que resenha mais gratificante. Não sei explicar o tanto que me emociono quando leio algo (sempre positivo) a respeito dessa obra.
    Inclusive, estou trabalhando ela em uma dissertação.
    Ainda bem que você deu uma chance a ele.

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    Respostas
    1. Que bacana! Boa sorte na sua dissertação. Essa obra se tornou um daqueles livros que vive à cabeceira e certamente tenho planos para uma futura releitura para pensar melhor alguns dos exercícios que a autora propõe.

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